Bactérias fortalecem o escudo natural do cérebro durante a gestação
Estudo com ratos indica que, durante a gestação, a flora intestinal da mãe interfere na formação da barreira hematoencefálica do filhote. O tecido escolta o órgão da ação de toxinas e micro-organismos
Bruna Sensêve - Correio Braziliense
Publicação:27/11/2014 15:00Atualização: 25/11/2014 10:36
Uma grande descoberta nesse sentido vem de uma pesquisa sueca publicada hoje na revista Science Translational Medicine. Os cientistas replicaram o primeiro experimento que provou a presença da barreira hematoencefálica e voltaram as atenções para um diferencial: a interferência de micro-organismos que residem naturalmente no intestino humano. Outra particularidade do trabalho é que os testes foram feitos com cobaias prenhas. A flora intestinal delas interferiu na formação da barreira cerebral dos filhotes de rato.
“Nós mostramos que a presença dessa microbiota durante os últimos estágios da gravidez bloqueou a passagem de substâncias da circulação para o cérebro do feto em crescimento”, detalha Viorica Braniste, do Departamento de Microbiologia do Instituto Karolinska, na Suécia. Segundo a pesquisadora, o transporte de moléculas através da barreira hematoencefálica pode ser modulado por micróbios do intestino da mãe. Dessa forma, fatores ambientais relacionados, como a dieta, podem alterar os genes responsáveis pela formação e pela manutenção do tecido protetivo.
Os cientistas chegaram a essa conclusão comparando a integridade e o desenvolvimento do bloqueio entre dois grupos de camundongos. O primeiro foi composto por cobaias expostas a bactérias normais; e o segundo, por animais mantidos em ambiente estéril (veja infográfico). Depois, repetiram o experimento centenário, mas, em vez de tinta azul, injetaram anticorpos com um tamanho suficientemente grande para não ultrapassar a barreira hematoencefálica típica. Os dados coletados mostraram um vazamento no tecido protetivo dos animais que ficaram livres de germes na fase intrauterina. A característica manteve-se na vida adulta.
“Em fetos com a mesma idade de mães livres de germes, esses anticorpos que estavam marcados atravessaram facilmente a barreira hematoencefálica e foi detectado material dentro do parênquima (tecido principal) do cérebro”, relata Braniste. O vazamento não foi visualizado nos filhotes expostos a uma microbiota normal, e eles não tiveram modificação na formação da barreira.
Os resultados fornecem evidência experimental de que os micróbios nativos do organismo contribuem para o mecanismo que fecha a proteção hematoencefálica antes do nascimento. Segundo os autores, eles também suportam observações anteriores de que a microbiota intestinal pode afetar o desenvolvimento e a função cerebral. Braniste alerta para um detalhe. Curiosamente, esse vazamento poderia ser anulado se os camundongos fossem expostos a transplante fecal de micróbios intestinais normais.
Os pesquisadores ainda não precisaram os mecanismos moleculares que motivam esse fenômeno. Não está claro como os micróbios alteram o desenvolvimento da barreira, mas uma análise do cérebro dos camundongos livres de germes indica que pode haver o envolvimento de proteínas ligadas à vedação dos espaços paracelulares entre as células endoteliais que formam esse escudo natural. Há possibilidade de que o estudo ajude no desenvolvimento de novas maneiras de “abrir” a barreira e aumentar a eficácia dos medicamentos contra o câncer do cérebro, além de ajudar na concepção de regimes de tratamento que reforcem a integridade dessa estrutura protetiva.
Cuidados
Segundo o neurologista norte-americano Ryan Watts, do Instituto Genentech, há escudos celulares em outras partes do corpo. Um dos mais evidentes é o epitélio intestinal, que protege o resto do organismo a partir dos micróbios patogênicos e simbióticas que residem no intestino. “Mesmo reconhecida como uma importante barreira biológica há mais de um século, os mecanismos subjacentes ao desenvolvimento, à manutenção e ao papel desempenhado por fatores genéticos e ambientais da hematoencefálica estão apenas começando a ser elucidados.”
