Cientistas conseguem eliminar capacidade de insetos de distinguir sangue humano de outros animais
Os insetos foram modificados geneticamente por um grupo de pesquisadores dos Estados Unidos. O experimento, ainda restrito ao laboratório, pode conter o avanço de doenças como a malária, a dengue e a febre amarela
Isabela de Oliveira - Correio Braziliense
Publicação:10/06/2013 10:20Atualização: 10/06/2013 11:03
Dizem que algumas pessoas têm o “sangue doce”, o que faz delas o alvo preferido de insetos. Cientistas de Rockefeller University, nos Estados Unidos, acabam de descobrir que a sabedoria popular tem razão. Só que não há exceções. O sangue humano é mais atraente para as fêmeas dos mosquitos Anopheles gambiae e Aedes aegypti. Os pesquisadores também conseguiram bloquear essa preferência natural, eliminando a capacidade dos insetos de distinguir humanos de outros animais. O experimento, cujos resultados foram publicados na revista Nature da semana passada, pode ajudar no controle da malária, da dengue e da febre amarela, doenças transmitidas por esses mosquitos.
“Identificar como os mosquitos nos diferenciam de outros animais nos ajudará a compreender por que eles são predadores tão seletivos e preferem humanos. Esse processo vai nos ajudar a pensar em formas de prevenir a dengue e diminuir a taxa de transmissão das doenças infecciosas”, destacou a neurobiologista Leslie Vasshall, coordenadora da pesquisa, que foi iniciada em 2009.
Os cientistas utilizaram as enzimas chamadas de dedos de zinco nucleases — zinc finger nucleases (ZFNs), em inglês. As ZFNs são associadas a diversas tarefas celulares, como reparo e alterações na identidade genética. Com elas, foi possível modificar o DNA dos insetos e anular algumas das funções normais do organismo deles. “É uma tecnologia muito avançada de biologia molecular e que demanda grande capital, por isso não é muito comum no Brasil. Consiste em usar enzimas que reconhecem uma região específica do DNA do gene que o cientista deseja trabalhar”, explica Rafaela Vieira Bruno, pesquisadora do Laboratório de Biologia Molecular de Insetos do Instituto Oswaldo Cruz.
No caso do estudo americano, as ZFNs agiram no orco, um gene correceptor de odor. Elas foram injetadas em embriões de mosquitos que, ao se tornarem adultos, ficaram com o senso olfativo menos apurado. Aqueles com mutações no orco preferiram o odor de porquinhos-da-índia ao de humanos, mesmo na presença do dióxido de carbono, condição que ajuda os mosquitos a perceberem a presença de pessoas. No entanto, o experimento não concluiu se essa confusão nos sentidos é resultado de uma falta de sensibilidade ao “mau cheiro” do porquinho-da-índia, ao “aroma” das pessoas ou à soma dos dois casos.
Os mosquitos mutantes também apresentaram uma resposta diferente ao DEET — princípio ativo da maior parte dos repelentes. Os pesquisadores expuseram dois braços humanos às picadas — um deles com uma solução de 10% do repelente e outro sem. Os insetos voaram igualmente para os dois braços, o que sugere que eles não conseguiram perceber a substância pelo olfato. Apesar disso, ao pousarem no braço com o produto, rapidamente levantaram voo. “Isso nos diz que ainda há dois mecanismos para a percepção do DEET. Um é sentido pelo ar e o outro se dá quando o mosquito toca a pele”, concluiu Vashall.
No Brasil
No ano passado, o Ministério da Saúde inaugurou, na cidade de Juazeiro, na Bahia, uma fábrica capaz de produzir Aedes aegypti geneticamente alterados para auxiliar no combate à dengue. Os machos transgênicos, quando copulam com as fêmeas, geram filhotes que não conseguem chegar à fase adulta, comprometendo, assim, a transmissão da doença. Vasshall destaca, no entanto, que os mosquitos americanos são diferentes dos produzidos no Brasil. “Não inserimos outros genes no mosquito, e as enzimas trabalharam com o material genético que já existia neles. Elas destroem seletivamente o que não queremos para trabalhar sem influência de DNA exógeno (estranho ao organismo)”, esclarece a neurobiologista.
