Vitamina D: nova fronteira da medicina?
Saúde se vende em cápsulas? A verdade é que a ciência ainda diverge sobre o assunto. Dosagens, efeitos e interações são objeto de inúmeras pesquisas em andamento. Conheça as mais promissoras - e também as que criticam veementemente o consumo indiscriminado de complexos vitamínicos
Carolina Samorano - Revista do CB
Publicação:03/02/2014 15:02Atualização: 03/02/2014 08:58
Nos meses seguintes, a servidora sentiu o peso do diagnóstico. Foi aposentada por invalidez, perdeu os movimentos do braço esquerdo, deixou de andar, parou de sorrir. Mais tarde, mudou-se para uma casa térrea, onde não precisasse subir escadas, pois as quedas eram cada vez mais frequentes. Por fim, ficou de cama. “Eu ia morrer”, conta, com os olhos marejados. A esclerose múltipla possui uma escala de avaliação do estado do paciente que varia de 1 a 10, chamada EDSS. O primeiro estágio é o exame sem nenhuma anormalidade e o último, a morte pela doença.
Com um ano e meio de tratamento, Queli se encontrava no oitavo estágio. Tinha surtos da doença a cada 45 dias, dos quais se recuperava com a chamada pulsoterapia — administração de altas doses de corticoide por via intravenosa. E também com o uso de interferon, medicamento supressor do sistema imunológico e um dos mais caros da indústria farmacêutica. Trata-se de um remédio “biológico”, obtido a partir de células vivas do organismo. Como é de altíssimo custo, o inferferon é fornecido gratuitamente pelo governo.
Sem opções, Queli sofria com as reações adversas (dores de cabeça, calafrios, febre, anemia e alteração da pressão arterial), mas não abria mão das doses do medicamento. Além das ampolas do interferon, eram cerca de 35 comprimidos todos os dias para controlar as dores causadas pela esclerose. “Eu cheguei a um ponto em que eu não aguentava mais. Jamais teria coragem de tirar a minha vida, mas tinha vontade de morrer”, diz.
Até que, pesquisando sobre a doença, Queli chegou à vitamina D, substância que, no Brasil, tem sido usada de forma pioneira há mais de uma década no tratamento de esclerose múltipla e outras doenças neurológicas no consultório do neurologista Cícero Galli Coimbra, da Escola Paulista de Medicina, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O médico tem recebidos colegas e pacientes do mundo inteiro curiosos com o método que, de tão simples, causa estranheza.
O tratamento consiste, basicamente, em ministrar altas dosagens de vitamina D. Os pacientes em tratamento tomam milhares de unidades da substância por dia, de acordo com uma avaliação individualizada. Queli toma 120 mil. A maioria dos suplementados vitamínicos vendidos em farmácias no Brasil não têm mais do que 200 unidades.
A vitamina D seria muito mais importante do que se imaginava. Estaria ligada não apenas à maior absorção de cálcio — por isso, combate a osteoporose —, mas a inúmeras outras funções no organismo. Segundo Cícero Galli, exatamente 229. A conclusão é reforçada por alguns estudos. Em 2010, pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, sequenciaram o código genético humano a fim de averiguar que regiões do DNA apresentavam receptores para a substância. Encontraram 2.776, o que prova, segundo Andreas Heger, um dos coordenadores do trabalho, a grande influência que ela teria na manutenção da saúde.
“Múltiplas linhas de evidências sugerem que a vitamina D pode ser importante no risco e na progressão da esclerose múltipla”, disse à Revista Alberto Ascherio, professor de epidemiologia e nutrição em Harvard e coordenador de estudo publicado em janeiro passado. “Em 2006, nós relatamos que adultos saudáveis com hipovitaminose D têm mais risco de ter a doença, um resultado que foi confirmado por estudos posteriores”, continua. No entanto, ele segue cético quanto ao tratamento com altas dosagens. “Elas podem causar hipercalcemia e serem bastante perigosas. Além disso, não existe evidência de que superdosagem seja benéfica em indivíduos com esclerose”, pondera.
Não é a opinião compartilhada pelo médico e deputado federal Walter Feldman (PSDB-SP), que diz que, depois de décadas afastado dos consultórios para se dedicar à vida pública, retornou à prática clínica para se dedicar aos estudos com a vitamina, que ele garante, é a “nova fronteira da medicina”. “Acredito que a vitamina D tenha sido tratada de maneira muito secundária até hoje”, analisa.
