É hora de desapegar: deixar de lado o que não interessa ajuda a vida a fluir melhor
Livrar-se de coisas materiais, emoções negativas e até cargos no trabalho que o fazem sofrer é importante para renovar as energias e agir com liberdade
Zulmira Furbino
Publicação:14/12/2014 10:15Atualização: 14/12/2014 11:13
Se você pensa que é uma pessoa muito apegada porque não consegue se livrar daquele velho vestido de noiva, da antiga caixa de cartas dos amigos da adolescência ou daquele tênis velho, sujo e furado que sua mãe há anos está tentando jogar fora, talvez seja hora de se desapegar da culpa e de expandir sua forma de pensar. Em maior ou menor grau, todos sentem ou já sentiram apego. Até os monges. Esse sentimento que impulsiona o ser humano a se agarrar, porém, não diz respeito somente às coisas materiais. Vale também para emoções, cargos no trabalho, posições na sociedade, espiritualidade. Pode parecer estranho, mas existe apego até mesmo ao desapego. “Apegos perturbam a mente e nos impedem de agir com liberdade”, explica a monja Coen, que entrou para a vida monástica há 31 anos e está habilitada a dar aulas do darma budista para monges e leigos.
É preciso ter consciência se você está se apegando demais à comida, a uma pessoa, a uma outra situação qualquer e isso está atrapalhando os seus relacionamentos. É preciso distinguir os benefícios. “Se é gostoso e saboroso, mas fiquei presa numa teia e vai me causar mal, é hora de desapegar”, ensina. Para a administradora Virgínia Moura, de 33 anos, que se casou há três anos e vai pôr seu vestido de noiva à venda no brechó virtual De Cabide, desapego é exercício. “Foi ótimo, foi lindo, mas guardo as lembranças do nosso casamento nas fotografias e no meu coração. O vestido fica lá, ocupando espaço. Por isso resolvi vendê-lo e contei com o apoio do meu marido”, explica. Virgínia diz que sempre teve o hábito de fazer uma limpeza nos armários de vez em quando, mas passou a se desapegar mesmo há cerca de seis anos, quando se mudou para fora do país pela primeira vez. O destino foi a Austrália.
“A partir daí me tornei desapegada com tudo. É um processo que a gente internaliza. Não se trata de apenas vender ou doar roupas e sapatos. A gente passa a ter outro estilo de vida”, explica. Desde que voltou da Austrália, em três anos Virgínia e seu marido, o executivo Rafael Encinas, de 30, moraram em três cidades diferentes. “Acredito que é uma renovação, uma forma de se abrir para o novo, de não se apegar a bens materiais. E também de partir para novas experiências, conquistas, desafios e de encarar um novo ciclo de forma diferente, mais focado”, diz Rafael.
BAGAGEM MAIS LEVE
Desapegar envolve aprendizado. Pode ser difícil no começo, mas torna a vida muito mais prazerosa
As razões que levam um monge a exercitar sua mente para o desapego podem ser bastante diferentes das que levaram a administradora Virgínia Moura e seu marido, o executivo de vendas Rafael Emcinas, a deixar o apego de lado. O efeito, porém, é muito parecido. Em ambos os casos, os personagens dessa história estão de bem com o início e o fim das coisas, aquilo que a monja Coen, com os seus 31 anos de experiência na vida monástica, define como “estar sendo”. A cada mudança que o casal fazia, era obrigado a vender coisas que não valiam a pena ser carregadas ou que não caberiam no novo lar.
“Desde então, estamos em movimento. Na última mudança, vendemos tudo. Havia muita coisa de valor emocional, mas a gente não deposita tanta emoção nas coisas”, explica. Para os dois, o que vale mesmo são os momentos de convivência com a família e os amigos. “Não é doído. É um aprendizado que logo se torna natural. Fui aprendendo com minhas próprias experiências. O bom é que vale para o casal”, diz Virgínia.