O experimento americano ainda não foi realizado fora do laboratório, etapa que, para Ionizete Garcia, professor do Departamento de Parasitologia da Universidade Federal de Goiás, é importante para as futuras aplicações da descoberta. “Os resultados são interessantes e representam possibilidades de um passo nessa estrada imensa da investigação do Aedes aegypti. Foi mostrada uma redução da atividade olfativa, mas devemos ter cautela, pois os resultados foram obtidos em laboratório. Quando forem aplicados em campo, teremos uma informação mais próxima da realidade, porque serão incorporadas múltiplas variáveis que interferirão no processo”, pontua Garcia. Apesar disso, ele ressalta que, “no ambiente urbano, a maior oferta de alimentação ainda é o ser humano, e a proposta do trabalho indica que o mosquito, perdendo essa preferência alimentar, poderia também sugar outro animal”.
Rafaela Vieira destaca que o trabalho desenvolvido no instituto americano ajudará os pesquisadores a entender a preferência desses insetos em se alimentar de sangue humano. “Conhecendo bem essas moléculas, podemos tentar encontrar outras estratégias de controlar as doenças, pois ele (o estudo) elucida muitos pontos da área de odores. O trabalho, feito por uma pesquisadora renomada, é um grande incentivo”. Ela acredita também que, a partir da experiência brasileira em produzir mosquitos estéreis, mais mosquitos transgênicos — com o olfato comprometido — poderão ser fabricados. “Mas, para isso, precisaríamos de um centro de produção em escala industrial, e isso demanda dinheiro, mas é possível.”
Palavra de especialista
Efeitos da convivência
“A preferência do Aedes aegypti pelo sangue humano é uma das adaptações do comportamento desse mosquito que saiu do continente africano com os homens, induzidos por atividades de vários interesses, como a colonização. Nesses séculos de convivência com o homem, o inseto adquiriu hábitos sinantrópicos (em torno da habitação humana) e antropofílicos (preferência alimentar pelo homem). Na África, o Aedes aegypti ainda pode ser encontrado em ambientes silvestres, mas, fora daquele continente, é encontrado somente em áreas urbanizadas, sempre em estreito convívio com humanos. Esses insetos acham a fonte de alimento ao perceber o CO2 exalado na respiração das pessoas. Nesse contexto, os odores servem como atrativos ou repelentes. Quando falamos “sangue doce”, há um equívoco porque o sangue de ninguém tem o gosto adocicado. Mas há pessoas que exalam odores mais atrativos para esses mosquitos. Outras têm odores repelentes, que estão ligados à nicotina, à cerveja e ao excesso de vitamina B. Essa percepção olfativa é feita geralmente pelas antenas do bicho; e o paladar, pelos palpos maxilares, localizados no lado externo da boca dos mosquitos.”
Ionizete Garcia, professor do Departamento de Parasitologia da Universidade de Goiás
Ainda mais perigosa
Considerada um problema de saúde pública mundial, a dengue pode estar sendo subestimada. Uma equipe de pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, estima que cerca de 96 milhões de pessoas no mundo apresentam sintomas claros da doença, mas que até 300 milhões podem adquiri-la e não ter o problema diagnosticado. O total de vítimas da dengue chegaria a 396 milhões por ano, bem acima dos 100 milhões estimados pela Organização Mundial da Saúde. Os cientistas desenvolveram um modelo computacional para chegar a esses números. O sistema indicou também que a Ásia é o continente mais atingido pela enfermidade, com 70% dos casos. A América, principalmente o Brasil e o México, respondem por 14% dos casos. Os 16% restantes estão nos demais continentes.
Os vetores
Aedes aegypti
Espécie tropical e subtropical encontrada essencialmente em áreas urbanas, apesar de já ter sido localizada em zonas rurais do Brasil, do México e da Colômbia. Seus ovos medem 1mm e são depositados pelas fêmeas nas paredes de depósitos de água. Podem resistir a períodos de seca e eclodir quando entram em contato com água até 450 dias depois. São transmissores da dengue e da febre amarela.
