Neurocientista defende que o vício em drogas tem origem social
Carl Hart diz que penalizar os usuários é a pior forma de enfrentar o problema
Humberto Rezende - Estado de Minas
Publicação:22/05/2014 16:00Atualização: 22/05/2014 16:28
Uma hora antes do horário marcado para a palestra, jovens se aglomeram na entrada do Anfiteatro 12 do Instituto Central de Ciências da Universidade de Brasília (UnB). Tão logo as portas se abrem, o auditório é rapidamente ocupado. As escadas e o chão em frente ao palco começam, então, a servir de assento e, alguns minutos depois, não há espaço para mais ninguém. Todos querem ouvir o que Carl Hart tem a dizer.
Desde que lançou, no ano passado, o livro High Price (que ganha agora uma edição brasileira, Um preço muito alto), o neurocientista da Universidade de Columbia, em Nova York, se tornou a principal voz a favor da descriminalização de entorpecentes (o que não significa legalizar, mas parar de considerar o uso um crime). Na obra, tendo como base 24 anos de estudo sobre o tema, Hart busca desconstruir mitos sobre o crack e outras substâncias que levaram, segundo ele argumenta, a uma equivocada e ineficaz guerra às drogas nos Estados Unidos. O saldo dessa ação, diz, foi o pior possível: bilhões de dólares gastos, um consumo cada vez maior e 1,5 milhão de pessoas presas entre 1980 e 2012 — a maioria pobre, negra e detida apenas por portar ou consumir os produtos ilícitos.
Essa é a tese central de Um preço muito alto. O principal motivo de alguém abusar das drogas não é o poder das substâncias de “sequestrarem” o cérebro do indivíduo e torná-lo “escravo” do vício. A origem da dependência está em uma vida ruim, diz o cientista. Sem alternativas melhores, os entorpecentes se tornam uma busca constante, e o vício se instala. Por isso, pobres (e, consequentemente, negros) são aqueles que mais sofrem com o problema, apesar de não consumirem mais que ricos (e, consequentemente, brancos).
O neurocientista faz questão de deixar claro que não ignora o perigo das drogas. Por proporcionarem prazer, elas de fato podem viciar, especialmente pessoas sem outras fontes de satisfação. O problema está na forma de enfrentar a questão. Agir como os EUA fizeram nos anos 1980, endurecendo as leis, criminalizando o uso e aumentando o policiamento, especialmente em bairros negros, sem dar condições igualitárias de vida, são um péssimo caminho, que não resolve a questão e joga na cadeia jovens que, a partir da detenção, deixam de ter a chance de um futuro próspero. “Não estou encorajando vocês a usarem drogas, mas a não julgarem alguém duramente por ele usar drogas”, ressalta aos estudantes.
Pesquisa e história
Para defender seu ponto de vista, Hart recorre a dois instrumentos: pesquisas e a própria história. Seu livro, escrito com ajuda da jornalista Maia Szalavitz, é uma mistura de autobiografia com revisão científica sobre o tema. O professor mostra como cresceu em um gueto de Miami e por pouco não teve problemas com a lei. A sorte de não ter sido flagrado pela polícia nas vezes em que cometeu pequenos crimes ou usou entorpecentes lhe permitiram chegar às Forças Armadas e, por meio delas, à universidade. Poucos de seus amigos tiveram a mesma sorte, o que ajuda a entender por que ele foi o primeiro negro a se tornar professor titular em Columbia.
É no campo científico, porém, que seu maior embate ocorre. O pesquisador apresenta uma série de dados contestando a visão de que o vício é uma doença cerebral, que ataca principalmente pessoas com algum tipo de predisposição genética. “Quando eu era aluno, meus professores diziam que algumas drogas são tão viciantes que um rato pressionava uma alavanca infinitas vezes para ganhar novas doses”, conta. “De fato, alguns estudos mostram isso, mas, se você olhar bem, a única coisa que existe na jaula é a alavanca para ser pressionada. O animal não tem nenhuma outra opção”, completa. Outros estudos, que colocaram roedores em ambientes maiores, em que, além da oferta da droga, havia possibilidade de outras atividades, nenhum animal apresentou consumo tão elevado como os que ficaram isolados em jaulas pequenas.