O mesmo desapego que ela tem pelos objetos, porém, não se aplica aos sentimentos. “Com sentimento não é tão fácil, mas tenho feito um exercício e estou aprendendo bastante. Não são coisas iguais, mas caminham em velocidades parecidas. Assim como nos desapegamos das coisas, é preciso desapegar também dos sentimentos que não nos fazem bem”, ensina. O mais difícil de deixar para trás, de acordo com ela, são os relacionamentos, já que, em todas as mudanças o casal fez amigos, e quando uma nova vida se inicia, é preciso começar tudo outra vez. O atenuante, nesse caso, é a tecnologia, que aproxima as pessoas onde quer que elas estejam. Virgínia e Rafael agora se preparam para mais uma mudança, desta vez não por causa do trabalho, mas por opção de vida. “Até aqui,,,,,,,,,,, a gente foi para onde o vento mandava. Agora é escolha. A gente gostou muito da Austrália e do estilo de vida no país. Por isso, vamos voltar para lá”, comemora.
ACUMULADORES A psiquiatra e psicanalista Gilda Paoliello explica que o apego ou desapego às coisas caracterizam alguns tipos de personalidade. “Há pessoas que têm uma dificuldade muito grande em se desfazer de objetos que não representam nada para os outros, mas para elas têm uma importância enorme e chegam a ter um estatuto de continuidade do próprio corpo. “Se aquilo for mexido, é como se o próprio corpo ou o mundo interno dessa pessoa fosse tocado”, observa. São pessoas muito detalhistas, tanto que muitas vezes não conseguem concluir o que se propõem a fazer e tendem a organizar muito o escritório ou a casa, sem conseguir se desfazer de determinados objetos. Há também os acumuladores, mas nesse caso a situação chega a ser patológica. Incomum mesmo é um desapegado bater em sua porta.
Ana Virgínia Azevedo, jornalista de profissão que se dedica ao ensino da ioga, explica que aprendeu a exercitar o desapego com a filosofia hindu. “Durante minha formação como professora de ioga, tivemos que praticar um exercício de desapego. Diante do desafio, doei as fraldinhas do meu filho, que haviam sido bordadas pela minha tia, para o porteiro do prédio, cuja esposa morreu no parto”, lembra. A proposta era doar algo que fizesse bastante sentido para as pessoas que participavam do curso de formação. “Desapegar é quando uma coisa faz sentido, mas você consegue abrir mão. Foi por isso que doei as fraldinhas. Fiquei com apenas uma como lembrança. Isso me marcou muito porque eram coisas que fazia muito sentido guardar”, afirma.
Depois disso, Ana Virgínia passou a abrir mão das coisas que estavam “paradas” em sua vida. “Hoje não tenho praticamente nada que eu não uso, mas não sou minimalista.” Houve uma época em que Ana Virgínia comprava objetos de decoração em excesso. Depois da prática do ioga, resolveu “passar tudo para a frente”. Segundo ela, em sua casa havia muita coisa que era comprada e não era usada. “Eram coisas bonitinhas, que a gente vê, acha lindo e compra, mas que não combinavam com nada que eu tinha”, observa. De acordo com a psiquiatra e psicanalista Gilda Paollielo, pessoas mais desapegadas aparecem muito menos no consultório. “Elas são privilegiadas e estão em número muito menor”, explica. Ainda assim, há o extremo do desapego, casos de pessoas pródigas, que tendem a dar tudo o que têm, o que também é considerado uma patologia. “Tudo o que é demais é veneno”, resume.
REVOLUÇÃO INTERNA
Aprender a dividir e a deixar de lado aquilo que não interessa mais ajuda a vida a fluir melhor e a ver o mundo da forma como ele é
Num mundo em que o mercado de consumo, e, portanto, tudo o que é material, e encarado quase como uma entidade, o desapego não é uma tarefa fácil e fica mais complicado ainda se desapegar dos sentimentos e dos relacionamentos. Diante disso, o que se deve levar em conta é que “grudar” numa coisa ou numa história do passado traz mais malefícios do que benefícios. “Aquilo que me fez bem ontem não necessariamente continuará a me beneficiar no presente”, ensina a monja Coen, com a experiência de três décadas de monastério. É o caso de Isabela Junqueira Freire, analista de sistemas e sócia do bazar virtual De Cabide, que comercializa roupas, sapatos e bijuterias novas e usadas na internet. Ela, que teve uma educação desapegada, há seis anos viu-se com dificuldades para dividir os filhos, Ana e João, com o ex-marido.
