Superação a cada dia: veja histórias de quem lutou e venceu o câncer
Sequelas físicas e psicológicas acompanham pacientes que passaram por cirurgias e tratamentos para eliminar tumores. Mas eles não deixam de se sentir vencedores por continuarem vivos
Zulmira Furbino
Gláucia Chaves - Revista do CB
Publicação:31/01/2016 08:44Atualização: 31/01/2016 08:59
Para quem vê de longe, a batalha contra o câncer parece assustadora – e é. O que a maioria das pessoas não sabe é que, mesmo depois que alguém vence a doença, os desafios continuam, por vários motivos. Efeitos colaterais de medicamentos que precisam ser tomados durante anos, insegurança e medo de que a doença volte, fadiga crônica em determinados horários do dia, impacto econômico causado pelo tratamento – que pode ser devastador para o equilíbrio financeiro –, sequelas emocionais causadas pelo abandono do companheiro, da família e dos amigos, já que nem todos têm a sorte de contar com amor incondicional nesse momento tão delicado.
Entre 2014 e 2015, nada menos do que 576 mil brasileiros ouviram do seu médico a frase fatídica: “Você está com câncer”, aponta a Estimativa 2014 — Incidência de Câncer no Brasil, produzida pelo Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca). Mas o diagnóstico é apenas o começo de uma árdua batalha, que, segundo quem já passou pela experiência, não termina nunca. A estimativa do Inca é que em 2016 o Brasil deverá registrar outros 596 mil casos de câncer, 295,2 mil entre homens e 300,8 mil entre mulheres.
“Minha vida mudou”, “sinto-me mais insegura”, “infelizmente, muitos amigos e familiares se afastaram”, “não sou mais a mesma”, “não posso falar da doença que sinto uma coisa ruim e me dá vontade de chorar”, “por causa da medicação de controle sinto dor, tenho hemorragias”, “tenho medo de a doença voltar”, “pela manhã estou ótimo, mas à tarde sinto muita fadiga”, “fisicamente, sou outra pessoa”, “às vezes, preciso pegar no tranco”, “a faxina que eu dava em um dia, hoje leva três dias”, “perdi tudo o que tinha”... são frases comuns de se ouvir de quem passou pela turbulência causada pela descoberta e tratamento de um tumor maligno.
CURA
Para atenuar essa dor, o único remédio é o amor. Foi o que descobriram o comerciante Amauri César Augusto, de 62 anos, e sua mulher, a dona de casa Cláudia Bastos Augusto, de 44. Em 2005, ele descobriu que tinha um linfoma e, depois de passar pela quimioterapia, viu o câncer voltar agressivo. Quando se preparava para um autotransplante, veio a bomba: sua esposa descobrira dois tumores na mama. Um deles era maligno.
“Meu marido voltou ao normal. Ele é um homem que não se assusta com nada. Não permitimos que aquele momento nos atrapalhasse. Estou curada. A cada dia basta o seu mal”, diz Cláudia. “Perdemos nosso patrimônio, mas minha mulher e eu estamos felizes e cheios de planos. Estou voltando a trabalhar e estamos sempre bem um com o outro. Sempre, sempre, sempre. Eu com ela e ela comigo. Não abrimos mão um do outro para nada”, declara-se Amauri.
Fé acima de tudo
Apesar dos avanços no diagnóstico e no tratamento, pessoas que passaram por um câncer e venceram a doença são chamadas pelos médicos de “sobreviventes”, por, na maioria das vezes, carregarem tanto sequelas físicas quanto psicológicas. Retirada das mamas, impotência, cicatrizes, limitação de movimentos, transtorno de estresse pós-traumático, medo, insegurança, perda de patrimônio e irritabilidade são rastros deixados pelos tumores malignos naqueles que se sentem vencedores simplesmente por continuarem vivos. De acordo com o oncologista Marcos André Portella, estudos mostram que cerca de 25% dos pacientes acabam o tratamento com sequelas físicas e outros 10% com traumas psicológicos, entre eles, fadiga, insônia e depressão.
