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Eu não sou cachorro não

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Zulmira Furbino Publicação:06/07/2015 13:55Atualização:06/07/2015 13:59

 (Son Salvador)

Há muitos e muitos anos, num reino pra lá de distante, vivia um menino que gostava muito de brincar na rua. Depois do dever de casa, ele saía com os amigos e só chegava lá pelas seis da tarde.


Quando apontava no quintal, vinha tão sujo, mas tão sujo, que a mãe não tinha outra alternativa a não ser berrar que passasse pra dentro e fosse já tomar um banho. O menino vinha entrando, vermelho de terra, deixando entrever o rosto marcado pelos veios das lágrimas que escorriam como se fossem rios num mapa. E perguntava, amparado pela música de

Waldick Soriano:
– Por que, mãe? Por quê? Eu não sou cachorro não...

 

Tanto medo de banho nem Freud explica. Mas talvez a descendência, sim.
É que o pai do menino, nascido na virada do século 19 para o século 20, só tomava banhos às quartas e sábados. Nos demais dias da semana, fazia a higiene básica e se enchia de perfume.

 

Não é porque faltasse água na casa onde o pai do menino vivia quando era pequeno. Havia água – e muita. O que não existia era o hábito. A descendência europeia falava mais forte. Mais forte até que o tradicional amor dos brasileiros ao banho, herdado dos índios.

 

A história já provou que a cultura muda de acordo com o tempo. Inclua-se, aí, a relação da humanidade com a água – e com o banho. Na Antiguidade, por exemplo, eram comuns sofisticados rituais de limpeza.

 

No Egito, a prática era feita em rituais sagrados dedicados aos deuses. Na Grécia, 1.700 anos antes de Cristo, o must era oferecer uma sessão de banho para os convidados nos banquetes luxuosos.

 

Os romanos, enquanto construíam seu vasto império, espalharam balneários públicos por onde passaram e ficavam peladões durante os banhos, num ato de adoração à deusa Minerva. Desse ritual participavam cidadãos das mais diversas classes sociais. O costume, porém, desapareceu com a chegada do cristianismo.

 

A partir daí, a importância do asseio no Ocidente foi reduzida a tal ponto que, na Idade Média, acreditava-se que o suficiente seria tomar um banho – por ano. Em matéria de lavar o corpo, o século 19, que está tão ali pertinho, é capaz de nos deixar de toalhas caídas.

 

Imagine que na Inglaterra de 1837, quando a rainha Vitória foi coroada, ainda não havia local para banho no Palácio de Buckingham. E até antes do fim do século 19 era incomum haver espaço próprio para as pessoas se banharem nas casas onde moravam.

 

Curiosa por conta da história do menino e do pai do menino lá de cima, resolvi pesquisar e descobri que não há registro de banheiro, pelo menos dentro de casa, em algumas das fazendas mineiras do século 19 que já são consideradas patrimônio histórico nacional. Ou seja, o banho estava longe de ser um hábito importante na rotina diária.

 

Essa é a explicação – talvez fantasiosa – que encontro para o fato de aquele homem ter passado a vida inteira banhando-se apenas às quartas e aos sábados, influenciando o filho a tal ponto que ordem de tomar banho lhe parecia uma grave ofensa materna.

 

Hoje, segundo análise da consultoria de tendências Euromonitor, os brasileiros tomam, em média, até 12 banhos por semana. Na outra ponta, os chineses desfrutam de apenas uma chuveirada a cada dois dias.

 

Mas agora que a água está literalmente acabando no estado considerado a caixa d'água do Brasil, viramos de novo uma esquina da história, desta vez rumo à contenção do uso do líquido precioso.

 

Quando ainda estava fazendo calor, consegui limitar meus banhos à fórmula molha-fecha-a-torneira; ensaboa-abre-a-torneira-e-enxágua; acabou de enxaguar-fecha a torneira. Só que fazer isso no frio é mais difícil.

 

Debaixo do chuveiro, me debato entre o desejo de ficar naquele quentinho quase pra sempre e o fantasma assustador dos reservatórios secos e da possibilidade de ficar sem esse ritual diário a partir de agosto. Aí, cheia de culpa, fecho a torneira rapidinho e encolho o tamanho do meu conforto.

 

A vida é assim. Algumas esquinas, como a do banho farto, ninguém gostaria de dobrar. A gente não é cachorro não...

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