A maioria dos médicos neurologistas, no entanto, é reticente quanto ao tratamento idealizado pelo doutor Cícero na Unifesp. O argumento é que o protocolo ainda não tem comprovação científica, o que Galli e Feldman justificam dizendo que o procedimento exigido é antiético. “O que se pede é um teste chamado duplo-cego, em que você dá vitamina D para alguns pacientes, placebo para outros, e compara os resultados. Se eu sei que a vitamina D pode beneficiar muito os portadores de esclerose múltipla, não posso dar placebo a meus pacientes”, argumenta Feldman.
A primeira vez que Queli entrou andando no consultório do neurologista com quem fazia acompanhamento em Brasília, depois de começar a se tratar com os comprimidos de vitamina D, ouviu uma bronca. “Ele me viu andando, de pé na frente dele. E, mesmo assim, levantou da cadeira, gritou comigo, me chamou de louca e disse que eu deveria procurar um psiquiatra”, lembra, emocionada. Ela conta que, 30 dias depois do primeiro comprimido de vitamina D, já conseguia ficar em pé. Com 45 dias, pegou pela primeira vez a neta, hoje com um ano, no colo.
O estudante de pós-graduação Artur Costa, 25 anos, também enfrentou o ceticismo dos médicos quando decidiu não fazer o tratamento com interferon logo que recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla. Aos 24, recém-saído da faculdade, a notícia veio como uma bomba para ele e para a família. “Eu tive muito medo, chorei muito. Quanto mais estudava sobre a doença, mais assustado ficava com meu futuro”, conta. Uma amiga da família foi quem avisou sobre o tratamento com a vitamina D. Mesmo com as receitas das vitaminas na mão, Artur decidiu tentar encarar o tratamento com o interferon. Durou uma semana. “Eu tomava sempre à noite e não conseguia dormir com febre e calafrios. No dia seguinte, não era ninguém”, lembra.
Quando decidiu tentar as vitaminas, ouviu do neurologista que, se levasse isso a sério, não receberia mais o acompanhamento por exames. “Insisti, me ofereci como cobaia, e ele aceitou. Meus exames dão normais. Ainda assim, ele não admite que foram as vitaminas.” Um ano depois, segue adepto da vitamina manipulada. Um vidro com o suficiente para um mês e meio de tratamento sai a R$ 70.
Na rotina, além das melhoras dos sintomas — os pés e os braços dormentes e a vista embaçada são passado —, Artur incorporou novos hábitos: luta muay thai e faz caminhadas. “Hoje, a doença não me assusta mais”, garante. E ele já tem data marcada para a alta do tratamento: abril de 2015.
Nome fantasia
Embora ainda carregue consigo o nome de batismo, a vitamina D deixou de ser classificada como vitamina quando descobriu-se que, na verdade, que ela age como um hormônio esteroide no organismo. Tanto que, hoje, alguns médicos preferem chamá-la por outro nome: colecalciferol. Entre todas as outras substâncias chamadas “vitaminas”, é uma das poucas que o organismo não produz: a forma mais fácil de repô-la é a exposição ao sol, já que poucos alimentos contêm a substância. “A gente conserva o nome de vitamina D para não fazer confusão”, resume o médico nutrólogo Edison Saraiva. “Já houve tentativa de classificá-la como corticosteroide ou neurotransmissor. Ela é um alimento único”, diz. Sabe-se que está presente em alguns peixes de água fria e no óleo de fígado de bacalhau. “Porém, você precisaria de 30 colheres de óleo por dia para ter a quantidade necessária. O melhor é tomar sol”, garante.
Banho de sol e iogurte
Até como deputado, Feldman militou pela vitamina. Ele é autor do Projeto de Lei nº 5363/13, que estabelece um período mínimo diário de exposição ao sol para pessoas que passam o dia em confinamento — seja em escolas, escritórios ou hospitais. E também do PL nº 5641/13, que pleiteia a obrigatoriedade de que o leite, o iogurte e as bebidas lácteas sejam enriquecidas com vitamina D. Atualmente, ambos tramitam na Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados. “Nos últimos anos, a população mundial foi dramaticamente orientada a não tomar sol, que é a única forma de se produzir a vitamina D. Se isso não for possível, então que o governo distribua gratuitamente suplemento de vitamina à população”, defende.