Quando a produtora de eventos Elenice Medeiros, de 43 anos, descobriu que tinha câncer de mama, “foi um susto”. Sua última mamografia havia sido feita – e repetida – há quatro meses. Foram dois mastologistas até que, em outubro de 2014, chegou o diagnóstico: carcinoma invasivo de grau três. No fim das contas, ela foi operada, perdeu um quadrante da mama esquerda, mas mexeu também na direita para que não houvesse diferença entre as duas. Foram quatro sessões de quimioterapia vermelha, quatro brancas, 22 sessões de radioterapia e, depois de tudo, o tamoxifeno (medicamento que inibe a volta do câncer de mama e deve ser tomado por cinco anos).
EFEITOS
“Passei muito mal. Nessa situação, a saída é ter fé e o apoio da família. Fui amada incondicionalmente, principalmente pelo meu marido, que é executivo e remanejou toda sua vida profissional para cuidar de mim”, lembra. Hoje, ela se ressente dos efeitos colaterais do tamoxifeno. “Sinto um calor horroroso, fico cansada, tenho corrimento, mas dizem que após quatro meses de uso, esses efeitos diminuem.” Além disso, Elenice se sente insegura. Outro dia, sentiu mal-estar, dores abdominais e acabou num pronto-atendimento. Pensou que o câncer tinha voltado. Mas não era nada grave, apenas uma reação à quimioterapia, que permanece no corpo depois do fim do tratamento.
“Você não é mais você mesma. Fica apreensiva, tudo em você muda. Por qualquer coisa, você pensa que a doença voltou, mesmo que seja em outra parte do corpo. Nem que eu queira, tenho a mesma energia. Era muito ativa e já não sou a mesma. Preciso de tempo para me programar fisicamente. Não sou mais pra ontem, perdi o raciocínio rápido e eu, que nunca fui de ficar irritada, agora me irrito mais vezes. O hoje não é igual ao ontem. No amanhã, nem penso. Depois do carcinoma, deixo Deus me levar. Não posso fazer planos. O segredo para passar por isso é ter fé e contar com o amor da família”, declara.
Helena Moura, psiquiatra e psicoterapeuta, explica que já é sabido que sobreviver ao tratamento pode levar à depressão. Não só pelo impacto físico, mas pelo desgaste emocional. “Se o tratamento tiver causado mutilações e se a imagem corporal for importante para essa pessoa, se ela sempre foi elogiada por isso, pode ser que o impacto da doença seja muito maior”, avalia.
Aos 32 anos, a relações-públicas Gabriela Oliveira Almeida, hoje com 34, teve um câncer de mama. Em 15 dias, havia sido operada, mas quase sofreu um choque anafilático com a quimioterapia. Perdeu os cabelos, retirou um quadrante do seio, mas nunca deixou cair a bola e manteve o estilo. Tanto que criou uma página no Facebook (Câncer e estilo) para ajudar outras mulheres que estão passando pelo problema.
Hoje ela tem vida normal, apesar da irritabilidade, insônia, dores na perna e, algumas vezes, hemorragia causada pela medicação, que deverá tomar por cinco anos para evitar que a doença volte. “Estou curada. Tenho meu marido, meu filho com saúde, mas muitas pessoas que estão passando por isso não têm esclarecimento e estão morrendo à míngua. Meu sonho é que descobrissem a cura dessa doença”, diz Gabriela.