Outro mito que Hart afirma ser necessário combater é o de que drogas como o crack tiram da pessoa a capacidade de decisão. Em estudos conduzidos por ele, com autorização do governo americano, dependentes recusaram drogas tidas como altamente viciantes, como a metanfetamina, em troca de vales em dinheiro. Quando a oferta era de US$ 20, ninguém preferiu a droga, que seria administrada na hora, dentro do hospital da Universidade de Columbia, sem acarretar nenhuma punição ao participante. Hart reconhece que algumas pessoas podem ter pego o dinheiro e comprado drogas depois, mas frisa que esse não é o ponto. “Mesmo que ele tenha escolhido o dinheiro para gastar depois com drogas, está desconstruída a ideia de que o dependente não é capaz de decidir algo ou planejar a longo prazo”, argumenta.
Por dados como esse, Hart está convencido de que o problema é fundamentalmente social e que incriminar usuários não o resolve, só o piora. Para ele, uma boa saída são modelos como o de Portugal, onde ser flagrado portando entorpecentes não constitui um crime e resulta em uma multa leve e, em alguns casos, na obrigatoriedade de conversar com uma junta médica. Nesses casos, a chance de educar as pessoas para um uso não abusivo, logo menos danoso, é bem maior, defende.
Debate
No Brasil, apesar de a lei prever penas mais brandas a usuários do que para traficantes, adquirir, guardar ou portar drogas ainda é considerado crime, segundo o artigo 28 da Lei Antidrogas (Nº 11.343/2006). As penas previstas são advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Segundo alguns especialistas, o fato de ser crime expõe usuários a abusos policiais, e muitos acabam sendo tratados e presos como traficantes. Atualmente, o Congresso discute o tema. Um projeto de lei de autoria do deputado Osmar Terra (PL 7663/2010) é o que tem gerado mais debates. Entre outras medidas, o texto propõe o aumento da pena para traficantes e a internação compulsória de dependentes químicos, o que gera mais controvérsia.
Carl Hart, na UnB: "Vocês (brasileiros) não têm um problema com o crack. Vocês têm problemas maiores, de educação, de bons empregos"
Desde que lançou, no ano passado, o livro High Price (que ganha agora uma edição brasileira, Um preço muito alto), o neurocientista da Universidade de Columbia, em Nova York, se tornou a principal voz a favor da descriminalização de entorpecentes (o que não significa legalizar, mas parar de considerar o uso um crime). Na obra, tendo como base 24 anos de estudo sobre o tema, Hart busca desconstruir mitos sobre o crack e outras substâncias que levaram, segundo ele argumenta, a uma equivocada e ineficaz guerra às drogas nos Estados Unidos. O saldo dessa ação, diz, foi o pior possível: bilhões de dólares gastos, um consumo cada vez maior e 1,5 milhão de pessoas presas entre 1980 e 2012 — a maioria pobre, negra e detida apenas por portar ou consumir os produtos ilícitos.
Saiba mais...
Há uma semana no país para divulgar seu livro, Hart tem a sensação de que o Brasil caminha para um erro semelhante: combater a questão priorizando a repressão policial em vez de atacar a raiz do mal, ou seja, as desigualdades sociais, que tornam a população pobre muito mais suscetível ao vício. Em frente à plateia de universitários, apresenta uma foto que ele mesmo tirou durante a visita ao Rio de Janeiro, alguns dias atrás. A imagem mostra um carro da Polícia Militar com a inscrição “Crack, é possível vencer”. “Essa é uma afirmação ridícula. Vocês (brasileiros) não têm um problema com o crack. Vocês têm problemas maiores, de educação, de bons empregos”, afirma, antes de ouvir a audiência explodir em aplausos, manifestação que se repete diversas vezes ao longo de sua fala, realizada na tarde da quinta-feira passada como parte do projeto UnB Futuro.- Álcool, a droga lícita que mata 3 milhões de pessoas
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Essa é a tese central de Um preço muito alto. O principal motivo de alguém abusar das drogas não é o poder das substâncias de “sequestrarem” o cérebro do indivíduo e torná-lo “escravo” do vício. A origem da dependência está em uma vida ruim, diz o cientista. Sem alternativas melhores, os entorpecentes se tornam uma busca constante, e o vício se instala. Por isso, pobres (e, consequentemente, negros) são aqueles que mais sofrem com o problema, apesar de não consumirem mais que ricos (e, consequentemente, brancos).
