Estudo mostra que alucinações em pacientes psicóticos são exagero do cérebro
Pesquisa britânica indica que as alucinações visuais acontecem para dar sentido a imagens ambíguas
Roberta Machado - Correio Braziliense
Publicação:04/11/2015 15:00
Numa fotografia digital de baixa resolução, os pixels distorcidos misturam as cores que deveriam definir a figura. Ainda assim, o cérebro é capaz de perceber a falha e reconhecer a paisagem que deveria estar nítida. Isso acontece porque a mente conta com uma verdadeira biblioteca de imagens, de onde busca substitutos para as peças que faltam no quebra-cabeça visual. Esse processo é bastante útil para a interpretação de um estímulo visual, mas, se estiver desregulado, pode levar uma pessoa a ver o que não está ali. Uma pesquisa britânica aponta que esse fenômeno natural de percepção é a base para a formação de alucinações que acometem pessoas em estados psicóticos. Longe de serem simples fruto da imaginação, as visões nada mais seriam do que a mente exagerando ao interpretar um estímulo comum.
O experimento descrito em um artigo publicado neste mês na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (Pnas) foi feito com 18 pessoas que tinham tendências alucinatórias, mas que ainda não haviam sido diagnosticadas em nenhum quadro psicótico. Para revelar as origens das visões, os pesquisadores usaram fotografias transformadas em imagens abstratas por meio de uma manipulação no computador. Assim, figuras que antes mostravam claramente uma pessoa ou um objeto passaram a mostrar apenas manchas em preto e branco. As fotos modificadas foram exibidas em sequência para os participantes, que deveriam indicar se havia ou não uma pessoa oculta naquela imagem.
Em seguida, os pesquisadores solicitaram que os voluntários olhassem para uma série de fotografias comuns coloridas, entre as quais estavam as imagens originais que foram manipuladas para a primeira parte do experimento. Essa fase serviu para que os participantes montassem, sem perceber, uma biblioteca visual das figuras. Depois, as fotos em preto e branco distorcidas voltaram a ser mostradas, e, nesse momento, o grupo se mostrou mais capaz de perceber nas manchas figuras de pessoas. O curioso é que os pacientes que já tinham manifestado episódios alucinatórios se saíram muito melhor em apontar semblantes humanos nas manchas abstratas que um outro conjunto de 16 voluntários sadios.
Para os autores, os resultados mostram que o grupo com personalidade esquizotípica se baseava mais nas referências que guardavam no cérebro do que nos estímulos visuais que recebiam para interpretar uma imagem ambígua. “Pacientes psiquiátricos tipicamente têm resultados ruins em todos os tipos de tarefas psicológicas e neurocientíficas. No entanto, nós criamos os experimentos de forma que a diferença entre os pacientes e os voluntários saudáveis resultasse numa melhor performance do grupo clínico”, explica Christoph Teufell, pesquisador da Escola de Psicologia da Cardiff University. “O resultado é útil porque indica que a mudança do processamento que nós identificamos não é um sinal de uma performance basicamente pior. Na verdade, ela indica uma certa especificidade”, completa.
Natural
O processo da psicose, acredita o autor do estudo, pode ser compreendido não como um grande transtorno mental, mas sim como o exagero de um processo que é natural e usado também por pessoas sadias. Quando o cérebro funciona corretamente, esse talento é essencial para ajudar a mente a compreender um mundo ambíguo e cheio de estímulos. Mas o processo falha com frequência em qualquer indivíduo, como quando há a impressão de se ter visto um conhecido na rua.
Para os pesquisadores, o trabalho demonstra como as experiências alucinatórias não refletem um cérebro “quebrado”, e sim uma mente que tem dificuldades de cumprir uma tarefa pelos mecanismos naturais. “Nos últimos anos, nós percebemos que essas experiências perceptivas alteradas não estão restritas às pessoas com doenças mentais. Elas são relativamente comuns, de uma forma mais amena, em toda a população. Muitos de nós terão ouvido ou visto coisas que não estão ali”, afirma, em um comunicado, Paul Fletcher, do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Cambridge, que também colaborou com o artigo.
