Influenciados pelas redes sociais, casos de automutilação entre jovens no Brasil aumentam
Automutilação atinge um em cada cinco adolescentes e adultos jovens no mundo, segundo estudos.
Sandra Kiefer - Estado de Minas
Publicação:09/03/2015 10:37Atualização: 09/03/2015 10:45
A adolescente de cabelos coloridos de vermelho D.S., de 14 anos, começou a se automutilar aos 13 anos, em outubro passado. Depois de sangrar a palavra “fim” na coxa direita, indicando que queria interromper o processo, decidiu pedir socorro à mãe. A funcionária pública J. conseguiu internar a filha no Centro Psíquico da Adolescência e Infância (Cepai) da rede Fhemig. “Estou apavorada. Mesmo na clínica, ela está se cortando toda. Estou em pânico só de ver as fotos. A internet contribuiu muito para isso acontecer. É um absurdo”, desabafou a mãe, desesperada. Segundo ela, havia outra adolescente internada com o mesmo quadro na instituição, usando luvas rosas para disfarçar os ferimentos.
A pediatra carioca Gabriela Pedrosa, que atua em Belo Horizonte, alerta para a multiplicação dos pacientes batendo à porta do consultório. “A pediatria é a porta de entrada para os casos. A mãe traz a menina, queixando-se que está está indo mal na escola e não quer conversar. Depois da terceira, quarta consulta, a pré-adolescente mostra os cortes e revela o que está ocorrendo. Nos últimos cinco anos, a procura aumentou muito”, diz. Segundo ela, nos anos de 2012 e 2013, foram atendidos dois a três pacientes com o quadro, enquanto ano passado a demanda saltou para dois por mês.
Embora os grupos da internet tenham o suicídio como pano de fundo, a maior parte dos adolescentes que se autoagridem não está realmente tentando se matar e tampouco faz isso para chamar atenção. “O adolescente que se mutila não está tentando o suicídio, apesar de poder ser um desejo seu. O que ele quer, com o ato de se mutilar, é aliviar a sua dor emocional e evitar, justamente, o suicídio”, esclarece Cristina Chen, que defendeu tese de pós-graduação sobre automutilação na Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo, em 2010. Segundo a especialista, ele também não está tentando chamar a atenção para si. Prova disso é que o ritual é feito às escondidas e o adolescente busca de todas as formas esconder os machucados, feitos em locais do corpo que não são tão expostos.
“Até há algum tempo, o fenômeno já existia, mas não se falava nele. Agora, com a internet, tornou-se mais fácil chegar ao atendimento”, defende a psiquiatra Jackeline Giuspi, coordenadora do Ambulatório de Transtornos do Impulso, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, e autora de tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com este tema, em 2013. Ela criou o ambulatório para prestar atendimento gratuito em 2004 em princípio voltado para adultos. Segundo estudos alemães, ingleses e norte-americanos, 17% da população geral de adolescentes e jovens adultos e 35% dos pacientes psiquiátricos se automutilam. “Nos aplicativos como o Tumblr e até no YouTube, há páginas e páginas justificando que a dor do corpo não é nada perto da dor da alma. Se a garota enfrenta situações próprias da adolescência, como brigar com o namorado ou não gostar do próprio corpo, ela busca uma saída fácil”, afirma ela, que já atendeu até crianças a partir de 9 anos com o problema.
VÍCIO
Aos poucos, o ambulatório passaria a receber casos frequentes envolvendo adolescentes, especialmente depois da divulgação da notícia da brasileira grávida presa na Suíça, em 2009, que dizia ter sido atacada por skinheads. Mais tarde, a moça confessou que se automutilava. “Quanto mais tempo se leva para buscar ajuda, mais difícil é reverter, porque o paciente fica viciado na endorfina liberada no momento do corte. Se arranjava motivos para se cortar, como brigar com o namorado ou ir mal na prova, ele passa a desejar a sensação boa, independentemente de estar triste ou alegre. Começa a se machucar por qualquer coisa. Vira um vício”, diz Jackeline Giuspi, lembrando que a endorfina liberada nos cortes superficiais equivale a meia hora de corrida.
Moda e alívio emocional
A moda da automutilação está ganhando adeptos entre adolescentes que enfrentam dificuldades em atravessar a fase das mudanças, mas também entre aqueles atraídos pela curiosidade de experimentar. “Para ser aceito no grupo da internet, da escola ou do bairro, o adolescente acaba cedendo à pressão social para não perder a amizade. Ele pode sentir dor e nunca mais fazer. Mas, se estiver passando por um processo de incompreensão, pode acabar aprendendo o método como forma de encontrar alívio psíquico e emocional”, diz Cristina Silveira, psicanalista e psicopedagoga.
Em ambos os casos, tanto por modismo ou por transtorno, os pais devem acender a luz amarela para o comportamento dos filhos. “Além da falta de limites, não há mais a figura paterna para dar limite aos filhos. As crianças têm de lidar com situação cotidianas que exigem muita maturidade e que elas ainda não têm. Isso gera uma ansiedade muito grande”, alerta Cristina, que recebeu no consultório adolescente que tentou se matar, no último grau da automutilação.
