Carnaval faz bem: festa traduz necessidades humanas de lazer e pertencimento
Brincar, festejar e pular são uma das tantas formas de experimentar um comportamento essencial para o ser humano
Carnaval e felicidade andam juntos, tal como Vinicius de Morais eternizou em uma de suas músicas mais consagradas. “A felicidade do pobre parece a grande ilusão do carnaval. A gente trabalha o ano inteiro por um momento de sonho, pra fazer a fantasia, de rei ou de pirata ou jardineira. Pra tudo se acabar na quarta-feira”, anuncia a letra de 'A felicidade', uma alusão a que tudo o que é bom dura pouco. Como a felicidade. Como o carnaval.
O antropólogo e escritor Roberto da Matta, que em 1979 publicou 'Carnavais, malandros e heróis' (Editora Rocco), situa o carnaval como um ritual de inversão, orgástico, uma licença bem-estabelecida no tempo – na brecha entre a quaresma e o advento – para uma sociedade aristocratizada e hierarquizada como a brasileira. “No carnaval você pode se igualar por meio de certos costumes. Usar máscara e tornar-se um anônimo, vestir fantasia e viver um papel que na vida real não tem condição”, afirma.
Apesar de ser uma das mais fortes identidades do povo brasileiro, o carnaval não é uma unanimidade. Há quem não goste dos excessos característicos. Mas é uma pausa bem-vinda, pois se trata de uma das inúmeras maneiras de se experienciar o lazer, que é uma necessidade intrínseca do ser humano, tão importante e essencial quanto outras ações humanas, como o trabalho. É uma manifestação cultural por meio da qual é possível entrar em contato com várias maneiras de significar o mundo em que se vive.
Segundo Sarah Teixeira Soutto Mayor, doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), embora nossa sociedade, ainda muito voltada para um pragmatismo racional, dê pouco valor ao lazer enquanto área do conhecimento e objeto de políticas públicas, é difícil pensar a existência de qualquer civilização sem ele. “Brincar, festejar, viajar ou o simples descansar, entre outras incontáveis possibilidades, fazem parte do humano”, defende.
Sim, nós temos carnaval
É difícil estabelecer um marco para o surgimento do carnaval no Brasil. Talvez seja até impossível. Sarah Teixeira Soutto Mayor, doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da UFMG e autora de uma dissertação sobre a história recente do carnaval de Ouro Preto, sugere pensarmos que a festa se construiu historicamente como uma mistura de diferentes manifestações, e por meio da ação de atores igualmente diversos. Uma das influências foi o entrudo português, manifestação bastante presente em várias cidades do Brasil colonial e imperial que consistia em brincadeiras de atirar água e limões de cheiro entre os transeuntes no período precedente à quaresma, com a presença também de aglomerações que saíam às ruas com instrumentos de percussão.
A incorporação do carnaval à identidade brasileira é fruto de um processo político e midiático que o tornou motivo de orgulho e lugar de pertencimento para o brasileiro. “O carnaval é um de seus valores, exportados e propagandeados para o mundo todo. Mesmo que não seja unânime o gosto pela festa, a imagem e o discurso têm certo poder de congregar toda uma nação, numa espécie de homogeneização. Somos representados mundo afora como o país do samba e do futebol, e isso tem uma grande carga de simbolismo para a constituição do brasileiro”, ressalta Sarah, para a qual isso compõe um mecanismo de pertencimento e de identificação. “O brasileiro é ensinado desde cedo a gostar de carnaval. Aqueles que não se identificam com a prática causam espanto e têm a sua ‘brasilidade’ contestada”, explica.
O fato de ser realizado em pleno verão, em um país tropical, junta-se à identificação do Brasil como lugar da alegria irrestrita, onde há o encontro de todos os povos e culturas. A tal história de que “o ano só começa depois do carnaval”, demarcando a importância da festa, soma-se, na opinião dos especialistas, à frouxidão na execução de regras, algo ainda mais presente no momento da festa. “Há uma permissão temporária para se realizar determinados atos nesse momento; há um extravasamento generalizado que talvez seja uma marca bastante presente no Brasil e não em outros lugares (ou não da mesma forma). Esse extravasamento também se manifesta no corpo, na possibilidade de desnudá-lo parcialmente e exibi-lo com menos pudor”, afirma.
Não só o fato de viver em um país tropical fortalece a alegria do brasileiro com o carnaval, mas também nossos problemas sociopolíticos. Para Ana Lúcia Modesto, doutora em ciência sociais e professora do Departamento de Sociologia da UFMG, o povo, de certa maneira, sobrevive bem porque acha graça em tudo. “No Brasil, corrupção vira piada, problema vira piada. Temos facilidade de passar do lado sério para o outro”, acredita. O carnaval é, então, uma pausa na realidade do brasileiro. Naqueles quatro dias, ele está liberado de se preocupar com os problemas e até mesmo o mais endividado tem licença para curtir a festa sem que seja julgado pelos demais. Para Ana Lúcia, psicologicamente, o carnaval faz bem ao homem. “Se olharmos a realidade pesada que cai sobre nós, essa capacidade de rir de nós mesmos e de brincar é algo que faz com que a pessoas se ajustem à realidade da vida, fugindo um pouco dela.”
