CORTES NO CORPO, DOR NA ALMA »

Influenciados pelas redes sociais, casos de automutilação entre jovens no Brasil aumentam

Automutilação atinge um em cada cinco adolescentes e adultos jovens no mundo, segundo estudos.

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Sandra Kiefer - Estado de Minas Publicação:09/03/2015 10:37Atualização:09/03/2015 10:45
Algumas páginas têm mais de 40 mil curtidas, preocupando pais e especialistas (Reprodução Internet)
Algumas páginas têm mais de 40 mil curtidas, preocupando pais e especialistas

Aproximadamente um em cada cinco adolescentes e adultos jovens no mundo está se automutilando nos braços, pernas e em outras partes do corpo passíveis de se esconder com pulseiras, luvas e blusas de manga bem comprida, apontam estudos europeus e norte-americano. Eles usam estiletes, apontadores e lâminas de gilete para se cortar e, com isso, tentar ser aceitos nas tribos da internet, que arrebatam cada vez mais seguidores no auge da adolescência, insatisfeitos com o corpo, espinhas e dúvidas em relação ao futuro. O aumento do número de casos, em sua maioria de meninas, se deve principalmente à influência de páginas no Facebook e no Tumblr, como Garota Depressiva, que ganham slogans sugestivos como “Sinto que vivo numa gaiola, apenas observando os outros pássaros que voam livremente”. Em outros endereços na internet, que trocam de nome à medida em que são alvo de denúncias, o recado é menos sutil: Anjos Suicidas, Poeta que se Corta e Pulsos que Choram, este último com mais de 10 mil curtidas. Em Querida Lâmina, com mais de 40 mil inscritos no WhatsApp e 40,5 mil curtidas no Facebook, a comunidade segue o lema “Sumir seria uma ótima opção”.

A adolescente de cabelos coloridos de vermelho D.S., de 14 anos, começou a se automutilar aos 13 anos, em outubro passado. Depois de sangrar a palavra “fim” na coxa direita, indicando que queria interromper o processo, decidiu pedir socorro à mãe. A funcionária pública J. conseguiu internar a filha no Centro Psíquico da Adolescência e Infância (Cepai) da rede Fhemig. “Estou apavorada. Mesmo na clínica, ela está se cortando toda. Estou em pânico só de ver as fotos. A internet contribuiu muito para isso acontecer. É um absurdo”, desabafou a mãe, desesperada. Segundo ela, havia outra adolescente internada com o mesmo quadro na instituição, usando luvas rosas para disfarçar os ferimentos.

A pediatra carioca Gabriela Pedrosa, que atua em Belo Horizonte, alerta para a multiplicação dos pacientes batendo à porta do consultório. “A pediatria é a porta de entrada para os casos. A mãe traz a menina, queixando-se que está está indo mal na escola e não quer conversar. Depois da terceira, quarta consulta, a pré-adolescente mostra os cortes e revela o que está ocorrendo. Nos últimos cinco anos, a procura aumentou muito”, diz. Segundo ela, nos anos de 2012 e 2013, foram atendidos dois a três pacientes com o quadro, enquanto ano passado a demanda saltou para dois por mês.

Embora os grupos da internet tenham o suicídio como pano de fundo, a maior parte dos adolescentes que se autoagridem não está realmente tentando se matar e tampouco faz isso para chamar atenção. “O adolescente que se mutila não está tentando o suicídio, apesar de poder ser um desejo seu. O que ele quer, com o ato de se mutilar, é aliviar a sua dor emocional e evitar, justamente, o suicídio”, esclarece Cristina Chen, que defendeu tese de pós-graduação sobre automutilação na Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo, em 2010. Segundo a especialista, ele também não está tentando chamar a atenção para si. Prova disso é que o ritual é feito às escondidas e o adolescente busca de todas as formas esconder os machucados, feitos em locais do corpo que não são tão expostos.

“Até há algum tempo, o fenômeno já existia, mas não se falava nele. Agora, com a internet, tornou-se mais fácil chegar ao atendimento”, defende a psiquiatra Jackeline Giuspi, coordenadora do Ambulatório de Transtornos do Impulso, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, e autora de tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com este tema, em 2013. Ela criou o ambulatório para prestar atendimento gratuito em 2004 em princípio voltado para adultos. Segundo estudos alemães, ingleses e norte-americanos, 17% da população geral de adolescentes e jovens adultos e 35% dos pacientes psiquiátricos se automutilam. “Nos aplicativos como o Tumblr e até no YouTube, há páginas e páginas justificando que a dor do corpo não é nada perto da dor da alma. Se a garota enfrenta situações próprias da adolescência, como brigar com o namorado ou não gostar do próprio corpo, ela busca uma saída fácil”, afirma ela, que já atendeu até crianças a partir de 9 anos com o problema.