“Ao perceber que o filho está se cortando, é natural que os pais fiquem assustados. Eles não têm obrigação alguma de saber o que fazer naquele momento. Só recomendo que enxerguem os ferimentos sem preconceitos”, ensina a psiquiatra Jackeline Giuspi,do HC de São Paulo. Segundo ela, ajuda bastante fazer de conta que o filho está apenas chorando. “Ele precisa menos de crítica e mais de espaço para dizer o que está sentindo, para desabafar, sem julgamentos”.
APOIO FAMILIAR A pediatra Gabriela Pedrosa aconselha que, depois que a situação for identificada na consulta pediátrica, o adolescente deve ser encaminhado a ajuda profissional. “Se for algo leve, terapia resolve. Se estiver deprimido ou com transtorno, vai precisar de atendimento de urgência na psiquiatria, além de apoio em casa”, diz. A automutilação é um sinal de que algo precisa ser melhorado na convivência familiar. “Os filhos precisam muito da presença da família. É preciso ter tempo e tempo com qualidade. Vamos voltar a comer juntos e levantar a cabeça do celular. Voltar a nos olhar nos olhos”.
D.S., de 14 anos, foi internada pela mãe por estar há um ano se automutilando
Eu estava me sentindo sozinha, sem ninguém. Não queria mais sair de casa e cheguei a pesar 80 quilos por causa do medicamento para depressão. Estava muito infeliz. Dei uma olhada na Play Store (Google) e encontrei os grupos. Acontecia a mesma coisa comigo e com eles.
2 - Como você está indo na escola?
Estou indo muito mal. Nem comecei ainda a estudar este ano. Estou na quinta série e tomei três bombas.
3 - O que você sente quando se corta?
Sinto um alívio, uma coisa boa. Logo depois, me arrependo e vejo que não é bom. É como uma droga que a gente não consegue parar de usar. Na verdade, eu mesma pedi ajuda para a minha mãe porque estava me cortando muito. Agora, estou conseguindo me controlar e há três dias não faço isso.
Algumas páginas têm mais de 40 mil curtidas, preocupando pais e especialistas
Saiba mais...
Aproximadamente um em cada cinco adolescentes e adultos jovens no mundo está se automutilando nos braços, pernas e em outras partes do corpo passíveis de se esconder com pulseiras, luvas e blusas de manga bem comprida, apontam estudos europeus e norte-americano. Eles usam estiletes, apontadores e lâminas de gilete para se cortar e, com isso, tentar ser aceitos nas tribos da internet, que arrebatam cada vez mais seguidores no auge da adolescência, insatisfeitos com o corpo, espinhas e dúvidas em relação ao futuro. O aumento do número de casos, em sua maioria de meninas, se deve principalmente à influência de páginas no Facebook e no Tumblr, como Garota Depressiva, que ganham slogans sugestivos como “Sinto que vivo numa gaiola, apenas observando os outros pássaros que voam livremente”. Em outros endereços na internet, que trocam de nome à medida em que são alvo de denúncias, o recado é menos sutil: Anjos Suicidas, Poeta que se Corta e Pulsos que Choram, este último com mais de 10 mil curtidas. Em Querida Lâmina, com mais de 40 mil inscritos no WhatsApp e 40,5 mil curtidas no Facebook, a comunidade segue o lema “Sumir seria uma ótima opção”.- Até 20% dos adolescentes e adultos jovens já experimentaram a automutilação
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A adolescente de cabelos coloridos de vermelho D.S., de 14 anos, começou a se automutilar aos 13 anos, em outubro passado. Depois de sangrar a palavra “fim” na coxa direita, indicando que queria interromper o processo, decidiu pedir socorro à mãe. A funcionária pública J. conseguiu internar a filha no Centro Psíquico da Adolescência e Infância (Cepai) da rede Fhemig. “Estou apavorada. Mesmo na clínica, ela está se cortando toda. Estou em pânico só de ver as fotos. A internet contribuiu muito para isso acontecer. É um absurdo”, desabafou a mãe, desesperada. Segundo ela, havia outra adolescente internada com o mesmo quadro na instituição, usando luvas rosas para disfarçar os ferimentos.
A pediatra carioca Gabriela Pedrosa, que atua em Belo Horizonte, alerta para a multiplicação dos pacientes batendo à porta do consultório. “A pediatria é a porta de entrada para os casos. A mãe traz a menina, queixando-se que está está indo mal na escola e não quer conversar. Depois da terceira, quarta consulta, a pré-adolescente mostra os cortes e revela o que está ocorrendo. Nos últimos cinco anos, a procura aumentou muito”, diz. Segundo ela, nos anos de 2012 e 2013, foram atendidos dois a três pacientes com o quadro, enquanto ano passado a demanda saltou para dois por mês.
