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Entrevista | Maria Silva e Silvério »

"A monogamia está fadada a acabar"

Pesquisadora de universidade de Lisboa diz que outros tipos de relações conjugais tendem a substituir o casamento nas próximas gerações

Alysson Lisboa Neves - Publicação:07/08/2014 10:29Atualização:07/08/2014 10:38
 (Paulo Márcio/Encontro)
Desde adolescente, Maria Silvério buscava respostas para os comportamentos relacionados à sexualidade e às discussões de gênero. Uma década depois, já no mestrado, dedicou-se durante mais de dois anos a uma minuciosa pesquisa antropológica, realizada em Portugal e no Brasil, que aborda o polêmico e pouco explorado universo do swing e as mudanças das relações afetivo-sexuais geradas a partir das novas formas de exploração do corpo e das relações afetivas. Mineira de Montes Claros, a pesquisadora entrou no universo da troca de casais para entender como se configuram as famílias no século 21 e as possíveis consequências que as novas práticas podem oferecer.

Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos revelou que 62,9% dos homens e 62% das mulheres consideram que o casamento ficou mais feliz após a entrada do casal no universo do swing. Esse foi um dos aspectos que chamou a atenção da pesquisadora. Nesta entrevista, ela fala sobre família, traição, tabus e crenças envolvendo as relações. E ainda analisa três valores socioculturais: a indissolubilidade do casamento, que caiu com as leis do divórcio; a homossexualidade que abre, cada vez mais, espaço e direitos iguais aos casais do mesmo sexo; e a monogamia, valor ainda intocável quando se trata das relações afetivo-sexuais, mas que, segundo ela, já começa a ser questionado e a gerar discussões dentro e fora do país.

ENCONTRO - A fidelidade entre casais é um valor que tende a entrar em xeque?
MARIA SILVA E SILVÉRIO - Nosso modelo de relações conjugais prega a fidelidade sexual como sendo a fidelidade monogâmica. Porém, sabemos que, na prática, isso não ocorre. Pesquisas realizadas por psicólogos, antropólogos e especialistas de outras áreas mostram que o índice de infidelidade entre os casais é muito alto. Cerca de 70% dos homens assumem que já traíram contra 60% das mulheres. A infidelidade está entre as três primeiras causas do divórcio. Como valor conjugal, penso que a fidelidade não vai acabar de um dia para o outro. As pessoas não aceitarão a infidelidade como sendo algo natural. Os valores são perpetuados ao longo de séculos.

Por que a infidelidade vem crescendo?

Exatamente porque o nosso modelo de casamento prega a monogamia, ou seja, um único parceiro sexual, emocional, etc. Não podemos falar que todos nós somos monogâmicos por natureza. Em outras sociedades, é prática ter outros parceiros. Eu acho que, enquanto a monogamia for um valor forte e a crença de que uma única pessoa é capaz de nos completar em todos os aspectos, a infidelidade vai acontecer. Nas gerações mais novas, os relacionamentos não monogâmicos estão sendo mais aceitos, a tendência é de que o outro aceite mais a infidelidade. O que pode acontecer com as novas gerações é uma maior aceitação de que as pessoas se envolvam com outras.

Os aplicativos para celulares e computadores contribuem para isso?
Sim. Acho que eles facilitam a busca por outras pessoas, para marcar encontros, etc. Existem aplicativos que mostram até a distância que as pessoas estão umas das outras. Mas a infidelidade não precisa dessa tecnologia para acontecer. Ela sempre funcionou sem os aparatos tecnológicos.

Os casais adeptos do swing, de acordo com sua pesquisa, pensam diferente em relação à fidelidade?
No caso do swing, os casais se consideram não monogâmicos, por se envolverem sexualmente com várias pessoas, mas sentimental ou amorosamente se consideram monogâmicos. Eles amam e têm sentimentos apenas por um único parceiro. Em nosso modelo conjugal, essas coisas não se separam. Ou seja, na nossa sociedade, tem de se manter a fidelidade tanto conjugal como sexual.

Mas o swing não é uma institucionalização da infidelidade?
O adultério consentido é um termo usado pela própria mídia para definir o swing. Quando se fala em traição, a palavra está muito associada à mentira, ao fato de você enganar o outro. No swing, a pessoa não está mentindo ou enganando ninguém. Então eu não acho que é uma institucionalização da infidelidade, que está muito associada ao fato de o outro ser enganado. Alguns swingers concordam com a denominação, outros casais não, porque ninguém está sendo traído ou enganado na relação.

