'Suicídio' de células provocado pelo HIV pode ser chave para entender mecanismo da Aids
De acordo com estudo americano, as estruturas infectadas liberam DNA viral que atrai as saudáveis. O mecanismo facilita a propagação do micro-organismo pelo corpo e, consequentemente, o desenvolvimento da Aids
Bruna Sensêve - Correio Braziliense
Publicação:20/12/2013 13:00Atualização: 20/12/2013 09:54
Eles sugerem que um “suicídio” das células imunes infectadas, com o objetivo de proteger o organismo, gera um círculo vicioso. Nele, são liberados sinais inflamatórios atraindo ainda mais soldados para o principal ponto de batalha e diretamente para morte. Esse processo amplia a deficiência do exército de defesa do paciente e leva ao desenvolvimento da Aids. A descoberta foi descrita em dois artigos publicados simultaneamente nas últimas edições das revistas científicas Science e Nature.
No entanto, os primeiros passos dados para essa revelação aconteceram ainda em 2010, em um trabalho publicado na revista Cell. Na época, o mesmo grupo de pesquisadores descobriu que o HIV não é capaz de infectar produtivamente a maioria das células T CD4. Isto é, ele não consegue que a maioria dessas estruturas infectadas passe a replicá-lo. Mas, ainda assim, elas também morrem. Isso porque, na tentativa de manter o organismo longe da infecção viral, elas cometem uma espécie de “suicídio” celular conhecida como apoptose, que leva o sistema imunológico ao colapso e abre caminho para a Aids.
Esse conhecimento foi o ponto de partida para os trabalhos divulgados hoje. Os cientistas acreditavam que, se entendessem como inicia e funciona essa resposta “suicida”, também conseguiriam descobrir uma forma de interromper o processo. Logo, eles perceberam que as descobertas anteriores não estavam completamente corretas. Em vez da apoptose inicialmente caracterizada pela ação da proteína caspase-3, o principal motor de morte dessas células é a enzima caspase-1. Ela mede um outro tipo de morte celular altamente inflamatória, a piroptose, que, além de autodestruir a célula, promove a eliminação da infecção recrutando um número maior de estruturas de defesa do organismo para o ponto de infecção.
Porém, no contágio pelo HIV, essa benéfica função se torna um impulso para um ciclo vicioso devastador. Em vez de “limpar” a infecção inicial, a piroptose faz com que as novas células de defesa sejam atraídas pelos sinais inflamatórios — pequenos pedaços de DNA viral liberado com a autodestruição da célula — para também morrer. O processo seguinte a ser descoberto em busca de bloquear esse mecanismo foi entender como essa inflamação é percebida pelos outros soldados do sistema imune. Para isso, os cientistas desenvolveram uma forma de manipular geneticamente as células T CD4 em amostras de tecido de baço e das amígdalas humanas. A manobra permitiu que eles observassem a ação da proteína IFI16. Quando o efetivo dela era reduzido, a piroptose era inibida.
“Identificamos a IFI16 como o sensor de DNA que envia sinais para caspase-1 e dispara a piroptose”, descreve Kathryn Monroe, uma das autoras do estudo. Ela vê a descoberta como fundamental, uma vez que não é possível bloquear um processo até que todos os passos dele sejam compreendidos. “Ela é essencial para a elaboração de formas de inibir a própria resposta destrutiva do corpo ao HIV. Nós temos grandes esperanças para o próximo ensaio clínico”, adianta Monroe.
Mudança de alvo
Nos artigos, os pesquisadores demonstram, em cultura de células, que um inibidor de caspase inflamatória pode suprimir a morte de células CD4 + e a inflamação. O inibidor pode ser o indicativo de uma nova estratégia terapêutica para o tratamento da infecção em que, pela primeira vez, o alvo é o hospedeiro e não o vírus.
Para a infectologista Mylva Fonsi , do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids do Estado de São Paulo, as descobertas são bastante interessantes e significativas, mas ela ainda titubeia com a afirmação de que esse tipo de intervenção esteja próxima da clínica. “A primeira coisa é o quão distante estamos de encontrar uma droga que possa agir nesse caminho, o que, com certeza, será um adjuvante de terapia muito valioso. Mas não acredito que vamos conseguir controlar o HIV só usando drogas para atuarem nesses sítios. Ainda serão necessárias as terapias combinadas.” Fonsi também ressalta que esses processos não são usados pelo corpo apenas mediante a infecção pelo HIV, mas também em outras situações “a partir do momento em que os dois forem inibidos, qual o prejuízo que poderá ser gerado?”