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Há cerca de três anos, a servidora pública aposentada Queli Soares, de 45 anos, recebeu um diagnóstico que tinha tudo para mudar sua vida para sempre: esclerose múltipla, uma doença até hoje tida pela medicina como crônica, incurável e degenerativa, geralmente associada a cadeiras de roda, andadores, camas, respiradores e toda sorte de aparatos médicos usados para prolongar a vida do paciente.- Entenda por que o consumo de vitaminas virou uma febre que escapa do racional
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Nos meses seguintes, a servidora sentiu o peso do diagnóstico. Foi aposentada por invalidez, perdeu os movimentos do braço esquerdo, deixou de andar, parou de sorrir. Mais tarde, mudou-se para uma casa térrea, onde não precisasse subir escadas, pois as quedas eram cada vez mais frequentes. Por fim, ficou de cama. “Eu ia morrer”, conta, com os olhos marejados. A esclerose múltipla possui uma escala de avaliação do estado do paciente que varia de 1 a 10, chamada EDSS. O primeiro estágio é o exame sem nenhuma anormalidade e o último, a morte pela doença.
Com um ano e meio de tratamento, Queli se encontrava no oitavo estágio. Tinha surtos da doença a cada 45 dias, dos quais se recuperava com a chamada pulsoterapia — administração de altas doses de corticoide por via intravenosa. E também com o uso de interferon, medicamento supressor do sistema imunológico e um dos mais caros da indústria farmacêutica. Trata-se de um remédio “biológico”, obtido a partir de células vivas do organismo. Como é de altíssimo custo, o inferferon é fornecido gratuitamente pelo governo.
No dia em que Queli Soares demonstrou ao médico que havia voltado a andar, foi repreendida: médicos se recusam a acreditar no potencial da vitamina D
Até que, pesquisando sobre a doença, Queli chegou à vitamina D, substância que, no Brasil, tem sido usada de forma pioneira há mais de uma década no tratamento de esclerose múltipla e outras doenças neurológicas no consultório do neurologista Cícero Galli Coimbra, da Escola Paulista de Medicina, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O médico tem recebidos colegas e pacientes do mundo inteiro curiosos com o método que, de tão simples, causa estranheza.
O tratamento consiste, basicamente, em ministrar altas dosagens de vitamina D. Os pacientes em tratamento tomam milhares de unidades da substância por dia, de acordo com uma avaliação individualizada. Queli toma 120 mil. A maioria dos suplementados vitamínicos vendidos em farmácias no Brasil não têm mais do que 200 unidades.
A vitamina D seria muito mais importante do que se imaginava. Estaria ligada não apenas à maior absorção de cálcio — por isso, combate a osteoporose —, mas a inúmeras outras funções no organismo. Segundo Cícero Galli, exatamente 229. A conclusão é reforçada por alguns estudos. Em 2010, pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, sequenciaram o código genético humano a fim de averiguar que regiões do DNA apresentavam receptores para a substância. Encontraram 2.776, o que prova, segundo Andreas Heger, um dos coordenadores do trabalho, a grande influência que ela teria na manutenção da saúde.
“Múltiplas linhas de evidências sugerem que a vitamina D pode ser importante no risco e na progressão da esclerose múltipla”, disse à Revista Alberto Ascherio, professor de epidemiologia e nutrição em Harvard e coordenador de estudo publicado em janeiro passado. “Em 2006, nós relatamos que adultos saudáveis com hipovitaminose D têm mais risco de ter a doença, um resultado que foi confirmado por estudos posteriores”, continua. No entanto, ele segue cético quanto ao tratamento com altas dosagens. “Elas podem causar hipercalcemia e serem bastante perigosas. Além disso, não existe evidência de que superdosagem seja benéfica em indivíduos com esclerose”, pondera.
Não é a opinião compartilhada pelo médico e deputado federal Walter Feldman (PSDB-SP), que diz que, depois de décadas afastado dos consultórios para se dedicar à vida pública, retornou à prática clínica para se dedicar aos estudos com a vitamina, que ele garante, é a “nova fronteira da medicina”. “Acredito que a vitamina D tenha sido tratada de maneira muito secundária até hoje”, analisa.