Duas vidas em uma
Desde o diagnóstico até o tratamento e cura, o cotidiano da pessoa doente muda completamente. apoio da família e de amigos é fundamental
Entre os desafios a vencer depois de um tratamento oncológico, dois estão na ordem do dia de todos os pacientes, sejam eles do sexo masculino ou feminino: lidar com a sexualidade e voltar ao trabalho. Pessoas que sofreram mutilações ou cujos tratamentos provocaram disfunções orgânicas enfrentam desafios cotidianos nesse sentido. Fato é que o diagnóstico e o tratamento para combater o câncer e a vida depois de vencer o mal geram um estresse emocional muitas vezes transformador, levando a uma mudança de mentalidade que respinga em todos os aspectos da rotina. A saída é não deixar para remediar o que se pode prevenir. Investir em um acompanhamento psicológico antes, durante e depois do tratamento pode salvar a saúde mental do paciente – e também a do casal – e manter-se ativo, na medida do possível.
A psiquiatra e psicoterapeuta Helena Moura sugere que, no começo, se dê tempo ao tempo. “É normal que, no momento do diagnóstico, a pessoa tenha uma reação de choque emocional e demore um pouco até cair a ficha. Num primeiro momento, a tristeza é previsível. Depois, precisa ser monitorada. Não se deve considerar normal uma pessoa com câncer ficar deprimida. Muita gente consegue enfrentar esse momento sem muita angústia emocional, consegue dar valor a outras coisas. Não é natural ficar desesperançoso”, aponta. No fim de 2013, justo quando se preparava para um grande desafio profissional, o executivo P. A., de 55 anos, que prefere não ser identificado, descobriu que tinha câncer na próstata. “Lógico que não é a melhor notícia para se receber e claro que me incomodou, mas talvez proporcionalmente muito menos do que a gravidade da doença. Podia adiar o problema, fingir que não era comigo ou enfrentá-lo o mais rápido possível. Fiz isso”, lembra o executivo.
Sua primeira reação foi tomar as providências que precisava, tanto que foi operado apenas um mês e meio depois da descoberta e não precisou passar pela quimioterapia. Ao marcar a data da operação, o executivo sabia que correria dois riscos: sofrer incontinência urinária pelo resto da vida e ficar com disfunção erétil. Nem isso o abateu. “Pensei que estava trocando um câncer por uma dessas coisas. Ou pelas duas. Na minha opinião, se você puder continuar a viver, essa troca já é vantajosa”, sustenta o executivo. Depois da operação, ele, de fato, enfrentou a incontinência urinária e a disfunção erétil, mas só por algum tempo. Depois, tudo voltou ao normal. “Não tenho mais 18 anos. Aos cinquenta e tantos, tudo é diferente. Não dá para atribuir todas as mazelas ao câncer. Continuo tendo uma vida sexual normal para um homem de 55 anos. Quando faço os exames de controle fico apreensivo, é claro, mas, fora isso, raramente me lembro de que tive essa doença”, observa.
Um tratamento oncológico deixa marcas na alma – e também no corpo. Diante disso, será preciso lidar com a mutilação e com cicatrizes. Como encarar aquele sinal que fica e incomoda? Como superar a ausência de uma mama ou aceitar a reconstrução, nem sempre perfeita? Como recuperar a feminilidade nessas situações? As dificuldades, porém, podem ser superadas, prova a experiência de mulheres como Poliana Pacheco, de 34, que, aos 30, ao tocar a mama direita durante o banho, descobriu um pequeno caroço, mais tarde diagnosticado como um tumor maligno de dois centímetros. Ao desespero inicial – a princípio, sua sensação foi de ter recebido uma sentença de morte – seguiu-se uma mastectomia radical. Era dezembro de 2011. Ela estava casada há dois anos.
