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Mordaça, humilhação e negligência: estudo lista os principais abusos praticados em maternidades de 34 países

No Canadá, por exemplo, refugiadas com mutilação genital disseram ficar constrangidas ao ouvir comentários dos profissionais de saúde sobre a aparência da vagina. Gestantes da Tanzânia e do Brasil contaram ter sido amordaçadas e/ou amarradas na maca durante o parto

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Isabela de Oliveira - Correio Braziliense Publicação:20/08/2015 09:30Atualização:20/08/2015 10:07
Pesquisadores de diversas instituições do mundo, incluindo o Brasil, constataram que mães em todos continentes enfrentam maus-tratos nas maternidades (SXC.hu)
Pesquisadores de diversas instituições do mundo, incluindo o Brasil, constataram que mães em todos continentes enfrentam maus-tratos nas maternidades
No início dos anos de 1800, parteiras, e não médicos, tomavam a frente dos partos. No entanto, avanços da ciência — a popularização de analgésicos como éter e clorofórmio e o surgimento do fórceps e de outros instrumentos cirúrgicos, por exemplo — atraíram mulheres para o parto hospitalar, que se firmou como uma alternativa segura. Mas um estudo conduzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e publicado na revista PLoS Medicine revela que, mais de dois séculos depois, nem todas as gestantes têm acesso ao conforto básico prometido no protocolo médico: são comuns os relatos de abusos físico, sexual e verbal, de falta de cuidados e suporte, de negligência e discriminação durante o nascimento de bebês.

Após revisar 65 estudos que abrangiam 34 países, pesquisadores de diversas instituições do mundo — entre elas a Universidade de São Paulo (USP) — constataram que mães em todos continentes enfrentam maus-tratos nas maternidades. Elas relatam situações em que a interação com os profissionais e/ou as condições das instalações são consideradas humilhantes ou indignas, propositalmente ou não (veja arte). “Ficamos surpresos com o fato de esse tipo de violência acontecer em escala global, em todos os continentes, em maior ou menor escala entre países. Como todo tipo de violência institucional, os mais pobres, as minorias étnicas e sociais têm risco aumentado”, diz João Paulo Souza, coautor do estudo e professor da USP.

Meghan Bohren, líder do estudo e pesquisadora da Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos, ressalta que não se trata apenas de uma questão de qualidade de cuidados, mas de violação de direitos humanos. Segundo ela, há relatos de situações absurdas. Muitas das vítimas deixam de procurar o médico por medo ou vergonha de nova humilhação. No Canadá, por exemplo, refugiadas com mutilação genital disseram ficar constrangidas ao ouvir comentários dos profissionais de saúde sobre a aparência da vagina. Gestantes da Tanzânia e do Brasil contaram ter sido amordaçadas e/ou amarradas na maca durante o parto.

“Temos de encontrar um processo pelo qual as mulheres e os profissionais de saúde se envolvam para promover experiências de parto seguras e positivas. Só assim asseguraremos que a população procurará cuidados clínicos de alta qualidade”, defende Bohren. Para a também pesquisadora da OMS, a primeira etapa é fazer o setor de saúde reconhecer a existência do problema. “Só então, poderemos desenvolver soluções”, diz. Estima-se que 289 mil mortes maternas tenham ocorrido em 2010 no mundo, das quais 99% foram registradas em países de baixa e média rendas.

Em muitos hospitais dessas regiões, indica o estudo, não são raros os casos em que duas parteiras ou obstetras ficam encarregados de 10 nascimentos, o que culmina em um ambiente de trabalho estressante e abusivo. Os cientistas também ressaltam que culpar os profissionais de saúde não resolve o problema: é preciso, defendem, dar condições dignas de trabalho à categoria. “Reconheço que existam profissionais ruins, mas são exceção. A maioria trabalha sem condições e sob muito estresse. E muitos, fatigados, prejudicam as pacientes. Precisamos desarmar os ambientes tóxicos que as maternidades se tornaram e tratar os profissionais também”, diz João Paulo Souza.



Fatores múltiplos

Diante da complexidade da questão, Etelvino de Souza Trindade, presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), reconhece que a solução não é fácil, por envolver uma diversidade de fatores, incluindo religiosos e culturais. “Nos anos 1950, o papa Pio XII foi consultado sobre impasses na legislação a respeito da dor do parto e se a analgesia seria permitida, visto que, na Bíblia, sentir dor no parto era uma espécie de desejo divino. Se você parar para pensar sobre isso, verá que, apesar do avanço cultural, certas ideias sobre o sofrimento da parturiente ainda são presentes, e algumas mulheres até aceitam essa possibilidade”, detalha.

Etelvino Trindade destaca que, em termos de infraestrutura, a principal violência que o Estado comete contra as pacientes é ter os recursos e não os oferecer. Naturalmente, mães em trabalho de parto temem complicações que afetem o bebê. Nesse cenário, sentir dor não deveria sequer ser uma questão cogitada. “Entretanto, é comum, pois não existem anestesistas para todas elas”, diz o médico. Em um atendimento ideal, segundo ele, além de uma equipe completa, a mãe deveria ter a opção de ter o bebê no local mais próximo de casa — às vezes, até mesmo na própria cama.

O próprio Ministério da Saúde prevê que a gestante deve opinar sobre a ambientação do local em que ocorre o parto. “Isso não existe. Como colocar um homem dentro de uma enfermaria onde outras mulheres estão em trabalho de parto?”, pontua Etelvino. Ele acredita que os atendimentos poderiam ser melhores se não dependessem quase que exclusivamente do médico, hoje praticamente o único qualificado a conduzir um parto. Timidamente, chega ao Brasil a profissão de enfermeira obstetriz, comum na Inglaterra. A especialização acontece no curso de enfermagem, após estágio de dois anos. “É preciso de um corpo completo de profissionais que consigam tirar o aspecto medicocêntrico dos atendimentos que, em geral, não é bem-vindo”.



Traumas duradouros
“Dados brasileiros sugerem que 25% das mulheres já sofreram algum tipo de violência obstetrícia, o que, a longo prazo, acarreta prejuízos para a autoestima, depressão pós-parto e estresse pós-traumático. Ao serem maltratadas, elas se afastam dos sistemas de saúde, e isso é muito ruim porque quem se afasta é justamente a população mais vulnerável, a que está sob mais risco e precisa mais. Apesar disso, é errado pensar que esse é um problema que atinge apenas os pobres. Outros dados brasileiros mostram que a classe média alta também é atingida com um tipo diferente de agressão: a realização de procedimentos sem consulta. As mulheres devem saber que são merecedoras de respeito, e todos devemos fortalecer mecanismos de consulta e defesa, como ouvidorias de hospitais e defensorias públicas.”

» João Paulo Souza, coautor do estudo e professor da Universidade de São Paulo

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