Deu trabalho se desapegar do apego às crianças e das desavenças com o ex. Mas ela se esforçou e hoje acredita que valeu a pena. “Sempre me considerei uma pessoa desapegada. Nunca me importei em dividir as coisas e nunca fui grudada demais com minha família. Viajava sozinha desde pequena. Mas na separação, me surpreendi com a minha dificuldade de dividir os meninos com o pai. Não sabia o que fazer do meu tempo livre. Sofri muito”, lembra Isabela. Porém, a analista de sistemas foi trabalhando a si mesma e ocupando o tempo livre que passou a ter quando as crianças estavam com o pai com os amigos ou com o trabalho. “Hoje, encaro tudo de uma forma mais positiva. Não adianta achar que os filhos da gente vão ficar debaixo da asa. Filho a gente cria é para o mundo”, observa.
Isabela explica que, a partir do momento em que aprendeu a dividir e abrir mão das desavenças com o ex-marido, tudo começou a fluir melhor. “A gente ainda tem nossas diferenças, mas somos superamigos. Isso só ocorreu porque não fiquei apegada aos problemas que tive com ele. Ter uma boa relação com o pai dos meus filhos só beneficia a eles e a mim. A vida vai fluindo de uma forma mais positiva e fica tudo a meu favor”, resume. Junto do desapego sentimental, o desapego material também ajudou a empresária a se libertar. “Montar um negócio me ajudou a ocupar o meu tempo livre e também a fazer o que mais gostava: tirar tudo do armário e passar para a frente. Vendo as coisas, faço doação, e isso renova minhas energias”, analisa.
SEM ILUSÕES O monge José Costa Mokugen, 62 anos, que estudou zen budismo no Japão por 22 anos e acaba de abrir um templo em Belo Horizonte, explica que, na visão budista, o desapego permite que as pessoas vejam o mundo como ele é, livre de ilusões. “Isso se consegue com muito estudo, treinamento da mente e com o esquecer de si próprio. É daí que vem a nossa união com o universo”, diz. Ele reconhece que o caminho é dolorido, porque desapegar do ego é como promover uma revolução interna. “Considero-me uma pessoa desapegada, estou muito satisfeito com o meu estado, mas não dá para desapegar de tudo vivendo num mundo como o nosso. É preciso ter desejos equilibrados, ambição de realizar coisas possíveis, viver de uma forma confortável neste mundo, mas de maneira desapegada”, recomenda.
Para conseguir movimentar as energias e livrar as pessoas daquilo que está pesando, em seu livro Casa Natural, o arquiteto Carlos Solano, especialista em feng shui, técnica chinesa de harmonização de ambientes, recomenda o “destralhamento”. Solano acredita que não há vida próspera se a casa estiver pesada e intoxicada. De acordo com ele, são considerados “toxinas da casa” objetos e roupas quebrados ou rasgados, velhas cartas, plantas mortas ou doentes, recibos, jornais e revistas antigos, remédios vencidos, meias e sapatos estragados. Por isso mesmo ele defende que as pessoas precisam “destralhar” a sua casa. Segundo ele, o processo é uma das formas mais rápidas de transformar a vida. “A saúde melhora, a criatividade cresce e os relacionamentos se aprimoram, ensina o feng shui, com a delicadeza própria das artes orientais”, escreve.
O arquiteto explica que, de acordo com o feng shui, é comum se sentir cansado, deprimido ou desanimado em um ambiente cheio de entulho, pois existem fios invisíveis ligando as pessoas àquilo que elas têm. Outros possíveis efeitos do acúmulo e da bagunça são os sentimentos de desorganização, fracasso e limitação, que aumentam o peso e o apego ao passado. “No porão e no sótão, as tralhas viram sobrecarga. Na entrada, restringem o fluxo da vida. Empilhadas no chão, nos puxam para baixo. Acima, são dores de cabeça. Sob a cama, poluem o sono”, garante. De acordo com ele, sua faxineira e rezadeira, Dona Francisca, ensina que, nas 24 horas do dia, oito são para trabalhar, oito para descansar e oito para se cuidar. “E nada de limpar só por onde o padre passa”, recomenda.