GRATIDÃO
Depois da cirurgia, Poliana saiu do hospital no último dia do ano para se recuperar em casa e se preparar para uma nova batalha, a quimioterapia, que seria a nova fase do tratamento. Ao mesmo tempo, ela passou a enfrentar outro problema, uma vez que o marido não soube encarar a situação. “Aos poucos, ele ia me abandonando. Em janeiro, me recuperei da cirurgia e em fevereiro comecei a químio. Foram 16 sessões. Havia momentos terríveis, em que eu estava muito debilitada, noites em que não dormia por medo de não acordar mais, meus pais cuidavam de mim e ele não ia mais me ver. Fiquei careca, muito inchada por causa da cortisona, as pessoas não me reconheciam e ele tinha vergonha de sair comigo”, recorda. Diante da atitude do então parceiro, Poliana acabou se desanimando com o casamento e se separou um mês depois do fim da quimioterapia. “Daí para a frente comecei a lutar por mim, para me restabelecer inclusive profissionalmente, já que parei de trabalhar quando me casei.”
Aos poucos, começou a fazer caminhadas por recomendação médica e depois, à medida que ganhava forças, evoluiu para as corridas. Hoje, curada, ela se autodefine como atleta amadora e faz questão de, todo dia 31 de dezembro, correr em frente ao hospital do qual ela saiu sem o seio direito há cinco anos. “Encontrei no esporte um estímulo, um refúgio. Depois de tudo, vejo a vida de uma forma totalmente diferente. É como se eu tivesse vivido duas vidas numa só. Depois de vencer a doença, só sentia falta de um amor, mas encontrei um homem maravilhoso, que me aceita do jeito que sou e gosta do meu corpo do jeito que ele é. Olho para minha cicatriz e ela representa uma vitória. Sinto-me profundamente grata pela vida que tenho”, comemora Poliana.
Ocupar a mente ajuda a enfrentar o problema
“Estar aberto a mudanças é o caminho menos doloroso para facilitar a readaptação depois do tratamento”, sustenta Vladimir Melo, terapeuta familiar e mestre em psicologia. Ele explica que o mais importante é que o ex-paciente consiga construir nos ambientes sociais relações próximas nas quais seja possível ter apoio. O mais complicado, segundo ele, é quando a pessoa se isola. A vida, naturalmente, jamais será a mesma para quem passa por uma experiência tão radical. Será preciso lidar com transformações que vão do modo de viver a cirurgias plásticas e reabilitação. Passar por todo o esgotamento envolvido em um tratamento contra o câncer, conviver com o incômodo dos efeitos colaterais – que nem sempre desaparecem junto com a doença – são uma carga considerável de estafa. Nesse cenário, por incrível que pareça, o trabalho pode cumprir o papel de importante aliado.
A consultora educacional Mara Paula de Souza Alves, de 37, descobriu um câncer no sistema linfático há dois anos. Ela achava que tinha pneumonia, mas o que havia era um tumor de 10 centímetros, um linfoma de Hodgkin. “Depois da notícia, fiquei três dias chorando a minha morte. Passado o desespero inicial, vi que não adiantava ficar me velando. Precisava entender a doença e a forma de lutar contra ela”, explica. No princípio, lembra, foi difícil lidar com os efeitos da quimioterapia, a queda dos pelos da cabeça e cílios, aprender a amarrar lenço, colocar peruca. Depois, Mara se deu conta de que queria ter leveza de vida durante o tratamento. “Trabalhei durante todo o período. Atuo como pessoa jurídica e tenho contrato assinado, que a empresa não rompeu. Pude fazer a minha própria agenda. A químio era na quinta, eu convalescia e trabalhava a partir de terça. Continuar produtiva me ajudou muito. Hoje, já voltei à rotina normal”, comemora.
