Esclerose múltipla afeta cada pessoa de uma forma diferente e é um desafio para médicos e pacientes
A doença autoimune que acomete 2,3 milhões de pessoas tem origem e sintomas diversos, intrigando médicos, pacientes e cientistas
Roberta Machado - Correio Braziliense
Publicação:28/10/2015 15:00
Barcelona — A busca por um diagnóstico pode fazer com que o paciente migre pelos consultórios de profissionais de diferentes especialidades e se submeta a uma bateria de exames até que um neurologista finalmente ligue os pontos: os problemas de visão, a fraqueza muscular e a sensação de formigamento são causados por uma única doença autoimune. A esclerose múltipla volta as células de defesa contra o material protetor do sistema nervoso e afeta cada pessoa de uma forma diferente, tornando o tratamento um verdadeiro desafio personalizado para médicos e pacientes. As causas dessa condição crônica, no entanto, parecem ser tão variadas quanto os seus sintomas.
O problema foi tema de debate no 31º Congresso do Comitê Europeu parta Tratamento e Pesquisa em Esclerose Múltipla (ECTRIMS), realizado neste mês em Barcelona, na Espanha. Mais de 8 mil especialistas de todo o mundo se reuniram para falar sobre a doença que afeta 2,3 milhões de pessoas e é diagnosticada em 10 mil novos pacientes todos os anos. Como o próprio mecanismo que leva o sistema imune a atacar mielina (veja infográfico) não é totalmente compreendido, diferentemente de outras condições crônicas como diabetes ou pressão alta, falar em prevenção contra a esclerose múltipla ainda é uma abordagem complexa.
David Miller, diretor do Comitê Científico do ECTRIMS, explica que alguns fatores ligados à doença estão bem estabelecidos, como a deficiência de vitamina D e o fumo. No entanto, ainda não há dados que mostrem com clareza como a mudança de hábitos pode realmente reduzir a incidência da doença. “Então, talvez o foco atual seja mais em compreender os mecanismos que ligam esses fatores à esclerose múltipla”, aponta Miller, que também é professor de neurologia clínica do Hospital Nacional de Neurologia e Neurocirurgia no University College Hospital de Londres.
A baixa incidência de esclerose múltipla nos trópicos levou os pesquisadores a acreditar que a falta de exposição ao sol pode ter algo a ver com a doença; e trabalhos recentes já comprovam que a baixa absorção de radiação UVB é um fator de risco para o desenvolvimento da esclerose múltipla. Um estudo apresentado em Barcelona confirmou essa suspeita ao mostrar que uma infância sob o sol pode reduzir as chances de desenvolver a doença quase pela metade.
Os cientistas calcularam a exposição cumulativa aos raios UVB de 151 enfermeiras diagnosticadas com a doença de acordo com os hábitos delas e com o local em que passaram a vida, e compararam os resultados com os de 235 pessoas saudáveis. Os resultados mostraram que as mulheres que viveram entre os cinco e 15 anos em regiões ricas em luz natural tinham um risco 48% menor de ter esclerose múltipla. Já as que cresceram em locais com pouca incidência de raios UVB quase dobravam as chances de desenvolver a doença se evitassem o sol durante o verão.
A luz solar tem vários efeitos benéficos ao sistema imune, mas ainda não é certo quais deles podem estar ligados à esclerose múltipla. “Ela ajuda na produção da vitamina D, o que tem um efeito no sistema imune. Também pode influenciar na produção de melatonina, que impacta no sistema imune; e influencia a regulação da imunidade assim que atinge a pele”, enumera Helen Tremlett, professora da University of British Columbia, em Vancouver, no Canadá, e autora do estudo. Embora esteja segura em defender o papel protetor do sol, a pesquisadora não arrisca receitar um tempo de exposição diário à luz natural mínimo para evitar o problema autoimune. “Não há resposta mágica. Acho que seria diferente de acordo com a cor da pele e com a latitude em que você está”, pondera.
