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Mulheres recorrem à técnica de congelamento de óvulos para investir na carreira e à espera do amor perfeito

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Zulmira Furbino Publicação:16/11/2014 09:00Atualização:16/11/2014 09:15
A psicoterapeuta Shirley, com o filho Gabriel e o marido, Sérgio: sonho de ser mãe foi realizado depois de 10 tentativas (Marcos Michelin/EM/D.A Press)
A psicoterapeuta Shirley, com o filho Gabriel e o marido, Sérgio: sonho de ser mãe foi realizado depois de 10 tentativas
Era uma vez uma princesa, só que ela era meio diferente daquelas dos contos de fada, pois trata-se de uma mulher contemporânea. Por isso mesmo, nada de perder tempo conversando com os animaizinhos nos jardins ou morando com as madrinhas numa cabana na floresta ou fazendo comida enquanto anõezinhos trabalham na mina de pedras preciosas. Para conseguir um lugar ao sol, as princesas dos dias de hoje se tornaram guerreiras. Estudam, se especializam e lutam pela independência financeira. Até aí, tudo bem. O problema é que as moças não querem somente isso. Desejam também encontrar um amor e ter filhos. Entre as conquistas profissionais, sonhos de amor perfeito e desejos pessoais, precisam vencer o tempo, prolongando sua vida fértil.

A historinha contada acima pode parecer brincadeira, mas é coisa séria. Cada vez mais as mulheres brasileiras adiam o sonho da maternidade porque precisam consolidar suas conquistas financeiras ou ainda não encontraram um parceiro ideal com quem queiram constituir uma família. Para resolver essa complicada equação, contam com uma mãozinha da ciência, que, entre 2005 e 2006, desenvolveu a técnica do congelamento de óvulos pela vitrificação, que reduz a temperatura dos gametas de forma ultrarrápida, retirando-o de uma temperatura ambiente de 22 graus e levando-o a 186 graus negativos, o que elimina os cristais de gelo do processo e aumenta a qualidade do óvulo congelado. O problema é que o congelamento de óvulos nem sempre é garantia de um bebê à vista quando as mães decidirem que chegou a hora.

O fenômeno da maternidade adiada já se faz sentir nas estatísticas de registro civil do país, calculadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Elas apontam que as brasileiras estão tendo filhos cada vez mais tarde. Em 2002, as mães com idade entre 30 e 34 anos somavam 14,4% do total, número que saltou para 19% uma década depois. O IBGE mostra, ainda, que a gravidez tardia é mais frequente nas regiões mais ricas do pais, como Sudeste (21,4%) e Sul (20,7%). Além disso, de acordo com João Pedro Junqueira, diretor da rede Pró-criar, na última década, o número de mulheres que engravidaram após os 35 anos aumentou em 50%, o que para ele já é um caso de saúde pública.

A psicopedagoga Shirley Amorim congelou óvulos e fez quatro tentativas de fertilização in vitro que não deram certo. Depois de outras seis, sua história acabou em final feliz. Quando isso aconteceu, ela já tinha 39 anos. Hoje, Shirley se sente realizada como mãe de Gabriel, de 4 anos, e ainda tem outros dois óvulos congelados, mas está quase desistindo de fazer uma nova tentativa. “Penso mais na possibilidade de adotar uma criança. O desgaste emocional da fertilização é muito grande. Tentei até a última chance porque era louca para ter um filho. Foram oito anos de sofrimento, mas chega um ponto em que a medicina tem um limite e fica difícil ultrapassá-lo”, desabafa.
'Sabemos que, entre os óvulos colhidos, só metade vai gerar bons embriões. Então, a primeira coisa que uma pessoa deve ter em mente é que terá de congelar uma certa quantidade de óvulos que possibilite uma série de tentativas depois', Marcos Sampaio, diretor do Origen (Edésio Ferreira/EM/D.A Press-15/7/14)
"Sabemos que, entre os óvulos colhidos, só metade vai gerar bons embriões. Então, a primeira coisa que uma pessoa deve ter em mente é que terá de congelar uma certa quantidade de óvulos que possibilite uma série de tentativas depois", Marcos Sampaio, diretor do Origen

Até quando postergar?

O congelamento de óvulos é uma ferramenta importante para dar dar às mulheres que não podem, ou não querem ser mães no presente, uma possibilidade de realizar o sonho da maternidade no futuro. Na prática, porém, a técnica não garante o nascimento de um bebê, já que as chances de isso ocorrer não são matemáticas. De acordo com João Pedro Junqueira, diretor da rede Pró-criar, a medicina tem suas ferramentas, mas as mulheres estão se esquecendo de combinar com a natureza seus planos de congelar a maternidade.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2002, 11,5% das mulheres brasileiras se casavam entre 30 e 34 anos. Em 2012, esse percentual praticamente dobrou, saltando para 20,2%. No mesmo período, as que se casaram entre 35 e 39 anos saíram de 6,3% para 12,2% do total. O mesmo ocorreu entre aquelas que se casaram entre 40 e 44 anos, que saiu de 3,8% para 8,2%. Ou seja: os planos de ser mãe estão sendo cada vez mais postergados. “Esse problema é mundial. O número de mulheres que está engravidando depois dos 35 anos é quase 50% maior do que o da última década. É óbvio que existe uma pressão social, mas com esse adiamento o número de casais que terão dificuldade para engravidar é maior conforme passa o tempo e a idade da mulher.”