Outra maneira de se manter ativa foi criar o blog sobre viver (sobreviverblog.com.br), “porque há muita vida além do câncer, é só ajustar o foco”, tudo numa ótica bem positiva. Quando raspou a cabeça, por exemplo, Mara fez uma seleção de músicas das quais gostava e chamou um punhado de amigos para ir ao salão. Eles levaram espumante (sem álcool para ela), e foi uma festa. Mara saiu de lá linda e maquiada. “É meio clichê falar o que eu vou falar, mas a gente muda muito depois de uma coisa assim. Literalmente, você passa a enxergar a vida com olhos diferentes. Engordei 25 quilos, mas a minha autoestima melhorou muito. Hoje, me aceito de todas as maneiras. Quando está em tratamento, você se olha amarela, desprovida de beleza, e aprende a se gostar mesmo assim, amarela”, diz. Hoje, Mara se vê como uma pessoa saudável, sem privações que são impostas – como a de não ter ido aos jogos da Copa do Mundo porque estava doente, mesmo tendo os ingressos no bolso. “Vivo muito bem. Depois do câncer, vivo melhor”, afirma.
SEXUALIDADE
S. M. tem 50 anos e há sete foi obrigada a fazer mastectomia para a retirada de vários tumores numa das mamas. “No princípio, é muito difícil. Você tem que trabalhar muito a autoestima, é uma coisa bem de dentro. Se não existe uma união familiar para colocar você para cima, você vai se degradando. Tive família, amigo, todo mundo, e tentei me colocar o mais alegre possível. Por outro lado, me isolei bastante. Foram cinco anos sem me permitir ter qualquer relacionamento amoroso”, revela. Ela não sabe definir se isso ocorreu por vergonha ou por medo de rejeição, já que a reconstrução do seio que foi retirado não ficou perfeita. A saída para lidar com os homens que apareceram na vida dela era, de cara, falar sobre o problema e esperar a reação. “Sempre tive um corpo legal, mas veio a cortisona e o tratamento e me larguei por bastante tempo. Foi difícil encarar minha sexualidade de novo, mas consegui”, reconhece.
Amauri César Augusto e sua mulher, Cláudia Bastos, tiveram tumores na mesma época e dizem que o amor os salvou
Entre 2014 e 2015, nada menos do que 576 mil brasileiros ouviram do seu médico a frase fatídica: “Você está com câncer”, aponta a Estimativa 2014 — Incidência de Câncer no Brasil, produzida pelo Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca). Mas o diagnóstico é apenas o começo de uma árdua batalha, que, segundo quem já passou pela experiência, não termina nunca. A estimativa do Inca é que em 2016 o Brasil deverá registrar outros 596 mil casos de câncer, 295,2 mil entre homens e 300,8 mil entre mulheres.
“Minha vida mudou”, “sinto-me mais insegura”, “infelizmente, muitos amigos e familiares se afastaram”, “não sou mais a mesma”, “não posso falar da doença que sinto uma coisa ruim e me dá vontade de chorar”, “por causa da medicação de controle sinto dor, tenho hemorragias”, “tenho medo de a doença voltar”, “pela manhã estou ótimo, mas à tarde sinto muita fadiga”, “fisicamente, sou outra pessoa”, “às vezes, preciso pegar no tranco”, “a faxina que eu dava em um dia, hoje leva três dias”, “perdi tudo o que tinha”... são frases comuns de se ouvir de quem passou pela turbulência causada pela descoberta e tratamento de um tumor maligno.
CURA
Para atenuar essa dor, o único remédio é o amor. Foi o que descobriram o comerciante Amauri César Augusto, de 62 anos, e sua mulher, a dona de casa Cláudia Bastos Augusto, de 44. Em 2005, ele descobriu que tinha um linfoma e, depois de passar pela quimioterapia, viu o câncer voltar agressivo. Quando se preparava para um autotransplante, veio a bomba: sua esposa descobrira dois tumores na mama. Um deles era maligno.
“Meu marido voltou ao normal. Ele é um homem que não se assusta com nada. Não permitimos que aquele momento nos atrapalhasse. Estou curada. A cada dia basta o seu mal”, diz Cláudia. “Perdemos nosso patrimônio, mas minha mulher e eu estamos felizes e cheios de planos. Estou voltando a trabalhar e estamos sempre bem um com o outro. Sempre, sempre, sempre. Eu com ela e ela comigo. Não abrimos mão um do outro para nada”, declara-se Amauri.