As causas dessa disfunção ainda não são bem compreendidas pelos especialistas. O desequilíbrio pode ser o resultado de causas genéticas, neurobiológicas, sociais ou ambientais, que de alguma forma alteram o curso natural das conexões mentais. “Há uma desconexão de áreas cerebrais que deveriam estar ligadas, e, em troca, ocorre uma superconexão em outras”, explica o psiquiatra Paulo Silva Belmonte de Abreu, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Esse efeito, explica o especialista brasileiro, é visível em exames que comparam os cérebros de pessoas diagnosticadas com distúrbios aos de sadias. “Temos cinco grandes eixos de conexão do cérebro, que seriam como grandes aeroportos. A mente da pessoa passa a funcionar com um ou dois eixos a menos, e os voos ‘tipo internacionais’ ficam com excesso de conexão. Então, alguns aeroportos locais ficam sobrecarregados, e outros vazios. O resultado é que a pessoa fica fazendo um raciocínio exagerado de coisas com pouca importância, e não consegue pensar nas coisas mais amplas”, compara.
Sentidos
A perda de contato com a realidade não acontece somente no campo da visão e pode influenciar os cinco sentidos. Na verdade, especialistas apontam que o tipo de alucinação mais comum é a auditiva. “Uma pessoa com um quadro psicótico pode escutar vozes sem que tenha nada que possa caracterizar essa voz e ser interpretado errado”, ressalta Mário Louzã, coordenador do Programa de Esquizofrenia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. As falsas impressões sensitivas acabam por fazer a pessoa interpretar o mundo de uma forma diferente, às vezes desenvolvendo pensamentos paranoicos.
Para Louzã, a pesquisa britânica ajuda a compreender a formação de alucinações visuais, mas não explica a origem das vozes inexistentes na mente psicótica. “A situação é que o cérebro cria isso sozinho, independentemente de estímulo externo. As alucinações visuais frequentemente vêm de distorções de sombras à noite ou de uma mancha na parede, por exemplo. Mas, às vezes, o cérebro gera percepções sem que haja estímulo externo, tipicamente quando há alucinações auditivas”, aponta o brasileiro.
Pesquisadores e especialistas ressaltam que o estudo não encerra o debate sobre a natureza das alucinações, mas acreditam que essa linha de pesquisa pode ajudar profissionais a diagnosticar o problema, muitas vezes manifestado de forma discreta. Como tem origem num processo natural, a interpretação exagerada de imagens é vista como um tipo de área cinzenta, que nem sempre permite a separação das pessoas sadias das que têm tendência a desenvolver um distúrbio mental.
Um forte sinal do potencial dessa linha de pesquisa foi constatado quando os pesquisadores britânicos repetiram o experimento com um grupo de 40 pessoas sadias e submeteram o grupo a um teste padrão de propensão à psicose. Os autores do estudo notaram que o desempenho dos participantes na análise das fotografias abstratas refletia o quadro psiquiátrico de cada um e podia detectar tendências psicóticas antes mesmo que os sintomas aparecessem.
No estudo, fotos coloridas (E) foram transformadas em figuras abstratas
O experimento descrito em um artigo publicado neste mês na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (Pnas) foi feito com 18 pessoas que tinham tendências alucinatórias, mas que ainda não haviam sido diagnosticadas em nenhum quadro psicótico. Para revelar as origens das visões, os pesquisadores usaram fotografias transformadas em imagens abstratas por meio de uma manipulação no computador. Assim, figuras que antes mostravam claramente uma pessoa ou um objeto passaram a mostrar apenas manchas em preto e branco. As fotos modificadas foram exibidas em sequência para os participantes, que deveriam indicar se havia ou não uma pessoa oculta naquela imagem.
Em seguida, os pesquisadores solicitaram que os voluntários olhassem para uma série de fotografias comuns coloridas, entre as quais estavam as imagens originais que foram manipuladas para a primeira parte do experimento. Essa fase serviu para que os participantes montassem, sem perceber, uma biblioteca visual das figuras. Depois, as fotos em preto e branco distorcidas voltaram a ser mostradas, e, nesse momento, o grupo se mostrou mais capaz de perceber nas manchas figuras de pessoas. O curioso é que os pacientes que já tinham manifestado episódios alucinatórios se saíram muito melhor em apontar semblantes humanos nas manchas abstratas que um outro conjunto de 16 voluntários sadios.
