Sonâmbulo não sente dor ao se machucar durante o sono; ciência explica fenômeno

Entre os sonâmbulos que relataram ter sofrido ao menos um episódio de lesão, 79% não sentiram dor e continuaram dormindo

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Correio Braziliense Publicação:18/12/2015 14:50Atualização:18/12/2015 14:57
Um sonâmbulo, mesmo que se machuque gravemente, não sentirá dor até o momento em que acordar. De forma aparentemente paradoxal, geralmente são os indivíduos com alto risco de sofrer dores de cabeça e enxaquecas enquanto estão despertos. Isso é o que aponta estudo feito por cientistas do Hospital Gui-de-Chauliac em Montpellier, na França, e publicado recentemente na revista Sleep.

Levantar-se para realizar atividades anormais no meio da noite, como trocar de roupa, subir no telhado, jogar cartas ou ainda conversar entredentes, são comportamentos ligados ao sonambulismo e raros entre adultos (EM/D.A Press)
Levantar-se para realizar atividades anormais no meio da noite, como trocar de roupa, subir no telhado, jogar cartas ou ainda conversar entredentes, são comportamentos ligados ao sonambulismo e raros entre adultos


O dado que mais chamou a atenção dos pesquisadores foi sobre a percepção da dor. Entre os sonâmbulos que relataram ter sofrido ao menos um episódio de lesão, 79% não sentiram dor e continuaram dormindo. “Registramos aqui, pela primeira vez, um fenômeno analgésico associado ao sonambulismo”, relata, no estudo, o especialista em medicina do sono Régis Lopez, que liderou a pesquisa.

Lopez e outros cientistas compararam 100 pacientes adultos diagnosticados com sonambulismo com 100 pessoas saudáveis, que formaram o grupo de controle. Entre os acometidos pela doença do sono, 55 eram homens e 45, mulheres, com, em média, 30 anos de idade. Os participantes responderam a questionários e foram acompanhados por especialistas, que avaliaram os relatos sobre dores de cabeça e enxaqueca.

Do total de voluntários sonâmbulos, 47 informaram a ocorrência de ao menos uma crise seguida de lesão. Entre esses, 10 relataram ter acordado no momento em que se machucaram. Os outros 37 não perceberam qualquer dor, mas sentiram depois, ao longo da noite ou na manhã seguinte. Um dos participantes contou que, apesar de ter sofrido graves fraturas após pular do terceiro andar do prédio em que mora, ele não sentiu dor alguma até acordar. Outro relatou que quebrou a perna durante uma incidência do distúrbio, em que ele subiu até o telhado de sua casa e caiu no chão, mas acordou apenas de manhã.

“Nossos estudos podem ajudar a entender os mecanismos dos episódios de sonambulismo. Nossa hipótese é a de que um estado de excitação pode modificar os componentes do comportamento do sono, a consciência e a percepção da dor”, concluiu Lopez. Embora o sonambulismo seja considerado uma doença de baixa gravidade, por ser facilmente controlado com cuidados simples, como colocar telas nas janelas, trancar portas e esconder objetos perfurocortantes (facas, ferramentas, entre outros), os resultados mostrados pela pesquisa francesa despertam a curiosidade de especialistas. “Podem abrir novas perspectivas para estudos do sono, estados alterados de consciência e percepção da dor. Mas os quadros de queda e analgesia merecem mais pesquisas”, avalia Luciano Ribeiro, neurologista e vice-presidente da Associação Brasileira do Sono.

Na infância
Levantar-se para realizar atividades anormais no meio da noite, como trocar de roupa, subir no telhado, jogar cartas ou ainda conversar entredentes, são comportamentos ligados ao sonambulismo e raros entre adultos. Esse tipo de parassonia é comum em crianças, com mais ocorrência entre os 8 e 12 anos, desaparecendo ao longo da adolescência. Trata-se de um estado de confusão mental no qual a pessoa fica meio acordada e meio dormindo, num quadro de semi-inconsciência. “Ainda não há uma causa definida para o sonambulismo. Suspeita-se que uma imaturidade do sistema nervoso durante a vigília cause o despertar parcial”, explica Ribeiro.

