Apesar dos avanços, a sexualidade do brasileiro ainda é cercada por mitos e tabus

Encarar o sexo como algo normal e saudável ainda está longe de ser uma realidade

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Zulmira Furbino Publicação:08/03/2015 10:39Atualização:09/03/2015 11:06
A estudante Natália Zuca fala abertamente sobre o assunto, mas reconhece que ainda tem problemas para ver o sexo como algo realmente livre
  (Marcos Vieira/EM/DA PRESS)
A estudante Natália Zuca fala abertamente sobre o assunto, mas reconhece que ainda tem problemas para ver o sexo como algo realmente livre

Há cerca de três anos, a estudante de administração Natália Brito Zuca de Souza, de 21 anos, que atualmente faz um programa de intercâmbio na Universidade de Stellenbosch, na África do Sul, precisava de recursos para fazer uma viagem e não queria pedir aos pais. Para descolar o próprio dinheiro, ela resolveu vender artigos de sex shop. Como seu público era formado de pessoas que, muitas vezes, não tinham coragem de falar sobre sexo, ela resolveu mudar o nome dos artefatos que vendia. E assim surgiram os “produtos para potencializar relacionamentos”. Ciente das dificuldades dos clientes para abordar o tema, já nos primeiros momentos de contato com os possíveis compradores a estudante tentava analisar o seu perfil e modulava o vocabulário de forma que ela ou ele se sentisse à vontade. A estratégia deu certo e Natália pagou 80% daquela viagem com a venda dos produtos de casa em casa.

Já se vão quase 50 anos desde a revolução sexual, período em que era possível tropeçar com pichações como “Viver sem horas mortas, gozar sem entraves”, “Faça amor, não faça a guerra”, “O sexo da noite sorri ao olhar unânime da revolução” ou “Sejamos realistas, peçamos o impossível” nos muros de Paris. Em 1968, frases como essas incitavam a revolução sexual, movimento que transformou o sexo e a sexualidade numa questão política. De lá para cá, abriu-se espaço para a expressão de diferentes formas de sexualidade, houve muitos avanços em termos de conquista de direitos, a liberação sexual chegou para ficar, a Constituição brasileira já não fala em “mulher adúltera”, os direitos dos homossexuais são cada vez mais reivindicados. Apesar de tantas mudanças, contudo, a revolução sexual não desaguou na superação dos problemas de sexualidade enfrentados pelas pessoas.

O que a experiência da estudante mostra na prática, psicanalistas e sociólogos também já descobriram. A revolução sexual foi um movimento que transformou o sexo e a sexualidade numa questão política, mas, quando o assunto é sexo, ainda sobram tabus. “Ao exercerem sua sexualidade, as pessoas são interpeladas por questões pessoais e sociais que não são tão simples de resolver. Estar diante do outro, colocar um corpo em contato com outro leva o sujeito a ter que se haver com ele mesmo e isso toca questões íntimas e muito profundas”, observa a psicóloga e doutora em psicologia clínica pela Universidade de Estrasburgo e pela Universidade de São Paulo (USP) Dorotea Santana de Andrade. Para ela, esses avanços não bastam para que as pessoas se sintam livres realmente.

UMA DISCUSSÃO DELICADA

Em que pese o fato de falar abertamente no assunto e de ter vendido “produtos para potencializar relacionamentos”, a estudante Natália Brito Zuca de Souza reconhece que ainda tem problemas para encarar o sexo como algo realmente livre. E a estudante está longe de ser uma exceção à regra. Durante a realização de entrevistas para esta reportagem, inúmeras pessoas bem resolvidas no trabalho, no amor e na vida se negaram a falar sobre o tema por medo de se expor. Uma delas, uma mãe que sempre tratou o sexo como tema livre em casa, preferiu não participar porque os filhos, de 17 e 22 anos, poderiam se sentir constrangidos.

“Por incrível que pareça, tenho problemas para encarar o sexo como algo que realmente se possa fazer. A sociedade brasileira é muito machista e dentro da minha família não é diferente”, sustenta Natália. De acordo com ela, sua mãe é muito tranquila e liberal, mas “o contato com pessoas machistas e suas opiniões vestidas de verdades absolutas” em família ainda provocam pesadelos. “Acho que minha geração não vê isso de modo muito diferente, pelo menos no que diz respeito às mulheres, já que os homens continuam podendo tudo. Se o cara faz sexo no primeiro encontro, é o fodão. Se a mulher faz, é puta. Considerando todas as mulheres com as quais já conversei, a maioria passa pelo problema de ser reprimida por uma sociedade machista”, observa.

