Terapia genética reprograma coração para que ele não adoeça

A técnica abre perspectivas de, no futuro, servir como tratamento para a cardiomiopatia hipertrófica, que é hereditária e não tem cura

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Bruna Sensêve - Correio Braziliense Publicação:08/12/2014 15:00Atualização:08/12/2014 10:52
Corrigir a expressão falha de um único gene de maneira permanente e sem provocar efeitos colaterais para o organismo nem para o restante do código genético do indivíduo. Esse é o cenário ideal buscado pelas terapias genéticas, que buscam modificar mutações no genoma responsáveis por causar doenças, muitas delas letais. Pois é uma façanha desse tipo que está relatada na edição de hoje da revista Nature Communications.

Pela primeira vez, o bloqueio da expressão de um gene mutante conseguiu impedir, em camundongos, a manifestação clínica de uma das doenças cardíacas hereditárias mais prevalentes na população mundial. Ainda há um longo caminho entre esse experimento bem-sucedido e a aplicação em humanos, mas os especialistas trazem perspectivas animadoras.

A doença é a cardiomiopatia hipertrófica, anormalidade que torna a musculatura do coração mais rígida. A hipertrofia do tecido coronário dificulta a expansão e a retração para os batimentos regulares, podendo causar uma série de problemas. O mal tem uma incidência altíssima: uma para cada 500 pessoas. O prognóstico e as manifestações clínicas são muito variados, e a enfermidade pode passar despercebida durante toda a vida ou matar logo no primeiro ano.

Por ser o único tipo de cardiomiopatia com causa confirmadamente genética, a condição se tornou alvo da terapia desenvolvida pelos especialistas do Centro Médico Universitário Hamburg-Eppendorf, na Alemanha. Os cientistas focaram seu trabalho nos pacientes mais vulneráveis à doença, os recém-nascidos.

Para simular o problema nos animais, a equipe liderada por Lucie Carrier produziu em laboratório camundongos com a mutação causadora da miocardiopatia. Logo após o nascimento das cobaias, foi administrado em cada uma delas um vírus modificado para enviar ao organismo a informação genética de células cardíacas sem mutação. É como se os bichos recebessem uma ordem de reprogramação genética. A estratégia conseguiu bloquear a reprodução da informação incorreta que seria manifestada pelo gene mutante. Dessa forma, os sintomas da doença, como a hipertrofia do músculo do coração, não foram gerados. As cobaias foram observadas por 34 semanas sem qualquer alteração do quadro de saúde.
Clique na imagem para ampliá-la e saiba mais (Anderson Araújo/CB/D.A Press)
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Incurável
De acordo com os pesquisadores, foi possível observar também que, com a terapia, a produção de espécies de RNA mutante foi suprimida. Eles imaginam que esse processo está envolvido à origem das proteínas malformadas que estão envolvidas no desenvolvimento da cardiomiopatia hipertrófica. A esperança é que a terapia aplicada nos animais possa se tornar uma chance de tratamento para a forma neonatal grave do mal, hoje incurável e passível somente de transplante.

“Acreditamos que, para essas crianças, a terapia genética MYBPC3 (nome dado ao método) poderia ser uma opção realista, e, atualmente, nós trabalhamos na tradução do conceito de um modelo animal de grande porte”, descreve Carrier. Porém, há ainda uma série de fases para aprovação científica e translação das descobertas de camundongos para humanos.

Essa é a principal observação da médica da Sociedade Brasileira de Cardiologia e chefe do Setor de Miocardiopatia do Instituto Dante Pazzanese, Edileide de Barros Correia. Segundo ela, a terapia genética é a grande esperança para o futuro. “Se vai ser possível, só o tempo vai nos dizer. A esperança e a expectativa ainda existem, mas temos um longo caminho pela frente.”

A médica explica que tudo muda quando o assunto é o ser humano. Testar esse tipo de estratégia em indivíduos requer inúmeros cuidados, até mesmo pela possibilidade de efeitos adversos inesperados. “Apesar de ser uma forma da doença grave quando apresentada em neonatais, é preciso lembrar que são raros os casos de pacientes diagnosticados nessa faixa etária e com prognóstico ruim.”

A opinião otimista mas cuidadosa é compartilhada por Marcelo Imbronise Bittencourt, membro da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro (Socerj) e médico da Clínica de Insuficiencia Cardíaca e Cardiomiopatias da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ele conta que geralmente essa é uma doença que se caracteriza pelo desenvolvimento na adolescência. “Essas formas mais precoces não são tão frequentes. Essa terapia, no entanto, demostrou uma perspectiva muito boa seja para qualquer forma”, acredita. Para Bittencourt, a terapia empregada pode levar a terapias não só para bebês, mas também para pacientes mais velhos que carregam o gene mutante e não manifestaram a doença.

Atualmente, depois que o indivíduo é diagnosticado, resta a ele fazer o gerenciamento dos sintomas, com a utilização de remédios que, por exemplo, minimizam arritmias. Não é possível, porém, reverter o problema ou estacionar completamente sua evolução. O diagnóstico também é complicado. Quando os sintomas começam a aparecer e levam a pessoa ao consultório médico, a doença já está avançando. Alguns testes genéticos podem ser usados para detectar a hereditariedade, mas não é certo para todos os casos. “Há pacientes com a doença, já com a hipertrofia, mas cujos exames não foram capazes de identificar a mutação. Acreditamos que são mutações que ainda devem ser descobertas”, informa Bittencourt.

Outras formas
Existem outros dois tipos de cardiomiopatia: a dilatada (ou congestiva) e a restritiva. A primeira afeta principalmente idosos. Nela, os ventrículos se tornam firmes e rígidos porque o tecido anormal, tal como o tecido cicatrizado, substitui o músculo cardíaco normal. Como resultado, os ventrículos não podem relaxar e se enchem de sangue, e os átrios se alargam. Ao longo do tempo, o fluxo de sangue no coração é reduzido, o que pode levar a insuficiência cardíaca ou arritmias. Já a cardiomiopatia dilatada é o tipo mais comum e ocorre principalmente em adultos de 20 a 60 anos, sendo que os homens são mais propensos. O músculo cardíaco começa a se dilatar, alargando o interior da câmara e não contraindo normalmente. O coração não consegue bombear o sangue muito bem e torna-se mais fraco.

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