Para a personal organizer Cristina Dumont, as pessoas andam muito apegadas. Ela percebe isso em seu dia a dia como organizadora dos espaços alheios. Seu trabalho começa avaliando os armários dos clientes e separando aquilo que é usado do que não é usado. “Alguns têm uma quantidade razoável de coisas nos armários, mas outros têm coisas demais, o que torna a organização muito mais difícil”, diz. De acordo com ela, convencer alguns clientes a desapegar não é uma tarefa fácil. “É mais complicado com as mulheres, que são muito apegadas a roupas em geral”, sustenta. Em sua própria vida, porém, Cristina pratica o desapego. “Melhorei muito depois da organização dos armários. Uma coisa bacana de fazer isso é pensar na sustentabilidade. Isso de não ter muita coisa é uma tendência, mas ainda é um processo na nossa sociedade”, afirma.
APEGO NÃO É AMOR
Para o presidente da Brahma Kumaris no Brasil e diretor da entidade para a América do Sul, Ken O’Donnell, desapegar não significa abandonar tudo ou doar todas as suas coisas, mas observar o mundo de forma a não ser influenciado por aquilo que se vê ou escuta. “Se uma pessoa tem uma visão muito estreita das coisas, impulsionada por experiências subjetivas, como seu papel na família, sua profissão, ou outra coisa qualquer, naturalmente não terá perspectiva suficiente para se posicionar além das influências. “O desapegado vai ver os acontecimentos da sua própria perspectiva, e também à luz da perspectiva dos outros, porém mantendo-se estável diante dos fatos”, explica.
Num relacionamento, por exemplo, ele explica que o apego é muito diferente do amor. “O amor é apreciar uma flor. O apego é cortar essa flor e colocá-la num vaso”, compara. “No apego, as pessoas exercem a posse, no desapego elas abdicam desse sentimento de posse para permitir que os outros cresçam”, define. Segundo ele, porém, o desapego é um trabalho interno. “Não existe um medicamento que nos faça desapegar. É preciso criar uma sequência interna de pensamentos, sentar-se e observar o momento, deixando-se envolver pelos 360 graus dos acontecimentos à sua volta. Mentalmente, você se coloca numa cadeira e visualiza sua mente ali, sentadinha, observando tudo”, ensina.
Virgínia Moura e o marido, Rafael Emcinas: a cada mudança que o casal fazia, era obrigado a vender coisas que não valiam a pena
Se você pensa que é uma pessoa muito apegada porque não consegue se livrar daquele velho vestido de noiva, da antiga caixa de cartas dos amigos da adolescência ou daquele tênis velho, sujo e furado que sua mãe há anos está tentando jogar fora, talvez seja hora de se desapegar da culpa e de expandir sua forma de pensar. Em maior ou menor grau, todos sentem ou já sentiram apego. Até os monges. Esse sentimento que impulsiona o ser humano a se agarrar, porém, não diz respeito somente às coisas materiais. Vale também para emoções, cargos no trabalho, posições na sociedade, espiritualidade. Pode parecer estranho, mas existe apego até mesmo ao desapego. “Apegos perturbam a mente e nos impedem de agir com liberdade”, explica a monja Coen, que entrou para a vida monástica há 31 anos e está habilitada a dar aulas do darma budista para monges e leigos.
Saiba mais...
“Também tenho apegos. Possuo uma velha roupa de monja. Olho para ela e são tantas as memórias de um certo mosteiro que não largo a roupa”, reconhece. Apesar disso, ela garante que o desapego liberta. Para isso, é preciso ter medidas e se desapegar até mesmo do sentimento obrigatório do desapego. “Conheço um monge que vive numa simplicidade profunda, mas quando teve de viajar aos Estados Unidos não conseguiu o visto porque nem sequer fazia declaração de Imposto de Renda. Se você quiser ir ao Japão, o governo japonês vai querer saber como você pagará as suas contas”, observa. De acordo com ela, até o apego aos ensinamentos budistas, se começarem a causar muitos impedimentos para a vida, deixam de ser uma coisa boa. Para a monja, porém, não é fácil se desapegar.É preciso ter consciência se você está se apegando demais à comida, a uma pessoa, a uma outra situação qualquer e isso está atrapalhando os seus relacionamentos. É preciso distinguir os benefícios. “Se é gostoso e saboroso, mas fiquei presa numa teia e vai me causar mal, é hora de desapegar”, ensina. Para a administradora Virgínia Moura, de 33 anos, que se casou há três anos e vai pôr seu vestido de noiva à venda no brechó virtual De Cabide, desapego é exercício. “Foi ótimo, foi lindo, mas guardo as lembranças do nosso casamento nas fotografias e no meu coração. O vestido fica lá, ocupando espaço. Por isso resolvi vendê-lo e contei com o apoio do meu marido”, explica. Virgínia diz que sempre teve o hábito de fazer uma limpeza nos armários de vez em quando, mas passou a se desapegar mesmo há cerca de seis anos, quando se mudou para fora do país pela primeira vez. O destino foi a Austrália.