A produtora de eventos Elenice Medeiros ensina que o segredo para vencer desafios de saúde é contar com o amor da família
Fé acima de tudo
Apesar dos avanços no diagnóstico e no tratamento, pessoas que passaram por um câncer e venceram a doença são chamadas pelos médicos de “sobreviventes”, por, na maioria das vezes, carregarem tanto sequelas físicas quanto psicológicas. Retirada das mamas, impotência, cicatrizes, limitação de movimentos, transtorno de estresse pós-traumático, medo, insegurança, perda de patrimônio e irritabilidade são rastros deixados pelos tumores malignos naqueles que se sentem vencedores simplesmente por continuarem vivos. De acordo com o oncologista Marcos André Portella, estudos mostram que cerca de 25% dos pacientes acabam o tratamento com sequelas físicas e outros 10% com traumas psicológicos, entre eles, fadiga, insônia e depressão.
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Tudo isso afeta não só o paciente, mas a família e os relacionamentos amorosos, já que ele vê a sua vida íntima paralisada, uma vez que todas as atenções estão voltadas para o tratamento e para a cura. Por isso, é preciso um tratamento interdisciplinar, que leve em conta não só os cuidados médicos, mais do que necessários, mas apoio psicológio e nutricional. “Tudo isso ajuda a tratar o paciente como um todo, já que, depois da doença, muitas vezes existe mais um desafio, que é a necessidade de mudar de vida, como deixar o cigarro, perder peso, reduzir o consumo de bebida alcoólica, mudar a alimentação”, observa Portella.O oncologista Marcos André Portella defende tratamento interdisciplinar para ajudar o paciente a passar pela doença
EFEITOS
“Passei muito mal. Nessa situação, a saída é ter fé e o apoio da família. Fui amada incondicionalmente, principalmente pelo meu marido, que é executivo e remanejou toda sua vida profissional para cuidar de mim”, lembra. Hoje, ela se ressente dos efeitos colaterais do tamoxifeno. “Sinto um calor horroroso, fico cansada, tenho corrimento, mas dizem que após quatro meses de uso, esses efeitos diminuem.” Além disso, Elenice se sente insegura. Outro dia, sentiu mal-estar, dores abdominais e acabou num pronto-atendimento. Pensou que o câncer tinha voltado. Mas não era nada grave, apenas uma reação à quimioterapia, que permanece no corpo depois do fim do tratamento.
“Você não é mais você mesma. Fica apreensiva, tudo em você muda. Por qualquer coisa, você pensa que a doença voltou, mesmo que seja em outra parte do corpo. Nem que eu queira, tenho a mesma energia. Era muito ativa e já não sou a mesma. Preciso de tempo para me programar fisicamente. Não sou mais pra ontem, perdi o raciocínio rápido e eu, que nunca fui de ficar irritada, agora me irrito mais vezes. O hoje não é igual ao ontem. No amanhã, nem penso. Depois do carcinoma, deixo Deus me levar. Não posso fazer planos. O segredo para passar por isso é ter fé e contar com o amor da família”, declara.
Helena Moura, psiquiatra e psicoterapeuta, explica que já é sabido que sobreviver ao tratamento pode levar à depressão. Não só pelo impacto físico, mas pelo desgaste emocional. “Se o tratamento tiver causado mutilações e se a imagem corporal for importante para essa pessoa, se ela sempre foi elogiada por isso, pode ser que o impacto da doença seja muito maior”, avalia.
Aos 32 anos, a relações-públicas Gabriela Oliveira Almeida, hoje com 34, teve um câncer de mama. Em 15 dias, havia sido operada, mas quase sofreu um choque anafilático com a quimioterapia. Perdeu os cabelos, retirou um quadrante do seio, mas nunca deixou cair a bola e manteve o estilo. Tanto que criou uma página no Facebook (Câncer e estilo) para ajudar outras mulheres que estão passando pelo problema.
