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Brasil produz medicamento para anemia falciforme sem efeitos tóxicos do tratamento convencional

Pesquisadores exploram propriedades de medicamentos já usados para tratar a doença e desenvolvem substância que não causa os efeitos adversos das drogas originais, como convulsão e infertilidade. Testes com humanos dependem de financiamento

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Correio Braziliense Publicação:30/09/2013 15:00Atualização:30/09/2013 18:11
Pela primeira vez, um medicamento consegue agir de maneira simultânea em duas frentes de tratamento para amenizar a anemia falciforme, além de não causar os efeitos tóxicos característicos das intervenções tradicionais. A façanha é fruto da cooperação entre pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Batizado de Lapdesf1, o fármaco teve a eficácia comprovada em testes com camundongos geneticamente modificados e pode revolucionar o tratamento de uma doença que causa a deformação das hemácias.

Clique na imagem para ampliá-la e saiba mais (Valdo Virgo/CB/D.A Press)
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Jean Leandro dos Santos, da Unesp, foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da substância. Ele conta que a ideia inicial de desenvolver pesquisas voltadas para o tratamento da doença veio de um aluno da universidade que tem o problema. “Começamos a trabalhar em uma linha que eliminasse os efeitos maléficos existentes nos compostos atuais”, explica. “Essa substância vai representar um grande avanço. Existe ainda a possibilidade de usá-la para outras doenças hematológicas.”

Os pesquisadores exploraram as propriedades existentes em duas drogas: a hidroxiureia e a talidomida. Os dois compostos, apesar de colaborarem para reduzir os efeitos da anemia falciforme, apresentam efeitos adversos fortes. A hidroxiureia, principal substância utilizada no tratamento contra a enfermidade hoje, como outros quimioterápicos, pode causar náuseas, convulsões, dores de cabeça e consequências mais graves, como diminuir a produção de células da medula óssea e afetar as células reprodutivas. Usada no tratamento de câncer, hanseníase e lúpus, a talidomida teve a propriedade anti-inflamatória explorada.

“Desde o início, pensamos em produzir uma substância sem os efeitos tóxicos. Descartamos o que havia de negativo na estrutura química da hidroxiureia e da talidomida e utilizamos as propriedades benéficas”, conta Santos, reforçando, em seguida, que o Lapdesf1 age ao mesmo tempo em duas áreas de abordagem contra a doença.

Doutora em hematologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Maria Stella Figueiredo afirma que a ideia de juntar as características dos dois medicamentos representa uma inovação. A especialista explica que, apesar de ter se mostrado efetiva no tratamento da doença falciforme, a hidroxiureia pode levar a complicações indesejáveis. “A ideia de associá-la à talidomida por sua ação anti-inflamatória constitui uma inovação no tratamento dessa doença.”

A anemia falciforme, de acordo com Figueiredo, é negligenciada, e isso pode ser observado pelo número baixo de estudos que buscam formas de tratamento. “Uma droga que melhore as condições da doença é sempre bem-vinda devido ao baixo número de opções terapêuticas que temos”, avalia. Apesar de algumas evoluções no diagnóstico e de uma compreensão melhor do mal hereditário, a falta de melhores possibilidades de tratamento contribui para que o quadro dos pacientes com anemia falciforme seja preocupante. É o que acredita a professora da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em hematologia pediátrica Silvana Fahel. “Ela continua a apresentar altos índices de mortalidade, pois as medidas terapêuticas ainda são insuficientes.”

Em ratos

A Unicamp foi responsável por grande parte da fase de testes do novo medicamento. O Lapdesf1 foi colocado à prova em camundongos geneticamente modificados com um quadro muito próximo ao da anemia falciforme. Após estudos preliminares, os pesquisadores da universidade firmaram uma colaboração internacional para testar o fármaco nos camundongos transgênicos. Os testes aconteceram durante um período de três meses em um laboratório da Georgia Regents University, nos Estados Unidos.

Os resultados confirmaram a eficácia do fármaco para o tratamento da doença e a ausência dos efeitos tóxicos. “O Lapdesf1 foi capaz de aumentar significativamente os níveis de hemoglobina fetal para a anemia falciforme. Além disso, foi possível verificar a potente ação anti-inflamatória”, afirma Carolina Lanaro, pesquisadora do Laboratório de Hemoglobina e Genoma do Hemocentro. A hemoglobina fetal reduz o risco de obstrução dos vasos sanguíneos, a vaso-oclusão, que desencadeia as crises de dor.

Os pesquisadores buscam agora parcerias que viabilizem o teste em pacientes humanos, a última fase do projeto. “Sem essa colaboração, torna-se impossível realizarmos esses testes”, afirma Lanaro. “Como em termos de saúde pública o composto pode ser muito importante, o próprio governo seria um parceiro importante”, complementa Jean Leandro dos Santos, da Unesp.

A anemia falciforme é uma das doenças hereditárias mais prevalentes no Brasil. Estima-se que existam mais de 50 mil afetados e que, anualmente, nasçam 3 mil crianças com a enfermidade e 180 mil com o traço falcêmico, pessoas que recebem dos pais um gene da hemoglobina defeituosa e outro da hemoglobina normal. Ainda não é possível afirmar em quanto tempo o fármaco estará disponível para o tratamento, mas a previsão dos pesquisadores, segundo o Santos, é de que leve de quatro a cinco anos.

Proibição e controle
Inicialmente usada como sedativo e contra náuseas, a talidomida foi retirada do mercado em todo mundo nos anos de 1960 após a constatação de que provocava malformações em recém-nascidos. Ele retornou ao mercado nos anos de 1990. No Brasil, porém, o uso é controlado e a produção, restrita a laboratórios públicos.

Três perguntas para...
Sara Olalla Saad, professora do Centro de Hematologia e Hemoterapia da Unicamp


Como a senhora avalia a gravidade e os problemas causados pela anemia falciforme?
Imagine um paciente diabético desde o nascimento. A doença falciforme é pior que isso, pois os efeitos sistêmicos são muito maiores que os do diabetes. A doença piora gradativamente, pois não há como coibir os efeitos enormes da inflamação e da vaso-oclusão a que esses pacientes se expõem diariamente. Essas doenças são muito graves porque são crônicas, se estabelecem próximo ao nascimento e causam deterioração paulatina de todos os órgãos por toda a vida.

Quais são as dificuldades no tratamento?
Não há drogas eficazes. A hidroxiureia melhora um pouco a lesão dos órgãos e as dores crônicas e agudas, mas não resolve totalmente. Além disso, temos sofrido alguma descontinuação da oferta dessa droga, pois ela é relativamente barata e os laboratórios farmacêuticos têm pouco interesse em fabricá-la.

A senhora acredita que a anemia falciforme e o tratamento dela são ainda negligenciados?
Houve grande melhora no entendimento pelo SUS da doença e no apoio ao tratamento, mas precisamos melhorar muito. O país, por exemplo, ainda não aprovou o transplante de medula para esses pacientes. Isso é um absurdo. Nós, os médicos, que vemos o sofrimento desses pacientes ao longo da vida, não conseguimos entender por que não se corta o mal pela raiz. O benefício do transplante, nesses casos, apesar das complicações que podem eventualmente acontecer, é muito maior. Acho que esse é o grande negligenciamento atual da doença.

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