VÍCIO
Aos poucos, o ambulatório passaria a receber casos frequentes envolvendo adolescentes, especialmente depois da divulgação da notícia da brasileira grávida presa na Suíça, em 2009, que dizia ter sido atacada por skinheads. Mais tarde, a moça confessou que se automutilava. “Quanto mais tempo se leva para buscar ajuda, mais difícil é reverter, porque o paciente fica viciado na endorfina liberada no momento do corte. Se arranjava motivos para se cortar, como brigar com o namorado ou ir mal na prova, ele passa a desejar a sensação boa, independentemente de estar triste ou alegre. Começa a se machucar por qualquer coisa. Vira um vício”, diz Jackeline Giuspi, lembrando que a endorfina liberada nos cortes superficiais equivale a meia hora de corrida.

Moda e alívio emocional
A moda da automutilação está ganhando adeptos entre adolescentes que enfrentam dificuldades em atravessar a fase das mudanças, mas também entre aqueles atraídos pela curiosidade de experimentar. “Para ser aceito no grupo da internet, da escola ou do bairro, o adolescente acaba cedendo à pressão social para não perder a amizade. Ele pode sentir dor e nunca mais fazer. Mas, se estiver passando por um processo de incompreensão, pode acabar aprendendo o método como forma de encontrar alívio psíquico e emocional”, diz Cristina Silveira, psicanalista e psicopedagoga.

Em ambos os casos, tanto por modismo ou por transtorno, os pais devem acender a luz amarela para o comportamento dos filhos. “Além da falta de limites, não há mais a figura paterna para dar limite aos filhos. As crianças têm de lidar com situação cotidianas que exigem muita maturidade e que elas ainda não têm. Isso gera uma ansiedade muito grande”, alerta Cristina, que recebeu no consultório adolescente que tentou se matar, no último grau da automutilação.

“Ao perceber que o filho está se cortando, é natural que os pais fiquem assustados. Eles não têm obrigação alguma de saber o que fazer naquele momento. Só recomendo que enxerguem os ferimentos sem preconceitos”, ensina a psiquiatra Jackeline Giuspi,do HC de São Paulo. Segundo ela, ajuda bastante fazer de conta que o filho está apenas chorando. “Ele precisa menos de crítica e mais de espaço para dizer o que está sentindo, para desabafar, sem julgamentos”.

APOIO FAMILIAR
A pediatra Gabriela Pedrosa aconselha que, depois que a situação for identificada na consulta pediátrica, o adolescente deve ser encaminhado a ajuda profissional. “Se for algo leve, terapia resolve. Se estiver deprimido ou com transtorno, vai precisar de atendimento de urgência na psiquiatria, além de apoio em casa”, diz. A automutilação é um sinal de que algo precisa ser melhorado na convivência familiar. “Os filhos precisam muito da presença da família. É preciso ter tempo e tempo com qualidade. Vamos voltar a comer juntos e levantar a cabeça do celular. Voltar a nos olhar nos olhos”.


D.S., de 14 anos, foi internada pela mãe por estar há um ano se automutilando

 

1 - Por que você começou?
Eu estava me sentindo sozinha, sem ninguém. Não queria mais sair de casa e cheguei a pesar 80 quilos por causa do medicamento para depressão. Estava muito infeliz. Dei uma olhada na Play Store (Google) e encontrei os grupos. Acontecia a mesma coisa comigo e com eles.

2 - Como você está indo na escola?

Estou indo muito mal. Nem comecei ainda a estudar este ano. Estou na quinta série e tomei três bombas.

3 - O que você sente quando se corta?

Sinto um alívio, uma coisa boa. Logo depois, me arrependo e vejo que não é bom. É como uma droga que a gente não consegue parar de usar. Na verdade, eu mesma pedi ajuda para a minha mãe porque estava me cortando muito. Agora, estou conseguindo me controlar e há três dias não faço isso.

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