Hoje ela tem vida normal, apesar da irritabilidade, insônia, dores na perna e, algumas vezes, hemorragia causada pela medicação, que deverá tomar por cinco anos para evitar que a doença volte. “Estou curada. Tenho meu marido, meu filho com saúde, mas muitas pessoas que estão passando por isso não têm esclarecimento e estão morrendo à míngua. Meu sonho é que descobrissem a cura dessa doença”, diz Gabriela.
Duas vidas em uma
Desde o diagnóstico até o tratamento e cura, o cotidiano da pessoa doente muda completamente. apoio da família e de amigos é fundamental
Poliana Pacheco chegou a ser abandonada pelo marido ao iniciar o tratamento, mas hoje refez sua vida, virou atleta e diz estar muito feliz e agradecida
A psiquiatra e psicoterapeuta Helena Moura sugere que, no começo, se dê tempo ao tempo. “É normal que, no momento do diagnóstico, a pessoa tenha uma reação de choque emocional e demore um pouco até cair a ficha. Num primeiro momento, a tristeza é previsível. Depois, precisa ser monitorada. Não se deve considerar normal uma pessoa com câncer ficar deprimida. Muita gente consegue enfrentar esse momento sem muita angústia emocional, consegue dar valor a outras coisas. Não é natural ficar desesperançoso”, aponta. No fim de 2013, justo quando se preparava para um grande desafio profissional, o executivo P. A., de 55 anos, que prefere não ser identificado, descobriu que tinha câncer na próstata. “Lógico que não é a melhor notícia para se receber e claro que me incomodou, mas talvez proporcionalmente muito menos do que a gravidade da doença. Podia adiar o problema, fingir que não era comigo ou enfrentá-lo o mais rápido possível. Fiz isso”, lembra o executivo.
Sua primeira reação foi tomar as providências que precisava, tanto que foi operado apenas um mês e meio depois da descoberta e não precisou passar pela quimioterapia. Ao marcar a data da operação, o executivo sabia que correria dois riscos: sofrer incontinência urinária pelo resto da vida e ficar com disfunção erétil. Nem isso o abateu. “Pensei que estava trocando um câncer por uma dessas coisas. Ou pelas duas. Na minha opinião, se você puder continuar a viver, essa troca já é vantajosa”, sustenta o executivo. Depois da operação, ele, de fato, enfrentou a incontinência urinária e a disfunção erétil, mas só por algum tempo. Depois, tudo voltou ao normal. “Não tenho mais 18 anos. Aos cinquenta e tantos, tudo é diferente. Não dá para atribuir todas as mazelas ao câncer. Continuo tendo uma vida sexual normal para um homem de 55 anos. Quando faço os exames de controle fico apreensivo, é claro, mas, fora isso, raramente me lembro de que tive essa doença”, observa.
Um tratamento oncológico deixa marcas na alma – e também no corpo. Diante disso, será preciso lidar com a mutilação e com cicatrizes. Como encarar aquele sinal que fica e incomoda? Como superar a ausência de uma mama ou aceitar a reconstrução, nem sempre perfeita? Como recuperar a feminilidade nessas situações? As dificuldades, porém, podem ser superadas, prova a experiência de mulheres como Poliana Pacheco, de 34, que, aos 30, ao tocar a mama direita durante o banho, descobriu um pequeno caroço, mais tarde diagnosticado como um tumor maligno de dois centímetros. Ao desespero inicial – a princípio, sua sensação foi de ter recebido uma sentença de morte – seguiu-se uma mastectomia radical. Era dezembro de 2011. Ela estava casada há dois anos.
