Insatisfação com o próprio corpo leva adolescentes à mesa de cirurgia, muitas vezes desnecessariamente
Conflitos com a aparência são normais na adolescência, mas insatisfações típicas das mudanças hormonais podem ser contornadas com o apoio dos pais
A fase do estirão anuncia: a adolescência bate à porta. Além das transformações psicológicas, que promovem alterações de humor incessantes, mudanças físicas geram dúvidas e insatisfações nos jovens. A maior parte dessas transformações é indesejada: acne, celulites, estrias, odores característicos dos adultos, cabelo mais crespo ou mais oleoso, alterações posturais... A essas modificações, somam-se ainda os padrões de beleza impostos pela sociedade na qual esses jovens estão inseridos. Embora a maior parte deles viva em constante luta com o espelho na nova fase da vida, é possível contornar a maioria dos problemas, segundo especialistas. Caso de Luís Fellipe Santos, de 17 anos.
O problema do estudante sempre foi os cabelos. Quando era criança, tinha uma vasta cabeleira lisa até a altura dos ombros. “Parecia um indiozinho”, afirma. Com o passar dos anos e muitos cortes esquisitos, o cabelo engrossou e virou um incômodo. Por causa disso, recorreu a vários tipos de tratamento, sonhando com a textura de antigamente: “Alisava, fazia relaxamento e, depois, passava chapinha”, conta o garoto.
A avó, Therezinha Bittencourt, com quem o adolescente vive, nunca gostou desse comportamento. Sempre atentou o neto para as consequências de suas atitudes, mas jamais conseguiu demovê-lo da ideia de alisar os fios. Até que Luís Fellipe, por si só, decidiu mudar e raspou a cabeça. “Hoje, sou mais feliz. Cheguei à conclusão de que aquilo não combinava comigo e que só fazia porque me preocupava com o que os outros pensavam. Foi uma espécie de libertação, me livrei de uma coisa à qual estava preso há muito tempo.”
Na busca por fazer parte do grupo e serem aceitos, os adolescentes, muitas vezes, exageram. Modificam o corpo de maneira prejudicial, ficando sem comer, tomando remédios sem prescrição médica e fazendo muitas tatuagens ou colocando muitos piercings pelo corpo sem pesar os prós e os contras. Muitas vezes, até se submetem a cirurgias plásticas desnecessárias.
De acordo com o presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia, Gabriel Gontijo, jovens bem orientados pelos pais conseguem enfrentar as transformações com mais tranquilidade. Especialmente as físicas. Eles é que buscarão a ajuda correta para que essa fase seja vencida da melhor forma possível. “O importante é que os pais se orientem e tenham paciência para repassar uma informação correta para os filhos. É difícil, porque os adolescentes, nessa etapa, deixam de ouvi-los para seguir o pensamento dos amigos, mas os limites têm de ser muito bem estabelecidos”, afirma o profissional.
Nessa fase, uma das alterações que incomodam os jovens são as acnes. De fundo genético ou hormonal, elas podem proliferar com o uso ou consumo de produtos inadequados. “É muito comum adolescentes fazerem uso de suplementos alimentares sem nenhuma necessidade porque querem ficar fortes. É difícil convencê-los de que as vitaminas e proteínas das quais precisam estão nos alimentos. A ingestão desses suplementos vai desenvolver uma acne mais severa, que pode resultar em cicatriz profunda. A acne dá em uma fase da vida. Passa, mas deixa cicatriz. Então, tudo deve ser pensado e repensado. É nesse sentido que os pais são fundamentais, por exemplo.”
VISÃO DISTORICIDA
A adolescência é, por definição, o conturbado período em que uma criança passa por transformações físicas, psicológicas, sexuais e sociais. Não bastassem essas mudanças naturais, é cada vez mais comum o recurso ao bisturi para fazer alterações estéticas. Pesquisa da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) apontou que, em quatro anos, houve crescimento de 141% no total de intervenções na faixa etária dos 14 aos 18 anos.
Embora o recurso tenha aumentado consideravelmente na sociedade de uma forma geral, o jovem foi o que mais ganhou espaço nas mesas de cirurgia plástica e corretiva: de 6% para 10% dos pacientes. As intervenções mais comuns são de nariz (rinoplastia), mamoplastia redutora, de orelhas de abano, ginecomastia, para assimetrias mamárias ou hipomastias e lipoaspiração, segundo o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica Regional Minas Gerais, Antônio Carlos Vieira.
O estudante Leonardo Vieira Franco, hoje com 16 anos, faz parte dessa lista. Incomodado com o excesso de mama, ele fez uma ginecomastia há três anos. Ele conta que sempre foi uma criança acima do peso. Quando entrou na adolescência, a aparência começou a incomodá-lo. Então, decidiu procurar ajuda de um especialista para fazer uma dieta. “Na época, pesava 68 quilos. Emagreci 13 quilos em seis meses e sobrou muita mama, então, decidi fazer a cirurgia.”