Quebra-cabeça
Seja na exposição ao sol, seja em qualquer fator ligado à esclerose múltipla, não existe receita conhecida para a condição neurológica: embora o alvo da doença seja sempre o mesmo, são vários os caminhos que levam as células de defesa a destruir a mielina e afetar o sistema nervoso do paciente. Os especialistas acreditam que os fatores ambientais afetem o organismo de forma cumulativa, de acordo com a predisposição de cada paciente. A genética, no entanto, é apenas mais um entre vários fatores do quebra-cabeça que leva ao quadro clínico. As chances de um gêmeo idêntico de um paciente contrair a doença é de apenas 30%, e as pesquisas indicam mais de uma centena de marcadores genéticos que estão ligados à esclerose múltipla.
O segredo parece estar na combinação da genética com os fatores ambientais. Um estudo com quase 2 mil pacientes indicou que, combinados com dois dos principais marcadores genéticos ligados à doença, o fumo e a exposição a solventes orgânicos aumenta o risco de desenvolvimento da esclerose múltipla em mais de 40 vezes. Os autores do trabalho acreditam que o mecanismo que liga o fumo e a predisposição genética à condição autoimune seja similar ao que causa a inflamação que leva à artrite reumatoide, embora ainda não possam descrever o processo com certeza. “Há uma relação muito clara. Quanto mais você fuma, e por mais tempo, maior o efeito será no organismo. Isso também é um exemplo para o índice de massa corporal. Se você for jovem, tem uma forte relação aí”, explica Lars Alfredsson, do Instituto Karolinska, na Suécia.
Além do fumo e da obesidade, outros fatores de risco ligados à esclerose múltipla são a desregulação do relógio biológico, o consumo exagerado de álcool e o excesso de sódio. Pesquisas realizadas na Noruega, por exemplo, mostram que o alto consumo de peixes ricos em ômega 3 está associado a um menor risco de ter esclerose múltipla, e cientistas alemães demonstraram que os compostos dos ácidos graxos têm um efeito na regulação das células de defesa envolvidas na doença.
Sinais da flora
Uma das mais recentes abordagens sobre as possíveis causas dessa doença tão personalizada tem procurado respostas dentro de cada paciente — mais especificamente na microbiota de cada um. As bactérias têm um papel importante na produção de células T e B, encarregadas da defesa do organismo, e estudos com ratos mostram que a presença desses micro-organismos pode afetar o sistema nervoso central. Os cientistas acreditam que a microbiota tem influência sobre o tecido linfoide associado ao trato gastrointestinal, que, por sua vez, pode introduzir produtos bacterianos que atrapalham o sistema imune. “As células T e B amadurecem nesse tecido e migram para a corrente sanguínea antes de ir para o cérebro”, descreve Reinhard Hohlfeld, pesquisador que apresentou a teoria em Barcelona e professor da Ludwig-Maximilian-University, em Munique, na Alemanha.
Uma intervenção na microbiota poderia, portanto, ajudar no controle da reação autoimune contra o tecido do sistema nervoso central que causa a doença. A possível solução para o problema pode ser um novo tipo de medicamento, um transplante fecal ou até mesmo uma simples mudança na dieta — ou a combinação de todos esses tratamentos. Antes que os médicos possam recomendar qualquer uma dessas medidas, no entanto, mais estudos precisam ser feitos. “Precisamos compreender as propriedades e as associações que a microbiota humana tem com doenças. A flora deveria ser considerada nos testes de esclerose múltipla e nos novos estudos”, acredita Hohlfeld.
Sol protetor
A esclerose múltipla é mais comum na América do Norte, onde há 140 casos da doença a cada 100 mil pessoas. Na Europa, segunda região de maior incidência da condição crônica, o índice é de 108 pessoas diagnosticadas. De acordo com o Atlas da Federação Internacional de Esclerose Múltipla, o número é muito maior do que o registrado em regiões com alta exposição solar, como a África Subsaariana, em que 2,1 pessoas em cada 100 mil sofrem com a condição autoimune. No Brasil, são cerca de 30 mil pessoas com a doença.