A professora de ioga Ana Virgínia Azevedo aprendeu a exercitar o desapego com a filosofia hindu
“A partir daí me tornei desapegada com tudo. É um processo que a gente internaliza. Não se trata de apenas vender ou doar roupas e sapatos. A gente passa a ter outro estilo de vida”, explica. Desde que voltou da Austrália, em três anos Virgínia e seu marido, o executivo Rafael Encinas, de 30, moraram em três cidades diferentes. “Acredito que é uma renovação, uma forma de se abrir para o novo, de não se apegar a bens materiais. E também de partir para novas experiências, conquistas, desafios e de encarar um novo ciclo de forma diferente, mais focado”, diz Rafael.
BAGAGEM MAIS LEVE
Desapegar envolve aprendizado. Pode ser difícil no começo, mas torna a vida muito mais prazerosa
As razões que levam um monge a exercitar sua mente para o desapego podem ser bastante diferentes das que levaram a administradora Virgínia Moura e seu marido, o executivo de vendas Rafael Emcinas, a deixar o apego de lado. O efeito, porém, é muito parecido. Em ambos os casos, os personagens dessa história estão de bem com o início e o fim das coisas, aquilo que a monja Coen, com os seus 31 anos de experiência na vida monástica, define como “estar sendo”. A cada mudança que o casal fazia, era obrigado a vender coisas que não valiam a pena ser carregadas ou que não caberiam no novo lar.
“Desde então, estamos em movimento. Na última mudança, vendemos tudo. Havia muita coisa de valor emocional, mas a gente não deposita tanta emoção nas coisas”, explica. Para os dois, o que vale mesmo são os momentos de convivência com a família e os amigos. “Não é doído. É um aprendizado que logo se torna natural. Fui aprendendo com minhas próprias experiências. O bom é que vale para o casal”, diz Virgínia.
A analista de sistemas Isabela Junqueira Freire teve trabalho para aprender a dividir os filhos com o ex-marido, mas acredita que valeu a pena
O mesmo desapego que ela tem pelos objetos, porém, não se aplica aos sentimentos. “Com sentimento não é tão fácil, mas tenho feito um exercício e estou aprendendo bastante. Não são coisas iguais, mas caminham em velocidades parecidas. Assim como nos desapegamos das coisas, é preciso desapegar também dos sentimentos que não nos fazem bem”, ensina. O mais difícil de deixar para trás, de acordo com ela, são os relacionamentos, já que, em todas as mudanças o casal fez amigos, e quando uma nova vida se inicia, é preciso começar tudo outra vez. O atenuante, nesse caso, é a tecnologia, que aproxima as pessoas onde quer que elas estejam. Virgínia e Rafael agora se preparam para mais uma mudança, desta vez não por causa do trabalho, mas por opção de vida. “Até aqui,,,,,,,,,,, a gente foi para onde o vento mandava. Agora é escolha. A gente gostou muito da Austrália e do estilo de vida no país. Por isso, vamos voltar para lá”, comemora.
ACUMULADORES A psiquiatra e psicanalista Gilda Paoliello explica que o apego ou desapego às coisas caracterizam alguns tipos de personalidade. “Há pessoas que têm uma dificuldade muito grande em se desfazer de objetos que não representam nada para os outros, mas para elas têm uma importância enorme e chegam a ter um estatuto de continuidade do próprio corpo. “Se aquilo for mexido, é como se o próprio corpo ou o mundo interno dessa pessoa fosse tocado”, observa. São pessoas muito detalhistas, tanto que muitas vezes não conseguem concluir o que se propõem a fazer e tendem a organizar muito o escritório ou a casa, sem conseguir se desfazer de determinados objetos. Há também os acumuladores, mas nesse caso a situação chega a ser patológica. Incomum mesmo é um desapegado bater em sua porta.