Como essa prática afeta a relação do casal?
Dois sociólogos pesquisaram 704 homens e 319 mulheres praticantes do swing nos Estados Unidos. O percentual de homens que consideram que o casamento ficou mais feliz após a entrada nesse universo é de 62,9% e das mulheres, 62%. O grau de felicidade se manteve para 35,8% dos homens e 35,3% das mulheres e somente 1,3% dos homens e 2,8% das mulheres afirmaram que ficaram menos felizes. Esses relacionamentos exigem dos parceiros uma abertura comunicacional muito maior. Eles, de fato, falam do que gostam, desejam e sentem. Com isso, passam a se conhecer melhor, a ter um grau de intimidade crescente, e a cumplicidade e a confiança crescem juntos. Todos sabemos que a sexualidade entre os casais não é uma coisa vivida de forma muito aberta. Isso faz com que as pessoas sejam menos hipócritas. Elas têm medo de dizer o que querem e o que desejam experimentar.

 (Paulo Márcio/Encontro)
Os casais pesquisados, em sua maioria, têm filhos e até netos. Como ficam as relações no ambiente familiar?
Os casais praticantes, normalmente, não falam sobre isso com a família, filhos ou amigos. Algumas vezes, comentam com algum amigo muito próximo. Os filhos recebem, de casa, o modelo tradicional de família. O casamento na igreja, no civil e aquela imagem de pais e mães juntos e felizes são o que prevalece.

Quem está mais aberto a esse tipo de relacionamento, homens ou mulheres?
A iniciativa quase sempre vem dos homens. Do ponto de vista da antropologia, isso não se dá, necessariamente, porque os homens têm mais desejo sexual que as mulheres. Mas, sim, porque social e culturalmente são ensinados dessa forma. Os homens, desde muito cedo, são ensinados a se relacionar com várias mulheres. As mulheres, por sua vez, são educadas a se comportar de forma exatamente contrária, sendo mais amáveis, dóceis e a não demonstrarem sua sexualidade. Em termos antropológicos, precisamos sempre analisar o que é cultural e o que é natural. Não diria que o homem, naturalmente, tem mais desejo que a mulher, mas culturalmente sim. A iniciativa para a mudança do modelo sexual tradicional é quase sempre do homem. As mulheres, de modo geral, questionam, mas acabam se acostumando com a ideia e, muitas vezes, cedendo. Quando a iniciativa vem da mulher, ela mesma fica receosa pela interpretação que isso pode causar no homem. Isso é uma questão de cultura, e não de desejo. A mulher é ensinada na escola, na sociedade e na mídia que seu papel é cuidar e educar os filhos. E, claro, que isso há 50 anos era muito mais forte, mas hoje ainda quem está cuidando da casa é a mulher. Não acho que isso seja algo natural. Apesar do crescimento de mulheres no mercado de trabalho e da ascensão profissional feminina, nossa sociedade ainda é patriarcal. O sobrenome do homem é que conta, mas, na necessidade de abandonar o emprego para cuidar de um filho, é a mulher que toma a atitude.

E como fica a questão do ciúme?
Novamente, devemos dividir o que é natural e o que é cultural. O ciúme é outro sentimento que os antropólogos costumam questionar se de fato é natural. Exatamente porque o ciúme está muito associado ao sentimento de posse. Na nossa sociedade, quando estamos em algum relacionamento, sentimos que aquela pessoa é nossa. Criamos no outro a totalidade. Dos seis casais entrevistados, três alegam que têm ciúme, um dos homens disse que sente ciúmes da parceira, no entanto, quando vê que ela está com outro homem e está sentindo prazer também, passa a se excitar com aquilo. Somos ensinados que o ciúme tem de fazer parte do relacionamento e tem gente que acha que se não tem ciúme é porque não se ama. Uma mulher entrevistada alega que, quando o marido está com uma colega de trabalho na rotina de almoçar fora e começam a dividir os sofrimentos e angústias, todos os dias, as chances de perdê-lo são muito maiores. No trabalho, convive-se por muito mais tempo e com muito mais intensidade, e isso vai despertando, talvez, um desejo que não pode ser saciado. No swing, se existe vontade mútua, você pode saciar o desejo e a vontade acaba. Muito provavelmente você nunca mais verá aquela pessoa.