Outras conhecidas parassonias são o terror noturno — também comum na infância (a criança grita apavorada, volta a dormir e depois não lembra do que ocorreu) — e o transtorno comportamental do sono REM (que afeta geralmente homens idosos). Nesse distúrbio, a pessoa vivencia o que está sonhando e pode praticar atos violentos, se machucando e machucando quem estiver por perto. “É comum generalizar tudo como sonambulismo pelos atos serem cometidos de forma inconsciente e seguidos de amnésia. Mas é importante reforçar que há diferenças nos diagnósticos. Os pais podem acreditar que o filho é sonâmbulo, mas pode ser outro distúrbio, levando a um tratamento errado”, alerta o neurologista.

Em casos mais graves, quando o sonambulismo é frequente, a terapia deve ser feita com remédios, como tranquilizantes e antidepressivos. Nos demais, a neuropediatra Rosana Alves orienta pais e parceiros de sonâmbulos a retirarem obstáculos que podem machucar o paciente, instalarem sensores de movimento pela casa (como lâmpadas) e reconduzirem a pessoa para a cama durante a crise.

O mais importante, no entanto, é não acordá-la. “Essas pessoas não sabem o que estão fazendo, acreditam que estão dormindo e podem se assustar. Isso gera uma ansiedade e elas vão ficando com receio de dormir e ocorrer outro episódio. Esse quadro gera estresse e mais problemas do sono”, adverte Rosana Alves.

Dez vezes mais chance de ter enxaqueca
O estudo francês sobre a percepção da dor em sonâmbulos não foi o primeiro a indicar uma associação entre o distúrbio do sono e crises de dor de cabeça ou enxaqueca. No fim da década de 1980, três especialistas franceses publicaram na Revue Neurologique o histórico de sonambulismo durante a infância observado em 122 pacientes que sofriam de enxaqueca, comparados a 110 que não tinham dor de cabeça.

Nessa pesquisa, os cientistas perceberam que as pessoas com enxaqueca relatavam uma frequência maior de episódios de sonambulismo durante a infância. Os autores sugerem que tanto a enxaqueca quanto o sonambulismo resultam de problemas do metabolismo da serotonina — que é responsável pela transmissão de impulsos entre os neurônios.

Aproximadamente 30 anos depois, a equipe de Régis Lopez mostra que pessoas com esse distúrbio do sono têm cerca de quatro vezes mais chances de relatarem um histórico de dor de cabeça e 10 vezes mais de sofrer com enxaqueca, quando comparadas àquelas que não apresentam sonambulismo e excluindo as diagnosticadas com insônia e depressão. Os pesquisadores, no entanto, não mencionam no estudo sobre a serotonina ou o que pode ligar a parassonia à enxaqueca.


Influência genética
Entre as possíveis causas para o sonambulismo, está a genética, de acordo com um estudo canadense publicado neste ano na revista Jama Pediatrics. Os pesquisadores do Hôpital du Sacre-Coeur, da Universidade de Montréal, no Canadá, analisaram dados sobre o sono de 1.940 crianças nascidas na cidade, acompanhadas dos 2 aos 13 anos. Foram aplicados questionários para registrar os episódios de sonambulismo e de terror noturno, além de relatos sobre os mesmos episódios vividos pelos pais.

Os resultados mostraram que 22,5% das crianças sem um histórico parental de sonambulismo desenvolvem a doença. Esse valor chega a mais do que o dobro quando ao menos um dos pais sofre do distúrbio, num total de 47,4% das crianças acompanhadas. E quando o pai e a mãe sofriam do problema, o índice chegava a 61,5% de crianças com a doença.

“Essas descobertas indicam uma forte influência genética para o sonambulismo e, em menor grau, para o terror noturno. Esse efeito deve ocorrer por mutações genéticas envolvidas no sono profundo. Pais que foram sonâmbulos no passado, particularmente nos casos em que os dois foram sonâmbulos, podem se preparar adequadamente para ocorrências da parassonia com seus filhos”, sugerem os autores.

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