Ana Virgínia Azevedo, jornalista de profissão que se dedica ao ensino da ioga, explica que aprendeu a exercitar o desapego com a filosofia hindu. “Durante minha formação como professora de ioga, tivemos que praticar um exercício de desapego. Diante do desafio, doei as fraldinhas do meu filho, que haviam sido bordadas pela minha tia, para o porteiro do prédio, cuja esposa morreu no parto”, lembra. A proposta era doar algo que fizesse bastante sentido para as pessoas que participavam do curso de formação. “Desapegar é quando uma coisa faz sentido, mas você consegue abrir mão. Foi por isso que doei as fraldinhas. Fiquei com apenas uma como lembrança. Isso me marcou muito porque eram coisas que fazia muito sentido guardar”, afirma.
O arquiteto Carlos Solano defende destralhar a casa para transformar a vida
REVOLUÇÃO INTERNA
Aprender a dividir e a deixar de lado aquilo que não interessa mais ajuda a vida a fluir melhor e a ver o mundo da forma como ele é
Num mundo em que o mercado de consumo, e, portanto, tudo o que é material, e encarado quase como uma entidade, o desapego não é uma tarefa fácil e fica mais complicado ainda se desapegar dos sentimentos e dos relacionamentos. Diante disso, o que se deve levar em conta é que “grudar” numa coisa ou numa história do passado traz mais malefícios do que benefícios. “Aquilo que me fez bem ontem não necessariamente continuará a me beneficiar no presente”, ensina a monja Coen, com a experiência de três décadas de monastério. É o caso de Isabela Junqueira Freire, analista de sistemas e sócia do bazar virtual De Cabide, que comercializa roupas, sapatos e bijuterias novas e usadas na internet. Ela, que teve uma educação desapegada, há seis anos viu-se com dificuldades para dividir os filhos, Ana e João, com o ex-marido.
Deu trabalho se desapegar do apego às crianças e das desavenças com o ex. Mas ela se esforçou e hoje acredita que valeu a pena. “Sempre me considerei uma pessoa desapegada. Nunca me importei em dividir as coisas e nunca fui grudada demais com minha família. Viajava sozinha desde pequena. Mas na separação, me surpreendi com a minha dificuldade de dividir os meninos com o pai. Não sabia o que fazer do meu tempo livre. Sofri muito”, lembra Isabela. Porém, a analista de sistemas foi trabalhando a si mesma e ocupando o tempo livre que passou a ter quando as crianças estavam com o pai com os amigos ou com o trabalho. “Hoje, encaro tudo de uma forma mais positiva. Não adianta achar que os filhos da gente vão ficar debaixo da asa. Filho a gente cria é para o mundo”, observa.
Isabela explica que, a partir do momento em que aprendeu a dividir e abrir mão das desavenças com o ex-marido, tudo começou a fluir melhor. “A gente ainda tem nossas diferenças, mas somos superamigos. Isso só ocorreu porque não fiquei apegada aos problemas que tive com ele. Ter uma boa relação com o pai dos meus filhos só beneficia a eles e a mim. A vida vai fluindo de uma forma mais positiva e fica tudo a meu favor”, resume. Junto do desapego sentimental, o desapego material também ajudou a empresária a se libertar. “Montar um negócio me ajudou a ocupar o meu tempo livre e também a fazer o que mais gostava: tirar tudo do armário e passar para a frente. Vendo as coisas, faço doação, e isso renova minhas energias”, analisa.
SEM ILUSÕES O monge José Costa Mokugen, 62 anos, que estudou zen budismo no Japão por 22 anos e acaba de abrir um templo em Belo Horizonte, explica que, na visão budista, o desapego permite que as pessoas vejam o mundo como ele é, livre de ilusões. “Isso se consegue com muito estudo, treinamento da mente e com o esquecer de si próprio. É daí que vem a nossa união com o universo”, diz. Ele reconhece que o caminho é dolorido, porque desapegar do ego é como promover uma revolução interna. “Considero-me uma pessoa desapegada, estou muito satisfeito com o meu estado, mas não dá para desapegar de tudo vivendo num mundo como o nosso. É preciso ter desejos equilibrados, ambição de realizar coisas possíveis, viver de uma forma confortável neste mundo, mas de maneira desapegada”, recomenda.