Anopheles gambiae
É o vetor dos protozoários do gênero Plasmodium, causadores da malária. Chegou ao Brasil na década de 1930 por barcos franceses que vinham do Senegal. Hoje, o país é o que mais sofre com a doença na América Latina, especialmente o estado da Amazônia. Na picada, os mosquitos liberam os parasitas que seguem para o fígado e invadem as hemácias humanas. Os sintomas são febre alta, sudorese e calafrios, palidez, cansaço e dores no corpo.
Paciente recebe tratamento contra a dengue no Paquistão: a Ásia concentra 70% dos casos da doença no mundo
“Identificar como os mosquitos nos diferenciam de outros animais nos ajudará a compreender por que eles são predadores tão seletivos e preferem humanos. Esse processo vai nos ajudar a pensar em formas de prevenir a dengue e diminuir a taxa de transmissão das doenças infecciosas”, destacou a neurobiologista Leslie Vasshall, coordenadora da pesquisa, que foi iniciada em 2009.
Os cientistas utilizaram as enzimas chamadas de dedos de zinco nucleases — zinc finger nucleases (ZFNs), em inglês. As ZFNs são associadas a diversas tarefas celulares, como reparo e alterações na identidade genética. Com elas, foi possível modificar o DNA dos insetos e anular algumas das funções normais do organismo deles. “É uma tecnologia muito avançada de biologia molecular e que demanda grande capital, por isso não é muito comum no Brasil. Consiste em usar enzimas que reconhecem uma região específica do DNA do gene que o cientista deseja trabalhar”, explica Rafaela Vieira Bruno, pesquisadora do Laboratório de Biologia Molecular de Insetos do Instituto Oswaldo Cruz.
No caso do estudo americano, as ZFNs agiram no orco, um gene correceptor de odor. Elas foram injetadas em embriões de mosquitos que, ao se tornarem adultos, ficaram com o senso olfativo menos apurado. Aqueles com mutações no orco preferiram o odor de porquinhos-da-índia ao de humanos, mesmo na presença do dióxido de carbono, condição que ajuda os mosquitos a perceberem a presença de pessoas. No entanto, o experimento não concluiu se essa confusão nos sentidos é resultado de uma falta de sensibilidade ao “mau cheiro” do porquinho-da-índia, ao “aroma” das pessoas ou à soma dos dois casos.
Os mosquitos mutantes também apresentaram uma resposta diferente ao DEET — princípio ativo da maior parte dos repelentes. Os pesquisadores expuseram dois braços humanos às picadas — um deles com uma solução de 10% do repelente e outro sem. Os insetos voaram igualmente para os dois braços, o que sugere que eles não conseguiram perceber a substância pelo olfato. Apesar disso, ao pousarem no braço com o produto, rapidamente levantaram voo. “Isso nos diz que ainda há dois mecanismos para a percepção do DEET. Um é sentido pelo ar e o outro se dá quando o mosquito toca a pele”, concluiu Vashall.
No Brasil
No ano passado, o Ministério da Saúde inaugurou, na cidade de Juazeiro, na Bahia, uma fábrica capaz de produzir Aedes aegypti geneticamente alterados para auxiliar no combate à dengue. Os machos transgênicos, quando copulam com as fêmeas, geram filhotes que não conseguem chegar à fase adulta, comprometendo, assim, a transmissão da doença. Vasshall destaca, no entanto, que os mosquitos americanos são diferentes dos produzidos no Brasil. “Não inserimos outros genes no mosquito, e as enzimas trabalharam com o material genético que já existia neles. Elas destroem seletivamente o que não queremos para trabalhar sem influência de DNA exógeno (estranho ao organismo)”, esclarece a neurobiologista.
O experimento americano ainda não foi realizado fora do laboratório, etapa que, para Ionizete Garcia, professor do Departamento de Parasitologia da Universidade Federal de Goiás, é importante para as futuras aplicações da descoberta. “Os resultados são interessantes e representam possibilidades de um passo nessa estrada imensa da investigação do Aedes aegypti. Foi mostrada uma redução da atividade olfativa, mas devemos ter cautela, pois os resultados foram obtidos em laboratório. Quando forem aplicados em campo, teremos uma informação mais próxima da realidade, porque serão incorporadas múltiplas variáveis que interferirão no processo”, pontua Garcia. Apesar disso, ele ressalta que, “no ambiente urbano, a maior oferta de alimentação ainda é o ser humano, e a proposta do trabalho indica que o mosquito, perdendo essa preferência alimentar, poderia também sugar outro animal”.