Para quem decide postergar, porém, a recomendação é que os óvulos sejam congelados entre os 30 e os 34 anos. “Quando uma mulher não chegou aos 30, ainda tem tempo para tomar a decisão. A partir dos 35 anos, quanto mais velha ela for, pior será a qualidade os óvulos e, consequentemente, as chances de engravidar com esses óvulos”, explica. Segundo ele, para fazer uma fertilização in vitro e conseguir dois embriões no final, uma mulher precisa ter entre 10 e 12 óvulos congelados. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), a paciente deve ter no máximo 50 anos para utilizar esses óvulos, o que não significa que ela esperará até lá para tentar engravidar.

Marcos Sampaio, diretor do Origen, centro de medicina reprodutiva, explica que quando se estimula a ovulação com vistas ao congelamento dos gametas, entre 60% e 70% dos embriões a serem formados não terão capacidade de ser implantados. “Sabemos que, entre os óvulos colhidos, só metade vai gerar bons embriões. Então, a primeira coisa que uma pessoa deve ter em mente é que terá de congelar uma certa quantidade de óvulos que possibilite uma série de tentativas depois.” De acordo com ele, para cada seis gametas serão produzidos embriões que, ao ser transferidos, vão gerar 50% de chances de gravidez, embora isso não seja uma garantia.”
 
PERSISTÊNCIA
A psicopedagoga Shirley Amorim, que conseguiu engravidar aos 39 anos, conta o que sentiu quando soube que estava grávida. “Ficamos sabendo quando fomos fazer um ultrassom. O coraçãozinho do Gabriel já estava batendo. Meu marido não parava de chorar. Ainda por cima, engravidei num momento em que meu pai tinha adoecido e tinha apenas seis meses de vida. O sonho da minha família era me ver grávida. Foi uma felicidade enorme, porque minhas irmãs já tinham filhos e eu não. Minha profissão é toda direcionada para a educação infantil. Até engravidar, eu e meu marido gastávamos todo o nosso dinheiro no tratamento. Foram R$ 180 mil em oito anos de tentativa. Mas nunca desisti.”

Junqueira lembra que, quando uma mulher acima de 40 anos congela óvulos, suas chances de engravidar são menores do que 5%, já que congelar gametas velhos não os torna mais novos. “O fato de congelar não muda a característica do óvulo. Claro que as mulheres nessa idade têm direito de fazer isso, desde que entendam que a probabilidade de virem a engravidar no futuro é remota. Além disso, a expectativa que isso gera é gigantesca. Uma pessoa que só tem oito óvulos só tem uma chance.” Ele lembra o caso de uma paciente que congelou óvulos aos 36 anos e depois aos 39. “Ela conseguiu produzir dois embriões, mas não engravidou na primeira tentativa. Aos 44, voltou a tentar e então nenhum dos seus óvulos sobreviveu ao descongelamento. Existe um risco disso ocorrer e o impacto negativo sobre a paciente que esperou ou programou engravidar.” 

Nem mesmo o fato de congelar os óvulos na idade certa é garantia de que a paciente vai conseguir engravidar no futuro. “O óvulo congelado só deve ser usado quando tudo o mais falhou. Quando uma mulher congela os gametas ela não está infértil. O melhor é tentar engravidar espontaneamente e ter uma reserva biológica para o caso de as tentativas não darem certo. É como um cheque especial.”

 

Questão polêmica
Iniciativas de grandes empresas de estimular funcionárias a congelar óvulos para se dedicarem à carreira colocam a técnica em debate. Até que ponto vale a pena adiar o sonho de ser mãe?
A ginecologista Adriana Ribeiro da Silva resolveu congelar seus óvulos aos 35 anos e, no processo, descobriu que estava com câncer de mama (Edésio Ferreira/EM/D.A Press)
A ginecologista Adriana Ribeiro da Silva resolveu congelar seus óvulos aos 35 anos e, no processo, descobriu que estava com câncer de mama

A discussão sobre a maternidade adiada voltou à tona em outubro deste ano, depois que as gigantes Apple e Facebook, numa tentativa de atrair mulheres para o mercado de tecnologia, anunciaram que cobrirão os gastos com o congelamento de óvulos de suas funcionárias. No Brasil, eles giram em torno de R$ 12 mil, dependendo do caso, sem contar a taxa mensal de manutenção do congelamento, que custa R$ 100, em média, conforme a clínica escolhida. O Facebook começou a oferecer o benefício em janeiro deste ano. Já na Apple, o programa começa no início de 2015.


