Cuidado com o doutor Google
Uso indiscriminado por leigos do site de pesquisas para doenças e tratamentos tem gerado problemas comuns de automedicação, alertam especialistas
A internet foi um divisor de águas na relação médico-paciente, e porque não dizer, na relação do paciente com sua doença, seu tratamento e medicação. Basta digitar a dúvida no site de buscas mais famoso do mundo, o Google, que ele disponibiliza em questão de segundos, centenas ou milhares de informações, que antes não estavam ao alcance do leigo, e que o próprio médico demorava a receber. Tanta informação é benéfica? Depende de vários fatores, de acordo com os seis especialistas entrevistados pela Encontro. Os perigos maiores são as interpretações equivocadas, o quê o paciente faz com as informações em mãos e a substituição do médico pelo Google. Segundo o presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, João Batista Gomes Soares, a demanda dos médicos para discutir este assunto é grande. “Inúmeros relatos de médicos são de que o paciente está chegando ao consultório com o diagnóstico pronto, tratamento e medicação escolhidos. Muitos deles estão agindo por conta própria sem conhecimento do médico, atrapalhando o tratamento”, diz. Por ser algo novo, ainda não possui estatísticas, mas afirma que muitos médicos estão se sentindo pressionados, não conseguem convencer o paciente da sua posição e muitas vezes desistem para não causar discussões. “Isso tem exigido mais do médico. É preciso ter preparo, anotar todos os procedimentos e observações no prontuário: o que o paciente propôs e o que não concordou em fazer”, indica. E mais do que isso, transmitir firmeza e confiança nas decisões.
O oftalmologista especialista em glaucoma, Milton Jacques de Carvalho tem se surpreendido com os questionamentos aprofundados dos pacientes e o uso de termos técnicos e conhecimentos de procedimentos restritos à área médica, mas mesmo assim, muitas vezes os pacientes estão equivocados. “O discernimento é sempre do médico. O tratamento do glaucoma, por exemplo, pode ser clínico, à laser ou cirúrgico, normalmente nessa ordem, mas não necessariamente assim”. O lema cada caso é um caso se aplica em todas as áreas da saúde, principalmente no que se refere à compra pela internet. “No caso do paciente que adquire lentes de contato sem consulta, pode levar à lesão séria da córnea ou perda da visão”, alerta. O paciente que recebeu diagnóstico recente é o mais suscetível a colher informações equivocadas no Google. “Ainda que a pessoa faça a busca em sites fidedignos, a gama de informações é enorme, e dentro de uma mesma doença existem espectros grandes de gravidades”, diz Dra. Adriana Camarano, endocrinologista. E não é só o diagnóstico, o tipo de acompanhamento, o segmento de cada doença e a periodicidade do tratamento também. “O médico não é mero informante”. Ela completa que, se a informação for confiável, o médico pode ajudar a interpretá-la, entendendo melhor a necessidade de cada pessoa.
O Google é referência na vida de Sandra Flores, gestora de eventos. Desde que teve angina com 99% de obstrução e implantou um stent no coração, a relação com o site de busca se tornou diária. “Antes de o médico receitar os medicamentos eu já sabia de lançamentos no exterior, queria me curar logo”, conta. Sandra acabou substituindo por conta própria o remédio receitado pelo médico por acreditar nas informações que leu nos sites. Comprou a medicação pela internet e por pouco o resultado não foi desastroso. Sandra teve a coronária obstruída novamente e precisou colocar outro stent. “Meu médico me disse depois que se não tivesse mudado a medicação teria tido resposta mais rápida e positiva”, conta. Em outra ocasião, ao invés de consultar um médico depois de descobrir uma mancha na pele, as comparou com fotos no Google e se autodiagnosticou. “Achei que não era nada, pois minha mancha era muito diferente das dos sites”, diz. Sandra estava com câncer de pele, demorou demais a tomar providências e teve que fazer uma cirurgia que talvez nem precisasse se tivesse desconfiado do que viu na tela do computador. “Depois disso resolvi maneirar”, diz.
Outro desdobramento do excesso de informações e relatos é a pressão para que o médico peça mais exames do que o necessário ou faça check ups completos mesmo que o paciente não tenha nenhuma queixa. O presidente da Federação das Unimeds de Minas Gerais, Marcelo Mergh Monteiro, é adepto da informação e do conhecimento e diz que o paciente deve dividir a responsabilidade do seu tratamento com o médico, mas afirma que os diagnósticos são feitos na anamnese e que os exames são complementares, e não definitivos. “E se o médico não conseguir convencer o paciente, ele pode até mudar de médico, mas nunca decidir nada sozinho com ajuda da internet”, diz.
Conectado 12 horas por dia, o publicitário Khacyos Rezende diz que o Google é a página de abertura de seu computador, e que pesquisar no site é a primeira coisa que faz ao liga-lo. Ele conta que está sempre pesquisando sobre saúde, pois tem irmã e mãe hipocondríacas. “Quero mostrar a elas alternativas de tratamentos e alertá-las sobre os perigos das medicações que elas querem tomar”, conta. Para ele mesmo, a internet só influenciou uma vez, depois de ir a um médico para tratar de insônia. “Ele me receitou um remédio tarja preta, por isso fiquei apreensivo”. Khacyos pesquisou a composição e contra-indicações, se assustou e optou por não fazer o tratamento.
• O site de informações de literatura científica, Medscape, fez pesquisa ainda em 2000 e chegou à conclusão de que, 50 milhões de americanos utilizavam a internet para informações sobre doenças.
• A revista Pediatrics da Associação Americana de Pediatria fez uma busca simulando interesse de pais apreensivos sobre Fibrose Cística. Acharam 186 mil sites sobre o assunto e avaliaram os primeiros cem. Destes, apenas 45 apresentavam a data, 40 citaram o autor, 11 solicitavam dados pessoais em garantia de privacidade e apenas 35 indicaram a necessidade de avaliação médica. Muitos deles ofereciam produtos médicos.