Para os autores, os resultados mostram que o grupo com personalidade esquizotípica se baseava mais nas referências que guardavam no cérebro do que nos estímulos visuais que recebiam para interpretar uma imagem ambígua. “Pacientes psiquiátricos tipicamente têm resultados ruins em todos os tipos de tarefas psicológicas e neurocientíficas. No entanto, nós criamos os experimentos de forma que a diferença entre os pacientes e os voluntários saudáveis resultasse numa melhor performance do grupo clínico”, explica Christoph Teufell, pesquisador da Escola de Psicologia da Cardiff University. “O resultado é útil porque indica que a mudança do processamento que nós identificamos não é um sinal de uma performance basicamente pior. Na verdade, ela indica uma certa especificidade”, completa.
Natural
O processo da psicose, acredita o autor do estudo, pode ser compreendido não como um grande transtorno mental, mas sim como o exagero de um processo que é natural e usado também por pessoas sadias. Quando o cérebro funciona corretamente, esse talento é essencial para ajudar a mente a compreender um mundo ambíguo e cheio de estímulos. Mas o processo falha com frequência em qualquer indivíduo, como quando há a impressão de se ter visto um conhecido na rua.
Para os pesquisadores, o trabalho demonstra como as experiências alucinatórias não refletem um cérebro “quebrado”, e sim uma mente que tem dificuldades de cumprir uma tarefa pelos mecanismos naturais. “Nos últimos anos, nós percebemos que essas experiências perceptivas alteradas não estão restritas às pessoas com doenças mentais. Elas são relativamente comuns, de uma forma mais amena, em toda a população. Muitos de nós terão ouvido ou visto coisas que não estão ali”, afirma, em um comunicado, Paul Fletcher, do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Cambridge, que também colaborou com o artigo.
As causas dessa disfunção ainda não são bem compreendidas pelos especialistas. O desequilíbrio pode ser o resultado de causas genéticas, neurobiológicas, sociais ou ambientais, que de alguma forma alteram o curso natural das conexões mentais. “Há uma desconexão de áreas cerebrais que deveriam estar ligadas, e, em troca, ocorre uma superconexão em outras”, explica o psiquiatra Paulo Silva Belmonte de Abreu, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Esse efeito, explica o especialista brasileiro, é visível em exames que comparam os cérebros de pessoas diagnosticadas com distúrbios aos de sadias. “Temos cinco grandes eixos de conexão do cérebro, que seriam como grandes aeroportos. A mente da pessoa passa a funcionar com um ou dois eixos a menos, e os voos ‘tipo internacionais’ ficam com excesso de conexão. Então, alguns aeroportos locais ficam sobrecarregados, e outros vazios. O resultado é que a pessoa fica fazendo um raciocínio exagerado de coisas com pouca importância, e não consegue pensar nas coisas mais amplas”, compara.
Sentidos
A perda de contato com a realidade não acontece somente no campo da visão e pode influenciar os cinco sentidos. Na verdade, especialistas apontam que o tipo de alucinação mais comum é a auditiva. “Uma pessoa com um quadro psicótico pode escutar vozes sem que tenha nada que possa caracterizar essa voz e ser interpretado errado”, ressalta Mário Louzã, coordenador do Programa de Esquizofrenia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. As falsas impressões sensitivas acabam por fazer a pessoa interpretar o mundo de uma forma diferente, às vezes desenvolvendo pensamentos paranoicos.
Para Louzã, a pesquisa britânica ajuda a compreender a formação de alucinações visuais, mas não explica a origem das vozes inexistentes na mente psicótica. “A situação é que o cérebro cria isso sozinho, independentemente de estímulo externo. As alucinações visuais frequentemente vêm de distorções de sombras à noite ou de uma mancha na parede, por exemplo. Mas, às vezes, o cérebro gera percepções sem que haja estímulo externo, tipicamente quando há alucinações auditivas”, aponta o brasileiro.
Pesquisadores e especialistas ressaltam que o estudo não encerra o debate sobre a natureza das alucinações, mas acreditam que essa linha de pesquisa pode ajudar profissionais a diagnosticar o problema, muitas vezes manifestado de forma discreta. Como tem origem num processo natural, a interpretação exagerada de imagens é vista como um tipo de área cinzenta, que nem sempre permite a separação das pessoas sadias das que têm tendência a desenvolver um distúrbio mental.
Um forte sinal do potencial dessa linha de pesquisa foi constatado quando os pesquisadores britânicos repetiram o experimento com um grupo de 40 pessoas sadias e submeteram o grupo a um teste padrão de propensão à psicose. Os autores do estudo notaram que o desempenho dos participantes na análise das fotografias abstratas refletia o quadro psiquiátrico de cada um e podia detectar tendências psicóticas antes mesmo que os sintomas aparecessem.