Teste com droga
A fase 2 de testes clínicos vai testar a capacidade de um anti-inflamatório existente e já aprovado para bloquear a inflamação e a piroptose em pessoas infectadas pelo HIV. Ela acredita que o anti-inflamatório também pode fornecer uma terapia de ponte para quem não tem acesso aos antirretrovirais, reduzindo, ao mesmo tempo, a inflamação persistente em infectados pelo HIV que estão sob tratamento. Ao reduzir a inflamação, a droga também poderia impedir a expansão dos reservatórios com vírus latente, outro grande desafio para a pesquisa em HIV por ser um dos motivos que impedem a cura.
O pesquisador do Instituto de Investigação em Imunologia do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (iii-INCT) Edecio Cunha Neto ressalta que um dos pontos mais relevantes do trabalho é a identificação do anti-inflamatório que potencialmente pode interferir no processo reconhecido pela pesquisa. “O uso dessa droga para o HIV seria razoavelmente fácil e rápido. Seria um tipo de droga usada não contra a infecção, mas contra a progressão para a Aids.” Cunha Neto detalha que, em seu laboratório, também são estudados os fatores que levam pessoas com HIV ao desenvolvimento da doença. “Temos visto que alguns aspectos moleculares são muito diferentes em pacientes que evoluem muito rápido quando comparados com aqueles que demoram às vezes décadas para isso.”
Fora do sangue
Atualmente, é possível reduzir a carga viral a níveis indetectáveis no sangue, mas o vírus permanece no organismo em locais denominados reservatórios ou santuários. Ali, estão células infectadas do sistema imunológico que não passam na corrente sanguínea. Estão no cérebro, no intestino ou em outras áreas em que a droga não consegue atuar adequadamente. Pesquisas apontam que, ao interromper o tratamento contra a infecção, uma nova pode surgir em decorrência da carga viral presente nesses reservatórios.
Saiba mais...
Estar infectado pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) não quer dizer ter a síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids). Alguns pacientes soropositivos, inclusive, não desenvolvem sintomas da doença por décadas, mesmo sem ser submetido a qualquer tratamento. Esse caminho tenebroso que leva à morte em massa de células do sistema imunológico do infectado e, consequentemente, origina o mal é ainda obscuro para a comunidade médica. Um grupo de pesquisadores do Instituto Gladstone de Virologia e Imunologia, dos Estados Unidos, relatou nesta sexta-feira uma nova e importante parte desse quebra-cabeça.- SUS terá teste rápido para aids feito com fluido oral em 2014
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Eles sugerem que um “suicídio” das células imunes infectadas, com o objetivo de proteger o organismo, gera um círculo vicioso. Nele, são liberados sinais inflamatórios atraindo ainda mais soldados para o principal ponto de batalha e diretamente para morte. Esse processo amplia a deficiência do exército de defesa do paciente e leva ao desenvolvimento da Aids. A descoberta foi descrita em dois artigos publicados simultaneamente nas últimas edições das revistas científicas Science e Nature.
No entanto, os primeiros passos dados para essa revelação aconteceram ainda em 2010, em um trabalho publicado na revista Cell. Na época, o mesmo grupo de pesquisadores descobriu que o HIV não é capaz de infectar produtivamente a maioria das células T CD4. Isto é, ele não consegue que a maioria dessas estruturas infectadas passe a replicá-lo. Mas, ainda assim, elas também morrem. Isso porque, na tentativa de manter o organismo longe da infecção viral, elas cometem uma espécie de “suicídio” celular conhecida como apoptose, que leva o sistema imunológico ao colapso e abre caminho para a Aids.
Esse conhecimento foi o ponto de partida para os trabalhos divulgados hoje. Os cientistas acreditavam que, se entendessem como inicia e funciona essa resposta “suicida”, também conseguiriam descobrir uma forma de interromper o processo. Logo, eles perceberam que as descobertas anteriores não estavam completamente corretas. Em vez da apoptose inicialmente caracterizada pela ação da proteína caspase-3, o principal motor de morte dessas células é a enzima caspase-1. Ela mede um outro tipo de morte celular altamente inflamatória, a piroptose, que, além de autodestruir a célula, promove a eliminação da infecção recrutando um número maior de estruturas de defesa do organismo para o ponto de infecção.