Leonardo contou com o apoio da mãe, Ângela Maria Vieira Franco. “O Leo sempre foi um menino muito querido, de amizade fácil, nunca teve problema de relacionamento até o momento que precisava tirar uma roupa para ir à casa de um amigo que tinha piscina. Ele não deixava de ir, mas não tirava a camisa por vergonha. Então, procuramos um médico para verificar a possibilidade da retirada da glândula, que cresce mais em algumas pessoas que em outras, fizemos a cirurgia e hoje ele é outra pessoa.”
Ângela conta que o filho mudou, completamente, os hábitos: “Antes, ele tinha compulsão por comida. Agora, mais exigente e preocupado com a aparência, prepara o próprio alimento, é disciplinado e determinado e tem acompanhamento de um nutricionista. Faz musculação todos os dias e ainda joga tênis”.
A mãe conta que ela e o marido temiam que o filho desenvolvesse uma preocupação excessiva com a aparência, mas Leonardo assimilou bem as orientações. “Ele é superbem resolvido com o corpo atualmente, usa qualquer tipo de roupa e foi um alívio para a gente. Detalhes que podem parecer bobagem para uns são muito importantes para nós. Imagina ver um filho seu de casaco de frio para cima e para baixo em pleno verão. Hoje, ele põe uma regata e sai.”
CONTRAINDICAÇÃO
Segundo o cirurgião Antônio Carlos Vieira, a intervenção de Leonardo é estética, mas foi feita para corrigir uma deformidade. Esses tipos de cirurgias são chamadas pelos especialistas de estéticas funcionais: “São casos que não são corrigidos com academias, nada vai resolver a não ser a correção cirúrgica”, explica o médico, acrescentando que a lipoaspiração é totalmente contraindicada em adolescentes.
Membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, a cirurgiã Antonia Cupello atenta ainda para um problema que leva à busca pela intervenção estética desnecessária: “Trata-se do Transtorno Dismórfico Corporal, uma doença que também leva à busca por cirurgia plástica estética e decorre, exclusivamente, de fatores psicogênicos, com início na adolescência e com crescimento da incidência nessa faixa etária. Nesses casos, o procedimento é absolutamente contraindicado”.
Se, por um lado, há algumas imperfeições do corpo que só podem ser corrigidas com cirurgia plástica, há outras que são reparadas com tratamento adequado, como os vícios posturais. Vários fatores externos podem provocar esse tipo de problema, que passa a incomodar na adolescência. Foi o que ocorreu com Andressa Silva Soares, de 16 anos. A mochila da escola era um fardo para a estudante. “Carregava muito peso, sentia muita dor na coluna e já andava 'corcovada'. Esteticamente, isso também me incomodava, foi quando decidi fazer um tratamento para corrigir a postura.”
Além de fisioterapia, Andressa começou a fazer gameterapia, tratamento em que a postura é corrigida por meio de jogos de videogame que simulam situações reais, segundo Fernanda Antico Benetti, fisioterapeuta do Instituto de Ebiatria da Faculdade de Medicina do ABC Paulista e professora de fisioterapia da mesma escola. “Os vícios posturais podem causar lesões, irritabilidade e prejuízo escolar. A gameterapia é uma inovação no tratamento desses jovens, porque é uma forma lúdica, além de ser atraente para adolescentes nessa faixa etária.”
A especialista atenta para a importância do tratamento e do papel dos pais nesse momento: “Esses vícios acarretam dores, que muitas vezes culminam com visitas ao médico, porque o adolescente começa a andar com o ombro enrolado e pode ter um desnivelamento das costelas, o que é mais comum entre os jovens. É importante a orientação e o tratamento correto, porque os maus hábitos posturais na adolescência, se não tratados, são carregados para a vida adulta”.
EM BUSCA DA IDENTIDADE
“A beleza está nos olhos de quem vê”, diz um saber popular. A estudante Maria Fernanda Abritta, no entanto, discorda. Mesmo dentro dos padrões de medidas considerados saudáveis, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) – aos 16 anos, tem 1,72m de altura e pesa 63kg –, a adolescente está insatisfeita com o corpo. Quer emagrecer sete quilos, para chegar aos 56kg.
E na busca incessante pelo peso que ela considera ideal, chegou a tomar um polêmico termogênico de mercado para acelerar o metabolismo sem qualquer orientação médica e escondido dos pais. “Alguns amigos homens tomaram e deu muito certo, emagreceram rápido. Ia tomar uma substância concentrada inibidora de apetite, mas por causa disso, resolvi comprar, junto com uma amiga, esse outro”, conta.