Em seu trabalho como organizadora de espaços, a personal Cristina Dumont percebe que as pessoas andam muito apegados
Para conseguir movimentar as energias e livrar as pessoas daquilo que está pesando, em seu livro Casa Natural, o arquiteto Carlos Solano, especialista em feng shui, técnica chinesa de harmonização de ambientes, recomenda o “destralhamento”. Solano acredita que não há vida próspera se a casa estiver pesada e intoxicada. De acordo com ele, são considerados “toxinas da casa” objetos e roupas quebrados ou rasgados, velhas cartas, plantas mortas ou doentes, recibos, jornais e revistas antigos, remédios vencidos, meias e sapatos estragados. Por isso mesmo ele defende que as pessoas precisam “destralhar” a sua casa. Segundo ele, o processo é uma das formas mais rápidas de transformar a vida. “A saúde melhora, a criatividade cresce e os relacionamentos se aprimoram, ensina o feng shui, com a delicadeza própria das artes orientais”, escreve.
O arquiteto explica que, de acordo com o feng shui, é comum se sentir cansado, deprimido ou desanimado em um ambiente cheio de entulho, pois existem fios invisíveis ligando as pessoas àquilo que elas têm. Outros possíveis efeitos do acúmulo e da bagunça são os sentimentos de desorganização, fracasso e limitação, que aumentam o peso e o apego ao passado. “No porão e no sótão, as tralhas viram sobrecarga. Na entrada, restringem o fluxo da vida. Empilhadas no chão, nos puxam para baixo. Acima, são dores de cabeça. Sob a cama, poluem o sono”, garante. De acordo com ele, sua faxineira e rezadeira, Dona Francisca, ensina que, nas 24 horas do dia, oito são para trabalhar, oito para descansar e oito para se cuidar. “E nada de limpar só por onde o padre passa”, recomenda.
Para a personal organizer Cristina Dumont, as pessoas andam muito apegadas. Ela percebe isso em seu dia a dia como organizadora dos espaços alheios. Seu trabalho começa avaliando os armários dos clientes e separando aquilo que é usado do que não é usado. “Alguns têm uma quantidade razoável de coisas nos armários, mas outros têm coisas demais, o que torna a organização muito mais difícil”, diz. De acordo com ela, convencer alguns clientes a desapegar não é uma tarefa fácil. “É mais complicado com as mulheres, que são muito apegadas a roupas em geral”, sustenta. Em sua própria vida, porém, Cristina pratica o desapego. “Melhorei muito depois da organização dos armários. Uma coisa bacana de fazer isso é pensar na sustentabilidade. Isso de não ter muita coisa é uma tendência, mas ainda é um processo na nossa sociedade”, afirma.
APEGO NÃO É AMOR
Para o presidente da Brahma Kumaris no Brasil e diretor da entidade para a América do Sul, Ken O’Donnell, desapegar não significa abandonar tudo ou doar todas as suas coisas, mas observar o mundo de forma a não ser influenciado por aquilo que se vê ou escuta. “Se uma pessoa tem uma visão muito estreita das coisas, impulsionada por experiências subjetivas, como seu papel na família, sua profissão, ou outra coisa qualquer, naturalmente não terá perspectiva suficiente para se posicionar além das influências. “O desapegado vai ver os acontecimentos da sua própria perspectiva, e também à luz da perspectiva dos outros, porém mantendo-se estável diante dos fatos”, explica.
Num relacionamento, por exemplo, ele explica que o apego é muito diferente do amor. “O amor é apreciar uma flor. O apego é cortar essa flor e colocá-la num vaso”, compara. “No apego, as pessoas exercem a posse, no desapego elas abdicam desse sentimento de posse para permitir que os outros cresçam”, define. Segundo ele, porém, o desapego é um trabalho interno. “Não existe um medicamento que nos faça desapegar. É preciso criar uma sequência interna de pensamentos, sentar-se e observar o momento, deixando-se envolver pelos 360 graus dos acontecimentos à sua volta. Mentalmente, você se coloca numa cadeira e visualiza sua mente ali, sentadinha, observando tudo”, ensina.