As duas empresas se propõem a gastar até US$ 20 mil por funcionária para o congelamento e armazenamento de óvulos. O benefício não é o único oferecido pelas gigantes da tecnologia. A ele, se somam, entre outros, um cheque de US$ 4 mil para os pais que acabam de ter filhos. Até agora, no entanto, nenhum benefício tinha atraído tanta atenção  nem causado tanta polêmica, como a oferta de financiamento para o congelamento de óvulos. A ideia é que o congelamento de óvulos daria à mulher mais controle sobre sua vida, evitando que ela seja obrigada a decidir entre a maternidade e a carreira profissional.

O ginecologista e especialista em medicina reprodutiva João Pedro Junqueira acredita, porém, que o que existe é uma ilusão de controle e sustenta que o congelamento é uma faca de dois gumes. “Muita gente está tratando a medicina como se fosse um comércio. Não estou desmerecendo a técnica, mas é preciso pôr o pé na realidade”, recomenda. Ele lembra que a vitrificação é uma técnica desenvolvida nos últimos anos, que permitiu obter resultados reais de gravidez com o congelamento de óvulos. O processo anterior para congelamento de óvulos era ineficaz.

A ginecologista Adriana Ribeiro da Silva resolveu congelar seus óvulos aos 35 anos por ainda não ter um parceiro com quem planeja ter filhos. “Tomei a iniciativa porque estava solteira e não tinha pretensão de engravidar na época”, afirma. Em setembro do ano passado, ela fez os exames para se preparar para o congelamento dos óvulos, mas descobriu que estava com câncer de mama. “Descobri um nódulo e fiz um ultrassom de mama para o rastreio. Então, descobrimos a doença”, lembra. Assim, o congelamento acabou levando ao diagnóstico. “Fiz a indução de hormônios, congelei os óvulos. Depois, operei e tratei o câncer. Vou ficar três anos fazendo um rastreio, e quando tiver certeza de que estou curada, pretendo engravidar. Hoje, minha linha de corte é 42 anos”, sustenta.

PERFIL
De acordo com a psicóloga Juliana Magalhães de Faria, que trabalha na clínica Origen e atua há sete anos na área, a maioria das mulheres que congelam óvulos o faz, porém, por questões profissionais, e não por causa da saúde. “Elas desejam se estabilizar profissionalmente e afetivamente, além de ganhar independência financeira antes de ser mães. Antes, as mulheres se casavam para o resto de suas vidas. Hoje, enfrentam dificuldade para encontrar um parceiro, a pessoa certa. Muitas estão em busca desse perfil”, avalia. Nas clínicas de reprodução, algumas chegam solteiras e resolvidas, mas também há aquelas que vão com um marido que nem sempre está totalmente presente. “Alguns vão porque é o desejo da mulher. Eles acreditam que a sua forma de participar é pagar o tratamento. Elas se ressentem muito com isso porque esperam apoio moral e presença emocional nesse momento.”

Antes mesmo do anúncio do Facebook e da Apple, a demanda pelo congelamento de gametas já era crescente. Segundo Marco Melo, ginecologista e especialista em reprodução humana na Clínica de Reprodução Assistida Vila da Serra (Vilara), o adiamento da maternidade já é considerado uma tendência. De 2009 para cá, diz, a demanda anual pela vitrificação na clínica cresceu 37% e é maior do que a procura por fertilização. “Levando-se em conta que poucas mulheres têm consciência dos efeitos da idade na queda da qualidade dos óvulos e sobre a possibilidade de se usar uma técnica segura para cuidar desse problema, ela é até pequena”, acredita.


Dois lados

“Como tudo no mundo, o congelamento de óvulos tem dois lados. Acredito que aquilo que foi criado para ajudar mulheres com dificuldades momentâneas que poderiam culminar na ausência de maternidade vem sendo usado com abuso. Antes, o congelamento era voltado para as mulheres que tinham câncer ou outras doenças complicadas, mas tenho visto pessoas fazendo isso até mesmo como forma de pressionar o namorado ou o marido. O que me preocupa nessa história é que a naturalidade da vida está se perdendo. O lado positivo do congelamento é que ele autoriza a mulher a ser mãe. O negativo ocorre quando  a tecnologia passa a atender não às necessidades, mas aos caprichos. Acredito que a natureza sabe de tudo e que essa sabedoria está sendo contrariada em nome da ciência.” - Cláudia Prates, psicóloga


Bruno Scheffer, do IBRRA Medicina Reprodutiva

Qual a idade ideal para congelar óvulos?
De maneira geral, até os 35 anos. Como os ovários nem sempre têm a idade da mulher, sempre será necessário avaliar a reserva ovariana por meio de um exame, o Hormônio Antimulleriano (AMH). Ele nos informa como se encontram os ovários e qual a chance de termos óvulos após estimulação ovárica. Após os 30 anos, procure um especialista e avalie sua reserva ovariana.

Qual é a idade limite para ser mãe com segurança?
Uma vez congelados os óvulos, eles mantêm a idade em que foram congelados. Sua capacidade de fertilização e a chance de gerar uma criança é igual à da época em que foram congelados.

Existe alguma contraindicação para o congelamento de óvulos?
Não, mas existem algumas doenças oncológicas que são hormônio-responsivas, e podem piorar com o uso de medicamentos para estimulação dos ovários. Nesses casos, temos protocolos de estímulos próprios para as pacientes.

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