BLOCOS DE RUA
Faz bem ao brasileiro ser lembrado como o povo do carnaval, e essa pode ser uma das explicações para o fenômeno do resgate dos blocos de rua em Belo Horizonte. Dez anos atrás, apesar de o estado ter festas consagradas como as de Diamantina, Ouro Preto e São João del-Rei, o belo-horizontino não só lamentava a capital não entrar no clima, como logo tratava de definir seu destino. É tão grande a sensação de pertencimento do brasileiro que é como se ele não se permitisse ficar de fora. A produtora Renata Chamilet viveu de perto essa transformação. Nascida em uma terça de carnaval, e por isso mesmo tendo comemorado vários aniversários com bailes de fantasia, confete e serpentina, ela sempre gostou da festa. “Sou foliã, o carnaval sempre me acompanhou”, conta a goiana que incorporou a baiana para entrar para a história do carnaval mineiro.
Em 2009, com passagem comprada para o Rio, para onde sempre ia nessa época, um grupo de amigos se organizou e criou um bloco para ir para a rua. Ela se propôs a ir para o Rio mais tarde, mas acabou ficando em BH mesmo. Nos anos seguintes, também ficou e começou a chamar os amigos, para os quais mostrava as fotos da festa e reconhecia olhares descrentes. Em 2012, quando já existiam vários blocos e um movimento pré-carnavalesco, alguns amigos baianos propuseram que fossem vestidos a caráter. “A ideia era fazer uma ala de baianas para ir entrando nos blocos. A mãe de um deles fez as saias e assim sete amigos vestidos de baiana, com batom e brinco, como manda o figurino, saíram com estandarte e tudo.” Nascia ali o Bloco Baianas Ozadas, hoje um dos mais famosos da capital. “Era algo tímido. Simplesmente nos vestimos de baianas e cantávamos músicas da Bahia. O povo gostou.”
Passado aquele carnaval, resolveram se organizar. Em 2013, o bloco foi um sucesso, reunindo 11 mil pessoas na tarde de segunda-feira, em um desfile que terminou com a lavagem da escadaria do Edifício Sulacap, no Centro. “Nunca imaginávamos esse sucesso, cadastrei o bloco no Belotur para 800 pessoas”, lembra Renata, que em 2014 viu o Baianas reunir 30 mil foliões. Para ela, um dos fatores de sucesso dessa nova leva de blocos é promover a ocupação do espaço público. “A ideia é de que a cidade é minha também e que posso me divertir e usufruir dela. Isso, pra gente, é motivo de orgulho. Agora, podemos brincar na nossa própria cidade. De repente, o carnaval virou a maior festa de BH”, comemora Renata. “Carnaval é um exercício da democracia, onde todos podem se juntar. É uma época em que a gente pode sonhar, imaginar que pode tudo. É como se pudéssemos tirar férias de nós mesmos. E isso é bom.”
Não se pode generalizar. O carnaval não faz bem a todos, mas só porque nem todos gostam da festa. Segundo Ana Lúcia Modesto, doutora em ciências sociais e professora do Departamento de Sociologia da UFMG, a mídia e o governo Getúlio Vargas colaboraram para a identificação do carnaval como manifestação do que seria a cultura brasileira em sua essência. Mas essa não foi uma ideia imposta. Houve uma resposta do público por causa da forte identificação da população com o carnaval. “Tornou-se festa tão importante que é um marco na divisão do tempo, pois aqui o ano só começa depois do carnaval.”
O brasileiro é um povo de festa. Fomos formados por povos festivos, pessoas dadas às brincadeiras e a comemorar por meio desse tipo de evento. “Uma parte dos portugueses que vieram mais do interior de Portugal tinha marcantes festas populares, como o Dia de Reis. Os povos africanos são cheios de rituais, danças e músicas. Trabalham cantando, inclusive. E para os índios a festa também é fundamental: um marco forte ao qual recorrem para celebrar ancestrais nas épocas mais importantes”, explica Ana Lúcia, pesquisadora de manifestações culturais nas ruas e sociologia urbana.
Mas o carnaval não é qualquer festa. Ele é uma festa, em sua essência, de brincadeiras. E brincar faz muito bem. O psicólogo russo Lev Vigotsky mostrou que a brincadeira é fundamental para o desenvolvimento da mente humana à medida que é uma idealização da realidade, a partir da qual a criança começa a se sentir parte do mundo, exercendo, inclusive, o poder de modificá-lo. Manter-se capaz de brincar mesmo na vida adulta é ter a capacidade de interagir com a realidade da melhor forma, com humor, imaginação e alegria.
CONSENTIMENTO
O carnaval, em sua essência, é um convite ao brincar. Os adultos estão liberados para fazer guerra de confetes, encher a cara do amigo daquela espuma irritante, vestir-se de super-herói. Pode-se voltar a brincar, e com o consentimento de todos. Pena que só dure alguns dias, embora esse brincar na vida adulta tenha vários ganhos. O neurocientista russo Elkhonon Goldberg, pesquisador e professor na Universidade de Nova York, acredita que a mente possa se manter lúcida e ativa, apesar do envelhecimento do cérebro, mas uma das condições para isso é ter a capacidade de brincar, especialmente consigo mesmo.
Arquimedes, lá na Grécia Antiga, já usava o ato lúdico para criar e curar e defendia que brincar é a condição fundamental para ser sério. No século 16, alguns médicos chegaram a recomendar o entretenimento como o melhor medicamento para todos os males. Acreditavam que a alegria “dilata e aquece” o organismo, enquanto a tristeza o contrai e esfria. Se você ainda não colocou a brincadeira em sua vida, aproveite o carnaval, onde ela está mais que “permitida”, para começar. Corra, pule, solte o riso e seja feliz!