A maioria dos médicos neurologistas, no entanto, é reticente quanto ao tratamento idealizado pelo doutor Cícero na Unifesp. O argumento é que o protocolo ainda não tem comprovação científica, o que Galli e Feldman justificam dizendo que o procedimento exigido é antiético. “O que se pede é um teste chamado duplo-cego, em que você dá vitamina D para alguns pacientes, placebo para outros, e compara os resultados. Se eu sei que a vitamina D pode beneficiar muito os portadores de esclerose múltipla, não posso dar placebo a meus pacientes”, argumenta Feldman.
A primeira vez que Queli entrou andando no consultório do neurologista com quem fazia acompanhamento em Brasília, depois de começar a se tratar com os comprimidos de vitamina D, ouviu uma bronca. “Ele me viu andando, de pé na frente dele. E, mesmo assim, levantou da cadeira, gritou comigo, me chamou de louca e disse que eu deveria procurar um psiquiatra”, lembra, emocionada. Ela conta que, 30 dias depois do primeiro comprimido de vitamina D, já conseguia ficar em pé. Com 45 dias, pegou pela primeira vez a neta, hoje com um ano, no colo.
O estudante de pós-graduação Artur Costa, 25 anos, também enfrentou o ceticismo dos médicos quando decidiu não fazer o tratamento com interferon logo que recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla. Aos 24, recém-saído da faculdade, a notícia veio como uma bomba para ele e para a família. “Eu tive muito medo, chorei muito. Quanto mais estudava sobre a doença, mais assustado ficava com meu futuro”, conta. Uma amiga da família foi quem avisou sobre o tratamento com a vitamina D. Mesmo com as receitas das vitaminas na mão, Artur decidiu tentar encarar o tratamento com o interferon. Durou uma semana. “Eu tomava sempre à noite e não conseguia dormir com febre e calafrios. No dia seguinte, não era ninguém”, lembra.
Quando decidiu tentar as vitaminas, ouviu do neurologista que, se levasse isso a sério, não receberia mais o acompanhamento por exames. “Insisti, me ofereci como cobaia, e ele aceitou. Meus exames dão normais. Ainda assim, ele não admite que foram as vitaminas.” Um ano depois, segue adepto da vitamina manipulada. Um vidro com o suficiente para um mês e meio de tratamento sai a R$ 70.
Artur Costa também desafiou os prognósticos e reconstruiu a vida com doses diárias da vitamina
Nome fantasia
Embora ainda carregue consigo o nome de batismo, a vitamina D deixou de ser classificada como vitamina quando descobriu-se que, na verdade, que ela age como um hormônio esteroide no organismo. Tanto que, hoje, alguns médicos preferem chamá-la por outro nome: colecalciferol. Entre todas as outras substâncias chamadas “vitaminas”, é uma das poucas que o organismo não produz: a forma mais fácil de repô-la é a exposição ao sol, já que poucos alimentos contêm a substância. “A gente conserva o nome de vitamina D para não fazer confusão”, resume o médico nutrólogo Edison Saraiva. “Já houve tentativa de classificá-la como corticosteroide ou neurotransmissor. Ela é um alimento único”, diz. Sabe-se que está presente em alguns peixes de água fria e no óleo de fígado de bacalhau. “Porém, você precisaria de 30 colheres de óleo por dia para ter a quantidade necessária. O melhor é tomar sol”, garante.
Banho de sol e iogurte
Até como deputado, Feldman militou pela vitamina. Ele é autor do Projeto de Lei nº 5363/13, que estabelece um período mínimo diário de exposição ao sol para pessoas que passam o dia em confinamento — seja em escolas, escritórios ou hospitais. E também do PL nº 5641/13, que pleiteia a obrigatoriedade de que o leite, o iogurte e as bebidas lácteas sejam enriquecidas com vitamina D. Atualmente, ambos tramitam na Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados. “Nos últimos anos, a população mundial foi dramaticamente orientada a não tomar sol, que é a única forma de se produzir a vitamina D. Se isso não for possível, então que o governo distribua gratuitamente suplemento de vitamina à população”, defende.
- 20 minutos de sol sem proteção solar podem produzir 10 mil unidades de vitamina D por dia.