Quem pode ajudar a compreender os sonhos?

A psicanálise acredita que apenas o 'dono' do sonho consegue traduzi-lo. Ciência diz que sonhamos 90 minutos por noite de sono

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Flávia Duarte - Revista do CB Publicação:12/09/2014 15:02Atualização:12/09/2014 09:12
Seja qual for a linha de tratamento que usa o material onírico como pista para se chegar a respostas por mais saúde física e equilíbrio mental, fato é que a psicanálise, desde o século passado, validou a tese de que os sonhos realmente são conteúdos pessoais e intransferíveis. Sendo tão autoral, só mesmo o responsável pelo enredo teria condições de traduzi-lo. Nessa tentativa, o terapeuta assume o papel de facilitador e de instigador. É ele quem estimula a consciência do paciente a compreender a razão de certos elementos invadirem os pensamentos enquanto se dorme.

A psicanalista junguiana Rosângela Macedo, analista clínica do Espaço Quíron, usa um cenário para tentar exemplificar o que acontece quando alguém sonha. Ela compara o psiquismo a um iceberg. A parte visível, que desponta do mar, seria aquilo do qual se tem consciência. Mas dentro da água há mais um pedaço enorme de gelo que não se pode ver a olho nu. Assim seria o inconsciente. Ele está lá, registra tudo o que vemos e sentimos, ainda que não se tenha noção de quanto material é guardado nessa verdadeira caixa-preta.

O sonho seria um mergulho nessas águas, e uma porção do que estava escondido é visualizado de forma simbólica. Revestir traumas e situações em formas incompreensíveis a um primeiro olhar nada mais é que uma tentativa de esse subsconsciente trazer à tona materiais excluídos pela consciência. E, para que não seja rejeitado mais uma vez, o jeito é exibi-lo aos poucos, com uma certa dose de fantasia e um tanto de alegoria.

“O sonho é um regulador psíquico que tem sempre uma funcionalidade (por que) e uma causalidade (para que)”, avisa Rosângela. “Cada sonho é um mito pessoal, uma história, uma lenda, um conto e traz um drama psíquico. Quando você os traduz, você gera autoconhecimento, um ego mais seguro. Aquilo que estava sombrio e escuro ganha luz e faz menos pressão”, explica.

Uma das formas de se chegar a alguma conclusão é o terapeuta questionar o significado pessoal e quais as experiências e os sentimentos que o paciente têm em relação aos elementos e às pessoas que aparecem nos sonhos. Figuras que te trazem sentimentos negativos e vivências assustadoras que reaparecem durante o sono podem ser sinal de que na vida real você esteja se sentindo da mesma maneira. “O sonho só tem valor para quem sonha. É um olhar de dentro para fora”, esclarece o psicoterapeuta e analista junguiano João Rafael Torres.

Por isso, ele sugere, antes de mais nada, que a pessoa que queira fazer uso dessa ferramenta de diagnóstico do inconsciente anote os sonhos em um caderno. Isso deve ser um exercício diário. Nem sempre a pessoa vai se lembrar dos sonhos, mas vale anotar os resquícios de imagens e de sensações que vieram à tona. Nesse ponto, é importante lembrar que tudo que está no sonho se relaciona exclusivamente ao sonhador. Assim, sonhar com outra pessoa não quer dizer que você precisa dar um recado a ela, mas precisa entender o que as características dela, do comportamento e do papel que ela exerce, ou exerceu na sua vida, significam para você.

Depois, é hora de, com a ajuda do terapeuta, especialmente no início, associar aqueles elementos com a vida real e tentar entender a função daquele filme produzido na psique. O psicanalista explica que os sonhos têm várias funções: compensatória, para o ego resolver o que não consegue solucionar na vida real; elucidatória, para esclarecer o que está acontecendo na dinâmica psíquica. Além disso, o sonho tem uma função educativa e poderia ser visto como um canal de educação do que deve ser feito ou não.

Com esse material literalmente nas mãos, é hora de começar a desvendar os mistérios da própria alma. No meio do caminho, o sonhador vai enxergar falhas, enfrentar medos e reconstruir conceitos. “Todos os dias, tiramos uma foto de como está nossa dinâmica psíquica, mas quem vai definir se vamos abrir ou não o álbum é o ego, o eu”, resume João Rafael.