Embora os grupos da internet tenham o suicídio como pano de fundo, a maior parte dos adolescentes que se autoagridem não está realmente tentando se matar e tampouco faz isso para chamar atenção. “O adolescente que se mutila não está tentando o suicídio, apesar de poder ser um desejo seu. O que ele quer, com o ato de se mutilar, é aliviar a sua dor emocional e evitar, justamente, o suicídio”, esclarece Cristina Chen, que defendeu tese de pós-graduação sobre automutilação na Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo, em 2010. Segundo a especialista, ele também não está tentando chamar a atenção para si. Prova disso é que o ritual é feito às escondidas e o adolescente busca de todas as formas esconder os machucados, feitos em locais do corpo que não são tão expostos.
“Até há algum tempo, o fenômeno já existia, mas não se falava nele. Agora, com a internet, tornou-se mais fácil chegar ao atendimento”, defende a psiquiatra Jackeline Giuspi, coordenadora do Ambulatório de Transtornos do Impulso, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, e autora de tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com este tema, em 2013. Ela criou o ambulatório para prestar atendimento gratuito em 2004 em princípio voltado para adultos. Segundo estudos alemães, ingleses e norte-americanos, 17% da população geral de adolescentes e jovens adultos e 35% dos pacientes psiquiátricos se automutilam. “Nos aplicativos como o Tumblr e até no YouTube, há páginas e páginas justificando que a dor do corpo não é nada perto da dor da alma. Se a garota enfrenta situações próprias da adolescência, como brigar com o namorado ou não gostar do próprio corpo, ela busca uma saída fácil”, afirma ela, que já atendeu até crianças a partir de 9 anos com o problema.
VÍCIO
Aos poucos, o ambulatório passaria a receber casos frequentes envolvendo adolescentes, especialmente depois da divulgação da notícia da brasileira grávida presa na Suíça, em 2009, que dizia ter sido atacada por skinheads. Mais tarde, a moça confessou que se automutilava. “Quanto mais tempo se leva para buscar ajuda, mais difícil é reverter, porque o paciente fica viciado na endorfina liberada no momento do corte. Se arranjava motivos para se cortar, como brigar com o namorado ou ir mal na prova, ele passa a desejar a sensação boa, independentemente de estar triste ou alegre. Começa a se machucar por qualquer coisa. Vira um vício”, diz Jackeline Giuspi, lembrando que a endorfina liberada nos cortes superficiais equivale a meia hora de corrida.
Moda e alívio emocional
A moda da automutilação está ganhando adeptos entre adolescentes que enfrentam dificuldades em atravessar a fase das mudanças, mas também entre aqueles atraídos pela curiosidade de experimentar. “Para ser aceito no grupo da internet, da escola ou do bairro, o adolescente acaba cedendo à pressão social para não perder a amizade. Ele pode sentir dor e nunca mais fazer. Mas, se estiver passando por um processo de incompreensão, pode acabar aprendendo o método como forma de encontrar alívio psíquico e emocional”, diz Cristina Silveira, psicanalista e psicopedagoga.
Em ambos os casos, tanto por modismo ou por transtorno, os pais devem acender a luz amarela para o comportamento dos filhos. “Além da falta de limites, não há mais a figura paterna para dar limite aos filhos. As crianças têm de lidar com situação cotidianas que exigem muita maturidade e que elas ainda não têm. Isso gera uma ansiedade muito grande”, alerta Cristina, que recebeu no consultório adolescente que tentou se matar, no último grau da automutilação.
“Ao perceber que o filho está se cortando, é natural que os pais fiquem assustados. Eles não têm obrigação alguma de saber o que fazer naquele momento. Só recomendo que enxerguem os ferimentos sem preconceitos”, ensina a psiquiatra Jackeline Giuspi,do HC de São Paulo. Segundo ela, ajuda bastante fazer de conta que o filho está apenas chorando. “Ele precisa menos de crítica e mais de espaço para dizer o que está sentindo, para desabafar, sem julgamentos”.
APOIO FAMILIAR A pediatra Gabriela Pedrosa aconselha que, depois que a situação for identificada na consulta pediátrica, o adolescente deve ser encaminhado a ajuda profissional. “Se for algo leve, terapia resolve. Se estiver deprimido ou com transtorno, vai precisar de atendimento de urgência na psiquiatria, além de apoio em casa”, diz. A automutilação é um sinal de que algo precisa ser melhorado na convivência familiar. “Os filhos precisam muito da presença da família. É preciso ter tempo e tempo com qualidade. Vamos voltar a comer juntos e levantar a cabeça do celular. Voltar a nos olhar nos olhos”.
1 - Por que você começou?
Eu estava me sentindo sozinha, sem ninguém. Não queria mais sair de casa e cheguei a pesar 80 quilos por causa do medicamento para depressão. Estava muito infeliz. Dei uma olhada na Play Store (Google) e encontrei os grupos. Acontecia a mesma coisa comigo e com eles.
2 - Como você está indo na escola?
Estou indo muito mal. Nem comecei ainda a estudar este ano. Estou na quinta série e tomei três bombas.
3 - O que você sente quando se corta?
Sinto um alívio, uma coisa boa. Logo depois, me arrependo e vejo que não é bom. É como uma droga que a gente não consegue parar de usar. Na verdade, eu mesma pedi ajuda para a minha mãe porque estava me cortando muito. Agora, estou conseguindo me controlar e há três dias não faço isso.