Maria Fernanda perdeu bem menos peso do que pretendia, apenas dois quilos, e ainda teve alterações do sono. “Não conseguia dormir depois que comecei a tomar o remédio. Quando conseguia, não passava de três horas mal-dormidas.”
Diante dos problemas consequentes da ingestão do termogênico, a adolescente resolveu contar para os pais e pedir ajuda. “Ficamos muito chateados, porque sabemos do prejuízo que esses medicamentos trazem, mas ela aprendeu a lição. Voltou para a academia e procurou um endocrinologista e um nutricionista. Só é difícil entender essa obsessão, porque a Maria Fernanda é uma menina tão magra!”, questiona a mãe Adriana Abritta.
Luís Fellipe Santos, de 17 anos, raspou a cabeça depois de vários tratamentos para tentar mudar o cabelo, que o incomodava muito. Hoje, se sente satisfeito, mas ainda assim busca um corpo perfeito. Quando criança, sonhava em ser jogador de futebol. Era “bom de bola”, mas desistiu da ideia porque não passava nos testes em razão da baixa estatura. Quando entrou na adolescência, cresceu e decidiu ganhar músculos. Matriculou-se em uma academia, faz musculação diariamente e toma suplementos alimentares, mas sem qualquer orientação especializada. “Por enquanto, pretendo continuar com a minha rotina, com o que estou fazendo. Não tenho orientação de nutricionista. A questão de alimentação, procuro entender e fazer de acordo com o que possa ser bom para os meus objetivos.”
Para a pediatra Marília Maakaroun, especialista em psiquiatria e psicologia da infância e adolescência, casos como o de Maria Fernanda se enquadram na chamada “ditadura da beleza”. Por isso, é um problema de saúde pública. “Estamos vivendo em uma sociedade que privilegia a beleza, a forma esguia para as meninas e o corpo sarado e musculoso para os meninos. As crianças, desde os primeiros anos da escola, vivenciam a tirania imposta pelo uso de mochilas de marca, celulares de última geração e outros itens de consumo. O poder do modismo imposto pela mídia transtorna aquele que, na busca de si, vivencia transformações que nunca atendem a seus desejos, porque ainda é imaturo, e, muito menos, ao ideal, que é vendido pelas propagandas veiculadas pela televisão.”
Segundo a médica, a imagem que o adolescente aspira construir de si é projetada pelo mundo externo, e, portanto, ele acaba sofrendo, com angústia, um conflito entre o que ele é e o que acredita que deva ser. “Essa condição pode adoecer as meninas, que fazem sacrifícios em nome da beleza, conduzindo-as à desnutrição, por meio de quadros clínicos de anorexia e bulimia, com grande infortúnio como desfecho. Os meninos podem passar a utilizar anabolizantes que não moldam, mas deformam os corpos e provocam efeitos deletérios também à saúde.”
Maakaroun salienta que o papel dos pais é fundamental nessa fase de transição. “O adolescente precisa dos aplausos do mundo. Necessita, a todo tempo, de apoio e certeza de que é amado. Se está em busca de si, de sua identidade, precisa ser ajudado a se encontrar, sendo, assim, conduzido a ele mesmo, por meio do reforço positivo dos pares, da escola e da família. Na escola e na família, os adolescentes precisam ouvir os adultos relatarem as próprias dificuldades, os fracassos e os sucessos que os mais velhos enfrentaram, quando tinham a sua idade. O adolescente precisa saber que está saudável, que tudo o que está acontecendo com ele na puberdade é normal. O adolescente também vive o medo da morte na concretude do adulto e, portanto, tem que ser assegurado de sua saúde”, explica.
DIÁLOGO SINCERO
Para os pais, lidar com as mudanças de humor constante e a autossuficiência é uma tarefa árdua. “Os pais também passam pela crise dos adolescentes, porque precisam reformular a sua postura com o filho. Têm de tomar consciência de que eles não são mais crianças e cobram o tempo todo a própria emancipação e a liberdade de ir e vir, além da privacidade de sua existência cotidiana e de seus projetos. Os pais têm de tomar consciência também de que a autonomia do ser humano é um processo de construção que se desenvolve desde a infância e que, gradativa e naturalmente, deve ser concedida na proporção da evolução e do desenvolvimento do sujeito. Então, é preciso que os pais se lembrem de como foi a sua adolescência e as dificuldades que enfrentaram em suas relações com a família e o mundo. A partir disso, deve emergir um diálogo sincero e fundamental, que, se bem conduzido, pode evitar conflitos dolorosos em casa e transformar essa etapa da vida em trampolim para maiores realizações e sucesso do jovem.”