GRATIDÃO
Depois da cirurgia, Poliana saiu do hospital no último dia do ano para se recuperar em casa e se preparar para uma nova batalha, a quimioterapia, que seria a nova fase do tratamento. Ao mesmo tempo, ela passou a enfrentar outro problema, uma vez que o marido não soube encarar a situação. “Aos poucos, ele ia me abandonando. Em janeiro, me recuperei da cirurgia e em fevereiro comecei a químio. Foram 16 sessões. Havia momentos terríveis, em que eu estava muito debilitada, noites em que não dormia por medo de não acordar mais, meus pais cuidavam de mim e ele não ia mais me ver. Fiquei careca, muito inchada por causa da cortisona, as pessoas não me reconheciam e ele tinha vergonha de sair comigo”, recorda. Diante da atitude do então parceiro, Poliana acabou se desanimando com o casamento e se separou um mês depois do fim da quimioterapia. “Daí para a frente comecei a lutar por mim, para me restabelecer inclusive profissionalmente, já que parei de trabalhar quando me casei.”
Mara Paula de Souza Alves depois do tratamento: "Passei a dar mais valor a tudo"
Ocupar a mente ajuda a enfrentar o problema
“Estar aberto a mudanças é o caminho menos doloroso para facilitar a readaptação depois do tratamento”, sustenta Vladimir Melo, terapeuta familiar e mestre em psicologia. Ele explica que o mais importante é que o ex-paciente consiga construir nos ambientes sociais relações próximas nas quais seja possível ter apoio. O mais complicado, segundo ele, é quando a pessoa se isola. A vida, naturalmente, jamais será a mesma para quem passa por uma experiência tão radical. Será preciso lidar com transformações que vão do modo de viver a cirurgias plásticas e reabilitação. Passar por todo o esgotamento envolvido em um tratamento contra o câncer, conviver com o incômodo dos efeitos colaterais – que nem sempre desaparecem junto com a doença – são uma carga considerável de estafa. Nesse cenário, por incrível que pareça, o trabalho pode cumprir o papel de importante aliado.
A consultora educacional Mara Paula de Souza Alves, de 37, descobriu um câncer no sistema linfático há dois anos. Ela achava que tinha pneumonia, mas o que havia era um tumor de 10 centímetros, um linfoma de Hodgkin. “Depois da notícia, fiquei três dias chorando a minha morte. Passado o desespero inicial, vi que não adiantava ficar me velando. Precisava entender a doença e a forma de lutar contra ela”, explica. No princípio, lembra, foi difícil lidar com os efeitos da quimioterapia, a queda dos pelos da cabeça e cílios, aprender a amarrar lenço, colocar peruca. Depois, Mara se deu conta de que queria ter leveza de vida durante o tratamento. “Trabalhei durante todo o período. Atuo como pessoa jurídica e tenho contrato assinado, que a empresa não rompeu. Pude fazer a minha própria agenda. A químio era na quinta, eu convalescia e trabalhava a partir de terça. Continuar produtiva me ajudou muito. Hoje, já voltei à rotina normal”, comemora.
Mara Paula durante o tratamento
SEXUALIDADE
S. M. tem 50 anos e há sete foi obrigada a fazer mastectomia para a retirada de vários tumores numa das mamas. “No princípio, é muito difícil. Você tem que trabalhar muito a autoestima, é uma coisa bem de dentro. Se não existe uma união familiar para colocar você para cima, você vai se degradando. Tive família, amigo, todo mundo, e tentei me colocar o mais alegre possível. Por outro lado, me isolei bastante. Foram cinco anos sem me permitir ter qualquer relacionamento amoroso”, revela. Ela não sabe definir se isso ocorreu por vergonha ou por medo de rejeição, já que a reconstrução do seio que foi retirado não ficou perfeita. A saída para lidar com os homens que apareceram na vida dela era, de cara, falar sobre o problema e esperar a reação. “Sempre tive um corpo legal, mas veio a cortisona e o tratamento e me larguei por bastante tempo. Foi difícil encarar minha sexualidade de novo, mas consegui”, reconhece.