O que diz a ciência
Se a psicologia vê o sonho como uma verdadeira preciosidade que pode levar ao autoconhecimento, a ciência o define como um processo natural de uma noite de sono. “Para a neurobiologia, o sonho é um pensamento. Da mesma forma que você pensa durante o dia, você pensa durante a noite”, afirma Luciano Ribeiro, neurologista do Instituto do Sono, de São Paulo.

Depois de 90 minutos em que começou a dormir, a pessoa entra na fase REM (Rapid Eye Moviment) do sono. É justamente nesse período que o indivíduo sonha. Durante toda a noite, acontecem de quatro a cinco episódios de sono REM. Somados, eles correspondem a 20% do total do sono, ou seja, cada um sonha em média 1h30 por noite.

Uma suposição, porém. Luciano explica que foi na década de 1950 que os cientistas começaram a associar o período REM do sono ao momento em que se começava a sonhar. Isso porque os estudiosos da época acordavam a pessoa justamente nesse momento, que confirmava que estava sonhando. No entanto, é impossível, explica o neurologista, dizer que durante todo o sono REM ocorram sonhos. “Para confirmar se a pessoa sonha, seria preciso ela verbalizar isso e nem todos se lembram dos sonhos”, justifica.

Há tentativas de certificar cientificamente se todos sonham, mas, por enquanto, isso não foi possível. O que já se sabe, porém, é que zonas diferentes do cérebro são ativadas durante o sonho. Quando dormimos, a zona de ativação passa a ser o sistema límbico, na região central do cérebro. Já quando acordado, quem assume o controle do pensamento é o lobo frontal. “Mas será que o sonho tem uma função ou só é um produto do cérebro? A resposta ainda é especulação”, conclui Luciano.

Desde 1978, Luiz Gallina tem o costume de anotar os sonhos em bloquinhos: fonte de inspiração (Zuleika de Souza/CB/D.A Press)
Desde 1978, Luiz Gallina tem o costume de anotar os sonhos em bloquinhos: fonte de inspiração

Sonho transformado em arte
Iniciar uma conversa com o artista plástico Luiz Gallina é entrar em um devaneio muito particular. Aos 61 anos, ele sempre teve o sonho como aliado. Anota o conteúdo simbólico que surge em seu sono desde 1978. Os caderninhos com os relatos oníricos estão todos guardados e, volta e meia, são consultados. Quando lê, Luiz sai da realidade, entra em um sonho mesmo acordado.

Mente de artista é assim. Viaja sem sair do lugar. Sonha desperto. Com Gallina não é diferente. Está com um moleskine e caneta sempre à mão. Se vem alguma imagem sobre o sonho, para o que está fazendo e anota. Professor universitário, os alunos já sabem o quanto o exercício é importante para o mestre. Ele não titubeia: se preciso, interrompe a aula e escreve o pensamento da noite que ficou mais claro com o dia.

A mulher e os filhos já sabem: melhor não despertá-lo na pressa. Se acorda na pressão ou no susto, o sonho vai embora com a tranquilidade. Para não perder o rumo da história que “assistiu” durante o sono, acorda lento, para o sonho não fugir. Se preciso, toma café antes das crianças para se lembrar e escrever todos os detalhes sem ser interrompido.

Também desenha o que visualiza nesse mundo de imagens aparentemente fictícias. Algumas delas viram matéria-prima para o trabalho. Gallina descobriu há tempos que nos sonhos poderia encontrar inspiração para suas criações. “Sobre o que todos os artistas falam? Sobre si mesmos. Como vou falar mais de mim? O sonho é um instrumento da identidade, é como se olhar no espelho”, define. Pelo sonho se redescobre, se conhece mais. Esse novo eu ganha vida nas imagens que ele desenha. Assim funciona.”

E ele sonha sempre. De todas as “viagens”, uma delas se lembra com prazer. Sabe que foi por volta de 1970. Sonhou que tocava Jimi Hendrix, que considera um gênio. Fazia isso nas nuvens. Para um homem sonhador como ele, um roteiro nada ruim. Pena que seja difícil transformá-lo em realidade. Se não pode, ao menos pode virar arte.

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