Por isso mesmo, em sua vida pessoal a estudante faz questão de agir diferente. “Falar de sexo com meu namorado é essencial. O sexo é uma parte importante do relacionamento e, quando você tem liberdade para conversar sobre o assunto, tudo fica mais fácil e o sexo tende a ficar melhor. Falo tudo o que gosto e não gosto para ele, assim como ele fala para mim. Somos muito amigos e falamos sobre tudo, sexo inclusive”, observa.

MITO

Pesquisa realizada pelo Instituto Caixa Seguros, no ano passado, mostra que o machismo não atinge somente as pessoas mais velhas, mas também os jovens. Segundo o levantamento, 38% dos jovens (do sexo masculino) de 19 a 29 anos acreditam que o homem precisa mais de sexo do que a mulher. Entre as meninas, 20% defendem que a mulher pode humilhar o homem se ele não quiser transar com ela. Outro fantasma machista que, ainda que pareça estranho, continua a atormentar pessoas de todas as idades e classes socais é o do mito de que, em matéria de sexo, homens e mulheres ocupam um papel rígido, no qual o prazer delas seria apenas satisfazer o prazer deles.

“Se a gente começar a perceber que homens e mulheres têm necessidades e demandas diferentes, em vez de olhar para elas como a menininha que faz sexo apenas por submissão, a gente está dando um passo”, diz a psiquiatra e coordenadora do Projeto Sexualidade (ProSex), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Carmita Abdo. Segundo ela, toda vez que uma mulher tem uma atitude mais ousada e considera que faz isso para resolver o problema do seu homem, está abrindo mão de sua própria satisfação sexual. “O discurso de que mulher faz sexo para atender aos homens perpetua a falsa ideia de que mulher faz sexo sem gostar de sexo. Assim, se ela gosta de fazer, acaba achando que é um ser de outro planeta por não ser como suas companheiras”, explica.

DIÁLOGO NECESSÁRIO
Apesar dos avanços no campo da sexualidade, as pessoas ainda têm dificuldades em lidar com os conflitos internos em relação ao envolvimento com o outro

Na noite de segunda-feira após o carnaval, cerca de 200 jovens mães que participam de um grupo secreto de discussão sobre maternidade e mulheres dentro do Facebook participaram de um encontro incomum. Elas fecharam uma sala de cinema com 199 lugares num shopping da capital mineira para assistir a Cinquenta tons de cinza, filme que somente até ali já havia sido visto por 4,1 milhões de expectadores no Brasil, tornando-se o longa metragem mais assistido no país em 2015. Para animar a festa, contrataram dois gogo boys que sortearam brindes eróticos e, antes da sessão, arriscaram uma pequena coreografia, ficando nus da cintura para cima. Foi um reboliço. Muitas adoraram a ideia, mas outras horrorizaram. E algumas, mais radicais, chegaram até a sair do grupo na internet.

Diante da reação negativa, a pergunta é: vivemos, de fato, num mundo menos reprimido? Para Dorotéa Santana de Andrade, psicóloga e doutora em psicologia clínica pela Universidade de Estrasburgo e pela Universidade de São Paulo (USP), o que acontece hoje é que a liberação sexual ocorreu, o discurso da moral sexual mudou, mas os conflitos internos continuam os mesmos. “Fico me perguntando se isso vai se resolver em algum momento. Talvez hoje as pessoas tenham mais experiências, mas, no que diz respeito aos sentimentos e ao envolvimento com o outro, as coisas continuam difíceis. Freud lembra, no Mal-estar da civilização, que, por mais que se libere, sempre haverá interdições no campo da sexualidade. Ele se pergunta se não existe realmente algo que é intrínseco à sexualidade ao qual não é dada a total satisfação. Sempre fica faltando um pouquinho”, observa.

“Até hoje, todo mundo ainda tem muita dificuldade de falar sobre sexo. Aqui no grupo, quando uma mulher quer falar abertamente sobre o assunto, em geral publica o texto no anonimato. Há muita preocupação com o que os outros vão pensar. Não somos tão liberais assim”, diz a arquiteta Isabela Nogueira Soares, de 40 anos, organizadora do grupo que levou duas dezenas de mulheres ao cinema numa tacada só. Segundo ela, apesar de tentarem quebrar esses tabus, no grupo de discussão no Facebook houve mulheres que tiveram vergonha de perguntar abertamente se Cinquenta tons de cinza era um filme para se ver com o marido ou só com as amigas. “Ainda temos muitos tabus e leva muito tempo para vencê-los. Além disso, os mineiros são mais conservadores. Por isso mesmo estamos organizando um evento para casais com o objetivo de estimular o diálogo sobre a sexualidade. Muitas vezes, a mulher sente que o sexo não vai bem e o marido não percebe”, explica.