Segundo Watts, o estudo levanta uma série de preocupações epidemiológicas importantes. “Embora os autores não tenham utilizado antibióticos de largo espectro para testar a necessidade da microbiota intestinal do rato adulto para manter a barreira intacta, essa questão pode ser relevante no tratamento de doenças infecciosas humanas que envolva o forte uso de antibióticos que ‘apagam’ a flora intestinal.”
Entender como esse efeito colateral fisiologicamente relevante do uso de antibióticos pode afetar a permeabilidade da barreira é crucial, avalia o neurologista. “Além disso, uma tendência bastante recente na modulação ou na valorização da diversidade microbiana por meio da utilização de prebióticos ou probióticos como uma estratégia terapêutica pode precisar levar em consideração o eixo microbiota intestinal-barreira.”
Terapia extrema
Trata-se de um tipo de tratamento que visa repovoar o intestino com micro-organismos pertencentes à flora bacteriana benéfica, normalmente exterminada como consequência de algumas complicações clínicas ou devido ao uso de medicamentos — os antibióticos, por exemplo. Especialistas avaliam que, mesmo sendo eficaz, essa técnica deve ser aplicada somente como último recurso clínico.
Chance de intervenção
“Existem doenças hoje que acometem o sistema nervoso central e são parcialmente tratadas porque os medicamentos não conseguem conectar a barreira hematoencefálica. Temos esse desafio. Por exemplo, o paciente com meningoencefalite em qualquer idade precisa receber um perfil de antibióticos correto que ultrapasse essa proteção. A barreira, na verdade, é protetora do metabolismo, da integridade do sistema nervoso central. O artigo traz para nós uma possibilidade de modificação dela para viabilizar um determinado tipo de tratamento, como o prescrito para doenças neurodegenerativas graves." - Denize Bomfim, neurologista infantil da Secretaria de Saúde do Distrito Federal
Saiba mais...
Há mais de 100 anos, cientistas descobriram, por meio de um experimento simples, que as substâncias que circulam pelo sangue no corpo não “andam” necessariamente pela cabeça. Eles injetaram uma tinta azul na corrente sanguínea de uma cobaia e os tecidos do corpo do animal ficaram com a coloração escolhida, menos o do sistema nervoso central. O fenômeno, acreditaram, ocorreu devido à existência de uma barreira que evitaria a entrada de algumas substâncias no cérebro. Confirmada a hipótese, pesquisas na área começaram a fervilhar, mas sem explicar definitivamente como esse escudo natural é formado e como seria possível driblá-lo.Uma grande descoberta nesse sentido vem de uma pesquisa sueca publicada hoje na revista Science Translational Medicine. Os cientistas replicaram o primeiro experimento que provou a presença da barreira hematoencefálica e voltaram as atenções para um diferencial: a interferência de micro-organismos que residem naturalmente no intestino humano. Outra particularidade do trabalho é que os testes foram feitos com cobaias prenhas. A flora intestinal delas interferiu na formação da barreira cerebral dos filhotes de rato.
“Nós mostramos que a presença dessa microbiota durante os últimos estágios da gravidez bloqueou a passagem de substâncias da circulação para o cérebro do feto em crescimento”, detalha Viorica Braniste, do Departamento de Microbiologia do Instituto Karolinska, na Suécia. Segundo a pesquisadora, o transporte de moléculas através da barreira hematoencefálica pode ser modulado por micróbios do intestino da mãe. Dessa forma, fatores ambientais relacionados, como a dieta, podem alterar os genes responsáveis pela formação e pela manutenção do tecido protetivo.
Os cientistas chegaram a essa conclusão comparando a integridade e o desenvolvimento do bloqueio entre dois grupos de camundongos. O primeiro foi composto por cobaias expostas a bactérias normais; e o segundo, por animais mantidos em ambiente estéril (veja infográfico). Depois, repetiram o experimento centenário, mas, em vez de tinta azul, injetaram anticorpos com um tamanho suficientemente grande para não ultrapassar a barreira hematoencefálica típica. Os dados coletados mostraram um vazamento no tecido protetivo dos animais que ficaram livres de germes na fase intrauterina. A característica manteve-se na vida adulta.