Aposta nos hábitos
“Não tem como prevenir algo que não tem um agente único de causa. Quando se fala em prevenção de gripe, de varicela, de tuberculose, há um agente único e você pode prevenir essa contaminação. A esclerose múltipla, como muitas doenças autoimunes, é considerada uma enfermidade de etiologia ou causa complexa, em que há múltiplos fatores genéticos associados e múltiplos fatores ambientais conhecidos. Sabemos que exposição à luz solar é um fator, que existem alguns agentes infecciosos, mas não temos definidos exatamente quais são. Estilo de vida é um fator e o excesso do consumo de sal tem se mostrado associado a doenças autoimunes, assim como a obesidade. São coisas que a gente sabe que estão associadas, mas se isso vai prevenir ou não a doença é outra história. Ainda assim se trata de cuidados ligados ao estilo de vida saudável, e esse é mais um motivo para fortalecermos esse tipo de recomendação”
Denis Bichuetti, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia e professor adjunto de neurologia clínica na Unifesp
* A repórter viajou a convite da Biogen
O problema foi tema de debate no 31º Congresso do Comitê Europeu parta Tratamento e Pesquisa em Esclerose Múltipla (ECTRIMS), realizado neste mês em Barcelona, na Espanha. Mais de 8 mil especialistas de todo o mundo se reuniram para falar sobre a doença que afeta 2,3 milhões de pessoas e é diagnosticada em 10 mil novos pacientes todos os anos. Como o próprio mecanismo que leva o sistema imune a atacar mielina (veja infográfico) não é totalmente compreendido, diferentemente de outras condições crônicas como diabetes ou pressão alta, falar em prevenção contra a esclerose múltipla ainda é uma abordagem complexa.
David Miller, diretor do Comitê Científico do ECTRIMS, explica que alguns fatores ligados à doença estão bem estabelecidos, como a deficiência de vitamina D e o fumo. No entanto, ainda não há dados que mostrem com clareza como a mudança de hábitos pode realmente reduzir a incidência da doença. “Então, talvez o foco atual seja mais em compreender os mecanismos que ligam esses fatores à esclerose múltipla”, aponta Miller, que também é professor de neurologia clínica do Hospital Nacional de Neurologia e Neurocirurgia no University College Hospital de Londres.
A baixa incidência de esclerose múltipla nos trópicos levou os pesquisadores a acreditar que a falta de exposição ao sol pode ter algo a ver com a doença; e trabalhos recentes já comprovam que a baixa absorção de radiação UVB é um fator de risco para o desenvolvimento da esclerose múltipla. Um estudo apresentado em Barcelona confirmou essa suspeita ao mostrar que uma infância sob o sol pode reduzir as chances de desenvolver a doença quase pela metade.
Os cientistas calcularam a exposição cumulativa aos raios UVB de 151 enfermeiras diagnosticadas com a doença de acordo com os hábitos delas e com o local em que passaram a vida, e compararam os resultados com os de 235 pessoas saudáveis. Os resultados mostraram que as mulheres que viveram entre os cinco e 15 anos em regiões ricas em luz natural tinham um risco 48% menor de ter esclerose múltipla. Já as que cresceram em locais com pouca incidência de raios UVB quase dobravam as chances de desenvolver a doença se evitassem o sol durante o verão.
A luz solar tem vários efeitos benéficos ao sistema imune, mas ainda não é certo quais deles podem estar ligados à esclerose múltipla. “Ela ajuda na produção da vitamina D, o que tem um efeito no sistema imune. Também pode influenciar na produção de melatonina, que impacta no sistema imune; e influencia a regulação da imunidade assim que atinge a pele”, enumera Helen Tremlett, professora da University of British Columbia, em Vancouver, no Canadá, e autora do estudo. Embora esteja segura em defender o papel protetor do sol, a pesquisadora não arrisca receitar um tempo de exposição diário à luz natural mínimo para evitar o problema autoimune. “Não há resposta mágica. Acho que seria diferente de acordo com a cor da pele e com a latitude em que você está”, pondera.
Quebra-cabeça
Seja na exposição ao sol, seja em qualquer fator ligado à esclerose múltipla, não existe receita conhecida para a condição neurológica: embora o alvo da doença seja sempre o mesmo, são vários os caminhos que levam as células de defesa a destruir a mielina e afetar o sistema nervoso do paciente. Os especialistas acreditam que os fatores ambientais afetem o organismo de forma cumulativa, de acordo com a predisposição de cada paciente. A genética, no entanto, é apenas mais um entre vários fatores do quebra-cabeça que leva ao quadro clínico. As chances de um gêmeo idêntico de um paciente contrair a doença é de apenas 30%, e as pesquisas indicam mais de uma centena de marcadores genéticos que estão ligados à esclerose múltipla.