Porém, no contágio pelo HIV, essa benéfica função se torna um impulso para um ciclo vicioso devastador. Em vez de “limpar” a infecção inicial, a piroptose faz com que as novas células de defesa sejam atraídas pelos sinais inflamatórios — pequenos pedaços de DNA viral liberado com a autodestruição da célula — para também morrer. O processo seguinte a ser descoberto em busca de bloquear esse mecanismo foi entender como essa inflamação é percebida pelos outros soldados do sistema imune. Para isso, os cientistas desenvolveram uma forma de manipular geneticamente as células T CD4 em amostras de tecido de baço e das amígdalas humanas. A manobra permitiu que eles observassem a ação da proteína IFI16. Quando o efetivo dela era reduzido, a piroptose era inibida.
“Identificamos a IFI16 como o sensor de DNA que envia sinais para caspase-1 e dispara a piroptose”, descreve Kathryn Monroe, uma das autoras do estudo. Ela vê a descoberta como fundamental, uma vez que não é possível bloquear um processo até que todos os passos dele sejam compreendidos. “Ela é essencial para a elaboração de formas de inibir a própria resposta destrutiva do corpo ao HIV. Nós temos grandes esperanças para o próximo ensaio clínico”, adianta Monroe.
Mudança de alvo
Nos artigos, os pesquisadores demonstram, em cultura de células, que um inibidor de caspase inflamatória pode suprimir a morte de células CD4 + e a inflamação. O inibidor pode ser o indicativo de uma nova estratégia terapêutica para o tratamento da infecção em que, pela primeira vez, o alvo é o hospedeiro e não o vírus.
Para a infectologista Mylva Fonsi , do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids do Estado de São Paulo, as descobertas são bastante interessantes e significativas, mas ela ainda titubeia com a afirmação de que esse tipo de intervenção esteja próxima da clínica. “A primeira coisa é o quão distante estamos de encontrar uma droga que possa agir nesse caminho, o que, com certeza, será um adjuvante de terapia muito valioso. Mas não acredito que vamos conseguir controlar o HIV só usando drogas para atuarem nesses sítios. Ainda serão necessárias as terapias combinadas.” Fonsi também ressalta que esses processos não são usados pelo corpo apenas mediante a infecção pelo HIV, mas também em outras situações “a partir do momento em que os dois forem inibidos, qual o prejuízo que poderá ser gerado?”
Teste com droga
A fase 2 de testes clínicos vai testar a capacidade de um anti-inflamatório existente e já aprovado para bloquear a inflamação e a piroptose em pessoas infectadas pelo HIV. Ela acredita que o anti-inflamatório também pode fornecer uma terapia de ponte para quem não tem acesso aos antirretrovirais, reduzindo, ao mesmo tempo, a inflamação persistente em infectados pelo HIV que estão sob tratamento. Ao reduzir a inflamação, a droga também poderia impedir a expansão dos reservatórios com vírus latente, outro grande desafio para a pesquisa em HIV por ser um dos motivos que impedem a cura.
O pesquisador do Instituto de Investigação em Imunologia do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (iii-INCT) Edecio Cunha Neto ressalta que um dos pontos mais relevantes do trabalho é a identificação do anti-inflamatório que potencialmente pode interferir no processo reconhecido pela pesquisa. “O uso dessa droga para o HIV seria razoavelmente fácil e rápido. Seria um tipo de droga usada não contra a infecção, mas contra a progressão para a Aids.” Cunha Neto detalha que, em seu laboratório, também são estudados os fatores que levam pessoas com HIV ao desenvolvimento da doença. “Temos visto que alguns aspectos moleculares são muito diferentes em pacientes que evoluem muito rápido quando comparados com aqueles que demoram às vezes décadas para isso.”
Fora do sangue
Atualmente, é possível reduzir a carga viral a níveis indetectáveis no sangue, mas o vírus permanece no organismo em locais denominados reservatórios ou santuários. Ali, estão células infectadas do sistema imunológico que não passam na corrente sanguínea. Estão no cérebro, no intestino ou em outras áreas em que a droga não consegue atuar adequadamente. Pesquisas apontam que, ao interromper o tratamento contra a infecção, uma nova pode surgir em decorrência da carga viral presente nesses reservatórios.