“Em fetos com a mesma idade de mães livres de germes, esses anticorpos que estavam marcados atravessaram facilmente a barreira hematoencefálica e foi detectado material dentro do parênquima (tecido principal) do cérebro”, relata Braniste. O vazamento não foi visualizado nos filhotes expostos a uma microbiota normal, e eles não tiveram modificação na formação da barreira.
Os resultados fornecem evidência experimental de que os micróbios nativos do organismo contribuem para o mecanismo que fecha a proteção hematoencefálica antes do nascimento. Segundo os autores, eles também suportam observações anteriores de que a microbiota intestinal pode afetar o desenvolvimento e a função cerebral. Braniste alerta para um detalhe. Curiosamente, esse vazamento poderia ser anulado se os camundongos fossem expostos a transplante fecal de micróbios intestinais normais.
Os pesquisadores ainda não precisaram os mecanismos moleculares que motivam esse fenômeno. Não está claro como os micróbios alteram o desenvolvimento da barreira, mas uma análise do cérebro dos camundongos livres de germes indica que pode haver o envolvimento de proteínas ligadas à vedação dos espaços paracelulares entre as células endoteliais que formam esse escudo natural. Há possibilidade de que o estudo ajude no desenvolvimento de novas maneiras de “abrir” a barreira e aumentar a eficácia dos medicamentos contra o câncer do cérebro, além de ajudar na concepção de regimes de tratamento que reforcem a integridade dessa estrutura protetiva.
Cuidados
Segundo o neurologista norte-americano Ryan Watts, do Instituto Genentech, há escudos celulares em outras partes do corpo. Um dos mais evidentes é o epitélio intestinal, que protege o resto do organismo a partir dos micróbios patogênicos e simbióticas que residem no intestino. “Mesmo reconhecida como uma importante barreira biológica há mais de um século, os mecanismos subjacentes ao desenvolvimento, à manutenção e ao papel desempenhado por fatores genéticos e ambientais da hematoencefálica estão apenas começando a ser elucidados.”
Segundo Watts, o estudo levanta uma série de preocupações epidemiológicas importantes. “Embora os autores não tenham utilizado antibióticos de largo espectro para testar a necessidade da microbiota intestinal do rato adulto para manter a barreira intacta, essa questão pode ser relevante no tratamento de doenças infecciosas humanas que envolva o forte uso de antibióticos que ‘apagam’ a flora intestinal.”
Entender como esse efeito colateral fisiologicamente relevante do uso de antibióticos pode afetar a permeabilidade da barreira é crucial, avalia o neurologista. “Além disso, uma tendência bastante recente na modulação ou na valorização da diversidade microbiana por meio da utilização de prebióticos ou probióticos como uma estratégia terapêutica pode precisar levar em consideração o eixo microbiota intestinal-barreira.”
Terapia extrema
Trata-se de um tipo de tratamento que visa repovoar o intestino com micro-organismos pertencentes à flora bacteriana benéfica, normalmente exterminada como consequência de algumas complicações clínicas ou devido ao uso de medicamentos — os antibióticos, por exemplo. Especialistas avaliam que, mesmo sendo eficaz, essa técnica deve ser aplicada somente como último recurso clínico.
Chance de intervenção
“Existem doenças hoje que acometem o sistema nervoso central e são parcialmente tratadas porque os medicamentos não conseguem conectar a barreira hematoencefálica. Temos esse desafio. Por exemplo, o paciente com meningoencefalite em qualquer idade precisa receber um perfil de antibióticos correto que ultrapasse essa proteção. A barreira, na verdade, é protetora do metabolismo, da integridade do sistema nervoso central. O artigo traz para nós uma possibilidade de modificação dela para viabilizar um determinado tipo de tratamento, como o prescrito para doenças neurodegenerativas graves." - Denize Bomfim, neurologista infantil da Secretaria de Saúde do Distrito Federal