O segredo parece estar na combinação da genética com os fatores ambientais. Um estudo com quase 2 mil pacientes indicou que, combinados com dois dos principais marcadores genéticos ligados à doença, o fumo e a exposição a solventes orgânicos aumenta o risco de desenvolvimento da esclerose múltipla em mais de 40 vezes. Os autores do trabalho acreditam que o mecanismo que liga o fumo e a predisposição genética à condição autoimune seja similar ao que causa a inflamação que leva à artrite reumatoide, embora ainda não possam descrever o processo com certeza. “Há uma relação muito clara. Quanto mais você fuma, e por mais tempo, maior o efeito será no organismo. Isso também é um exemplo para o índice de massa corporal. Se você for jovem, tem uma forte relação aí”, explica Lars Alfredsson, do Instituto Karolinska, na Suécia.
Além do fumo e da obesidade, outros fatores de risco ligados à esclerose múltipla são a desregulação do relógio biológico, o consumo exagerado de álcool e o excesso de sódio. Pesquisas realizadas na Noruega, por exemplo, mostram que o alto consumo de peixes ricos em ômega 3 está associado a um menor risco de ter esclerose múltipla, e cientistas alemães demonstraram que os compostos dos ácidos graxos têm um efeito na regulação das células de defesa envolvidas na doença.
Sinais da flora
Uma das mais recentes abordagens sobre as possíveis causas dessa doença tão personalizada tem procurado respostas dentro de cada paciente — mais especificamente na microbiota de cada um. As bactérias têm um papel importante na produção de células T e B, encarregadas da defesa do organismo, e estudos com ratos mostram que a presença desses micro-organismos pode afetar o sistema nervoso central. Os cientistas acreditam que a microbiota tem influência sobre o tecido linfoide associado ao trato gastrointestinal, que, por sua vez, pode introduzir produtos bacterianos que atrapalham o sistema imune. “As células T e B amadurecem nesse tecido e migram para a corrente sanguínea antes de ir para o cérebro”, descreve Reinhard Hohlfeld, pesquisador que apresentou a teoria em Barcelona e professor da Ludwig-Maximilian-University, em Munique, na Alemanha.
Uma intervenção na microbiota poderia, portanto, ajudar no controle da reação autoimune contra o tecido do sistema nervoso central que causa a doença. A possível solução para o problema pode ser um novo tipo de medicamento, um transplante fecal ou até mesmo uma simples mudança na dieta — ou a combinação de todos esses tratamentos. Antes que os médicos possam recomendar qualquer uma dessas medidas, no entanto, mais estudos precisam ser feitos. “Precisamos compreender as propriedades e as associações que a microbiota humana tem com doenças. A flora deveria ser considerada nos testes de esclerose múltipla e nos novos estudos”, acredita Hohlfeld.
Sol protetor
A esclerose múltipla é mais comum na América do Norte, onde há 140 casos da doença a cada 100 mil pessoas. Na Europa, segunda região de maior incidência da condição crônica, o índice é de 108 pessoas diagnosticadas. De acordo com o Atlas da Federação Internacional de Esclerose Múltipla, o número é muito maior do que o registrado em regiões com alta exposição solar, como a África Subsaariana, em que 2,1 pessoas em cada 100 mil sofrem com a condição autoimune. No Brasil, são cerca de 30 mil pessoas com a doença.
Aposta nos hábitos
“Não tem como prevenir algo que não tem um agente único de causa. Quando se fala em prevenção de gripe, de varicela, de tuberculose, há um agente único e você pode prevenir essa contaminação. A esclerose múltipla, como muitas doenças autoimunes, é considerada uma enfermidade de etiologia ou causa complexa, em que há múltiplos fatores genéticos associados e múltiplos fatores ambientais conhecidos. Sabemos que exposição à luz solar é um fator, que existem alguns agentes infecciosos, mas não temos definidos exatamente quais são. Estilo de vida é um fator e o excesso do consumo de sal tem se mostrado associado a doenças autoimunes, assim como a obesidade. São coisas que a gente sabe que estão associadas, mas se isso vai prevenir ou não a doença é outra história. Ainda assim se trata de cuidados ligados ao estilo de vida saudável, e esse é mais um motivo para fortalecermos esse tipo de recomendação”
Denis Bichuetti, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia e professor adjunto de neurologia clínica na Unifesp
* A repórter viajou a convite da Biogen