SEM NATURALIDADE

O casal Rosana Stucchi e Ronaldo Machado defende que é preciso falar abertamente sobre sexo para uma relação saudável (Cristina Horta/EM/DA PRESS)
O casal Rosana Stucchi e Ronaldo Machado defende que é preciso falar abertamente sobre sexo para uma relação saudável
A empresária Rosana Stucchi concorda: é preciso falar sobre sexo. Segundo ela, é normal uma pessoa dizer que está com dor de barriga ou de dente, mas, dentro de casa, sexo é um assunto raro. “Nem mesmo com minha filha de 27 anos o assunto é liberado. E olha que eduquei meus filhos de uma forma mais livre, os namorados podiam dormir em casa desde muito cedo. A gente conversa sobre um punhado de coisa, mas não fala de sexo com naturalidade”, afirma. Além disso, com o parceiro, segundo ela, conversar sobre o assunto tem conotação negativa, parece que estão fazendo uma “DR” (discutindo a relação). Na opinião dela, as pessoas depositam no outro uma expectativa muito grande quando se trata de sexualidade, sem, no entanto, estarem abertas a conversar sobre o assunto. “É como se o sexo fosse uma coisa animal, que se resolvesse por si só. Mas o tesão da mulher passa pelo dia inteiro. Desde o bom-dia que ele deu, pelas palavras de carinho que disse. O ponto “G” da mulher é o ouvido. No fim das contas, tudo pesa nessa balancinha”, resume.

O personal trainer Ronaldo Machado, marido de Rosana, mesmo falando de outra forma, corrobora as palavras da esposa. De acordo com ele, hoje em dia as mulheres que estão insatisfeitas sexualmente num primeiro momento se calam, depois pensam que o problema é só com elas e em seguida comunicam seus sentimentos ao parceiro. “A partir daí, as coisas passam para um nível de fazer por obrigação”, acredita. Na visão dele, várias de suas amigas entre 40 e 60 anos descobriram que sexo não é só dentro do casamento e isso é um avanço. “Para as mulheres, poder fazer sexo somente por prazer sem serem repreendidas é uma vitória. Conheço muitas mulheres que são casadas há anos e desconhecem o que é um orgasmo. Todas procuram uma brincadeira fora do casamento”, sustenta.

Para o engenheiro e empresário Dimas Meireles, que afirma sempre ter tido “uma relação aberta com sexo”, houve avanços no campo da sexualidade e a grande oferta de informação sobre o assunto beneficia os relacionamentos amorosos. “O casal só ganha com isso. Hoje as novelas são uma elegia ao sexo, mas só assiste quem quer. Você pode mudar o canal e assistir ao Ratinho, ou ao National Geographic”, observa. O que o espanta, mesmo, é o fato de que a violência é muito mais aceita pela sociedade – e divulgada no cinema – do que o próprio sexo. Dimas e a mulher ainda não assistiram a Cinquenta tons de cinza e nem pretendem. “Em primeiro lugar, temos restrições aos filmes americanos. Depois, já se sabe que cortaram as cenas de sexo mais fortes e picantes do filme. Gosto de muita pimenta na comida.”

Para o engenheiro Dimas Meireles, o que espanta é o fato de que a violência é muito mais aceita pela sociedade - e divulgada no cinema - do que o próprio sexo (Marcos Vieira/EM/DA PRESS)
Para o engenheiro Dimas Meireles, o que espanta é o fato de que a violência é muito mais aceita pela sociedade - e divulgada no cinema - do que o próprio sexo


Pedro Castilho, doutor em psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor de psicologia clínica da PUC Minas, explica que, no que diz respeito às manifestações da sexualidade, vive-se hoje num campo de diversidade muito maior, no qual a posição feminina nem sempre é passiva e a masculina nem sempre é ativa. “Na vida contemporânea, a construção da sexualidade não tem o parâmetro ideal da mulher bonitinha e recatada que vai atender a todos os desejos do homem sem ter, ela própria, desejo nenhum. O que Cinquenta tons de cinza revela são novas formas de manifestação da sexualidade, principalmente feminina, que não passam necessariamente pelo campo da norma. Aí começam a aparecer fantasias eróticas, sádicas e masoquistas”, afirma.

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