Rafaela Vieira destaca que o trabalho desenvolvido no instituto americano ajudará os pesquisadores a entender a preferência desses insetos em se alimentar de sangue humano. “Conhecendo bem essas moléculas, podemos tentar encontrar outras estratégias de controlar as doenças, pois ele (o estudo) elucida muitos pontos da área de odores. O trabalho, feito por uma pesquisadora renomada, é um grande incentivo”. Ela acredita também que, a partir da experiência brasileira em produzir mosquitos estéreis, mais mosquitos transgênicos — com o olfato comprometido — poderão ser fabricados. “Mas, para isso, precisaríamos de um centro de produção em escala industrial, e isso demanda dinheiro, mas é possível.”
Palavra de especialista
Efeitos da convivência
“A preferência do Aedes aegypti pelo sangue humano é uma das adaptações do comportamento desse mosquito que saiu do continente africano com os homens, induzidos por atividades de vários interesses, como a colonização. Nesses séculos de convivência com o homem, o inseto adquiriu hábitos sinantrópicos (em torno da habitação humana) e antropofílicos (preferência alimentar pelo homem). Na África, o Aedes aegypti ainda pode ser encontrado em ambientes silvestres, mas, fora daquele continente, é encontrado somente em áreas urbanizadas, sempre em estreito convívio com humanos. Esses insetos acham a fonte de alimento ao perceber o CO2 exalado na respiração das pessoas. Nesse contexto, os odores servem como atrativos ou repelentes. Quando falamos “sangue doce”, há um equívoco porque o sangue de ninguém tem o gosto adocicado. Mas há pessoas que exalam odores mais atrativos para esses mosquitos. Outras têm odores repelentes, que estão ligados à nicotina, à cerveja e ao excesso de vitamina B. Essa percepção olfativa é feita geralmente pelas antenas do bicho; e o paladar, pelos palpos maxilares, localizados no lado externo da boca dos mosquitos.”
Ionizete Garcia, professor do Departamento de Parasitologia da Universidade de Goiás
Ainda mais perigosa
Considerada um problema de saúde pública mundial, a dengue pode estar sendo subestimada. Uma equipe de pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, estima que cerca de 96 milhões de pessoas no mundo apresentam sintomas claros da doença, mas que até 300 milhões podem adquiri-la e não ter o problema diagnosticado. O total de vítimas da dengue chegaria a 396 milhões por ano, bem acima dos 100 milhões estimados pela Organização Mundial da Saúde. Os cientistas desenvolveram um modelo computacional para chegar a esses números. O sistema indicou também que a Ásia é o continente mais atingido pela enfermidade, com 70% dos casos. A América, principalmente o Brasil e o México, respondem por 14% dos casos. Os 16% restantes estão nos demais continentes.
Os vetores
Transmissor da dengue e da febre amarela
Espécie tropical e subtropical encontrada essencialmente em áreas urbanas, apesar de já ter sido localizada em zonas rurais do Brasil, do México e da Colômbia. Seus ovos medem 1mm e são depositados pelas fêmeas nas paredes de depósitos de água. Podem resistir a períodos de seca e eclodir quando entram em contato com água até 450 dias depois. São transmissores da dengue e da febre amarela.
Brasil é o que mais sofre com a malária na América Latina
É o vetor dos protozoários do gênero Plasmodium, causadores da malária. Chegou ao Brasil na década de 1930 por barcos franceses que vinham do Senegal. Hoje, o país é o que mais sofre com a doença na América Latina, especialmente o estado da Amazônia. Na picada, os mosquitos liberam os parasitas que seguem para o fígado e invadem as hemácias humanas. Os sintomas são febre alta, sudorese e calafrios, palidez, cansaço e dores no corpo.