As relações estão mudando porque os valores são outros?

Tudo o que está ocorrendo agora com os novos modelos de relacionamento se faz pelas transformações nos valores e na forma de lidar com determinadas questões sociais. Um bom exemplo é a homossexualidade. Ela sempre existiu. Na Grécia clássica e no Império Romano, isso era visto de outra maneira. Nossa sociedade vai mudando e também seus valores, a forma de ver as coisas. Alguns grupos mais conservadores ainda veem a homossexualidade como promiscuidade, alegando que não condiz com aquilo que nossos valores regem para questões afetivo-sexuais.

No seu estudo, você fala sobre swing, casamento aberto e poliamor. Qual a diferença?

O swing é vivido junto pelo casal. No relacionamento aberto, o casal conversa, percebe que quer algo mais e cada um tem liberdade e autonomia para ter uma vida afetivo-sexual independente. Esses dois modelos não questionam o modelo de família, porque são os parceiros casados como todo mundo, mantêm a família como todo mundo e fazem isso por opção. O poliamor é mais recente e começou a surgir na década de 1990, nos Estados Unidos, como prática ou movimento social crescente. Poliamor é o direito e a liberdade de se envolver com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Uma regra que serve para esses três tipos de relacionamento é que todas as pessoas envolvidas têm de saber que tipo de relacionamento estão vivendo.

O poliamor tem mais chance de se tornar um modelo reconhecido?
Acredito que sim. O swing e o relacionamento aberto não lutam por direitos ou levantam bandeiras. Eles defendem a manutenção do modelo de família. O poliamor é o único que questiona isso. Por que a família não pode ser composta, por exemplo, de uma mãe e dois pais? Assim como a homossexualidade hoje, juridicamente, já começa a questionar a adoção de criança entre dois homens ou duas mulheres. Hoje já existem nos Estados Unidos famílias que conseguiram autorização para ter dois homens e uma mãe como modelo familiar.

Isso não vai causar uma corrida aos psicólogos?

Somente a partir de 1977 foi possível se divorciar no Brasil e na época foi a mesma discussão sobre valores, quais problemas isso poderia acarretar nos filhos, etc. Toda vez que se está diante de uma ruptura, de uma mudança social, surgem medos e dúvidas. O poliamor é um modelo de ruptura que vai acabar com o modelo monogâmico. É um movimento que está crescendo no mundo à medida que a sociedade vai amadurecendo. Hoje, pelo número de divórcios que ocorrem, existem pessoas que chegam aos 18 anos e já passaram por três pais ou três mães diferentes. O casal teve um filho e se divorciou quando a criança tinha 6 anos. A mãe ou o pai se casa novamente e permanece assim por mais cinco ou seis anos. O pai ou a mãe então se divorcia novamente e começa a conviver com um companheiro. Na sociologia, chamamos isso de monogamia sucessiva. Isso para a sociedade não é um problema, porque o indivíduo teve apenas um parceiro durante aquele período, mas durante o crescimento do seu filho teve três relacionamentos e ele assistiu a tudo isso. O poliamor tenta evidenciar isso. Será que o trauma de eu viver com dois homens ao mesmo tempo, os dois dando carinho e amor e os dois sendo modelo de referência para a criança, é mais traumatizante que ficar trocando de marido ou de mulher sucessivas vezes durante a vida?

E o futuro de nossas famílias?
Nossa concepção de família, de casamento e sexualidade é embasada nos valores judaico-cristãos. É o que a Igreja pregou, mas ela própria está passando hoje pelo processo de reflexão. Desde que o papa Francisco assumiu, ele vem pedindo da Igreja um reposicionamento em relação a uma série de valores como a própria homossexualidade. A Igreja Católica tem visto a necessidade de mudar determinados dogmas, inclusive o celibato para os padres. Quando isso ocorre, automaticamente, as pessoas também buscam se renovar. A tendência é que, aos poucos, as pessoas estarão aprendendo e mudando os valores, e isso vem sempre de cima para baixo. Mas não é coisa para daqui a cinco ou dez anos.

Você, pessoalmente, acredita no casamento?
Acredito nas relações conjugais e no amor, mas não acredito em casamento eterno. Não pretendo me casar.
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