O neurocientista faz questão de deixar claro que não ignora o perigo das drogas. Por proporcionarem prazer, elas de fato podem viciar, especialmente pessoas sem outras fontes de satisfação. O problema está na forma de enfrentar a questão. Agir como os EUA fizeram nos anos 1980, endurecendo as leis, criminalizando o uso e aumentando o policiamento, especialmente em bairros negros, sem dar condições igualitárias de vida, são um péssimo caminho, que não resolve a questão e joga na cadeia jovens que, a partir da detenção, deixam de ter a chance de um futuro próspero. “Não estou encorajando vocês a usarem drogas, mas a não julgarem alguém duramente por ele usar drogas”, ressalta aos estudantes.
Pesquisa e história
Para defender seu ponto de vista, Hart recorre a dois instrumentos: pesquisas e a própria história. Seu livro, escrito com ajuda da jornalista Maia Szalavitz, é uma mistura de autobiografia com revisão científica sobre o tema. O professor mostra como cresceu em um gueto de Miami e por pouco não teve problemas com a lei. A sorte de não ter sido flagrado pela polícia nas vezes em que cometeu pequenos crimes ou usou entorpecentes lhe permitiram chegar às Forças Armadas e, por meio delas, à universidade. Poucos de seus amigos tiveram a mesma sorte, o que ajuda a entender por que ele foi o primeiro negro a se tornar professor titular em Columbia.
É no campo científico, porém, que seu maior embate ocorre. O pesquisador apresenta uma série de dados contestando a visão de que o vício é uma doença cerebral, que ataca principalmente pessoas com algum tipo de predisposição genética. “Quando eu era aluno, meus professores diziam que algumas drogas são tão viciantes que um rato pressionava uma alavanca infinitas vezes para ganhar novas doses”, conta. “De fato, alguns estudos mostram isso, mas, se você olhar bem, a única coisa que existe na jaula é a alavanca para ser pressionada. O animal não tem nenhuma outra opção”, completa. Outros estudos, que colocaram roedores em ambientes maiores, em que, além da oferta da droga, havia possibilidade de outras atividades, nenhum animal apresentou consumo tão elevado como os que ficaram isolados em jaulas pequenas.
Outro mito que Hart afirma ser necessário combater é o de que drogas como o crack tiram da pessoa a capacidade de decisão. Em estudos conduzidos por ele, com autorização do governo americano, dependentes recusaram drogas tidas como altamente viciantes, como a metanfetamina, em troca de vales em dinheiro. Quando a oferta era de US$ 20, ninguém preferiu a droga, que seria administrada na hora, dentro do hospital da Universidade de Columbia, sem acarretar nenhuma punição ao participante. Hart reconhece que algumas pessoas podem ter pego o dinheiro e comprado drogas depois, mas frisa que esse não é o ponto. “Mesmo que ele tenha escolhido o dinheiro para gastar depois com drogas, está desconstruída a ideia de que o dependente não é capaz de decidir algo ou planejar a longo prazo”, argumenta.
Por dados como esse, Hart está convencido de que o problema é fundamentalmente social e que incriminar usuários não o resolve, só o piora. Para ele, uma boa saída são modelos como o de Portugal, onde ser flagrado portando entorpecentes não constitui um crime e resulta em uma multa leve e, em alguns casos, na obrigatoriedade de conversar com uma junta médica. Nesses casos, a chance de educar as pessoas para um uso não abusivo, logo menos danoso, é bem maior, defende.
Debate
No Brasil, apesar de a lei prever penas mais brandas a usuários do que para traficantes, adquirir, guardar ou portar drogas ainda é considerado crime, segundo o artigo 28 da Lei Antidrogas (Nº 11.343/2006). As penas previstas são advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Segundo alguns especialistas, o fato de ser crime expõe usuários a abusos policiais, e muitos acabam sendo tratados e presos como traficantes. Atualmente, o Congresso discute o tema. Um projeto de lei de autoria do deputado Osmar Terra (PL 7663/2010) é o que tem gerado mais debates. Entre outras medidas, o texto propõe o aumento da pena para traficantes e a internação compulsória de dependentes químicos, o que gera mais controvérsia.