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A caminho dos 25 milhões de idosos, Brasil vê famílias se reaproximarem

Retomada do convívio com os mais velhos traz conforto a quem precisa de assistência e crescimento pessoal às gerações mais jovens

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Carolina Cotta - Estado de Minas Publicação:06/03/2016 08:13

Somos 23 milhões de idosos e seremos o sexto país em número de pessoas com mais de 60 anos até 2025. O Brasil tem envelhecido de maneira acelerada: sua população sexagenária dobrou nas duas últimas décadas. O último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, suscita previsões de que a população idosa brasileira possa passar de 34 milhões nos próximos 20 anos, representando entre 13% e 15% do nosso povo. Tal realidade promove uma série de impactos socioeconômicos, entre eles a reorganização de uma rede de cuidados pelas famílias.

Invariavelmente, o envelhecimento exige uma reformulação das relações nas famílias de idosos e nas que têm idosos. Em função de um maior ou menor grau de autonomia e independência, são definidos os cuidados necessários e, consequentemente, o relacionamento entre gerações. O avanço da idade pode representar a demanda por mais cuidados, mas há muitos idosos, também, numa via de mão dupla: em algumas famílias, os avós não são os que necessitam de cuidados, mas sim aqueles que ajudam a cuidar, os netos, por exemplo.

Maria Helena Caldeira Viana de Paula teve a vida transformada com a chegada do neto Rafael, há 6 anos, alegria que ela divide com os filhos Beatriz e Homero, a nora Ana Paula e Natascha (Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
Maria Helena Caldeira Viana de Paula teve a vida transformada com a chegada do neto Rafael, há 6 anos, alegria que ela divide com os filhos Beatriz e Homero, a nora Ana Paula e Natascha
Maria Helena Caldeira Viana de Paula, de 86 anos, só se tornou avó mais recentemente, quando já quase não tinha esperança de experimentar tal sensação. Há seis anos, nasceu Rafael, que provocou uma mudança, positiva, na rotina de sua casa. Apesar de viver sozinha, mesmo com a idade avançada, conta com a ajuda de profissionais durante o dia e à noite. E nada substitui o prazer de ter o filho, a filha, a nora e o neto ao seu lado diariamente, comendo a comida que ela mesma prepara. Para a nora, Ana Paula Nunes dos Santos, comerciante, de 41 anos, todos saem ganhando.

“Temos uma relação incrível. Como já perdi meus pais, me apeguei muito à minha sogra. Não acredito nesse tabu disseminado. Ela me trata como filha e estamos sempre juntas. Assim, eu e meu marido fazemos companhia e ela também me ajuda muito com a criação do Rafael”, comenta Ana. Os ganhos da convivência intergeracional são quase um consenso entre especialistas. Para Alexandre Kalache, doutor em envelhecimento e saúde pública e presidente do Centro Internacional da Longevidade no Brasil, essa troca é essencial no que chama da revolução da longevidade.

Isso porque os mais velhos ensinam aos mais jovens a transmissão da memória cultural e a educação para a velhice e a morte, enquanto os jovens revelam os novos tempos. Nas próximas páginas, o Bem Viver conta a história de famílias que souberam lucrar com a convivência entre gerações. São exemplos de vida e amor, de filhos que se dedicam aos cuidados de pais acamados, netos extremamente presentes na vida dos avós, pessoas que mudaram de vida para curtir, mais de perto, os últimos anos de uma geração cheia de lições para dar. Além de muito afeto.

Saúde cognitiva, corporal e psicossocial
Aos 91, Júlia Ribeiro Molhano faz pilates sob os olhares atentos dos netos André, Juliana e Nathália  (Acervo pessoal/Reprodução)
Aos 91, Júlia Ribeiro Molhano faz pilates sob os olhares atentos dos netos André, Juliana e Nathália
Conjunto das consequências ou dos efeitos da passagem do tempo, o envelhecimento pode ser visto como a conquista da sabedoria e da compreensão plena do sentido da vida, mesmo que venha acompanhado de um declínio das funções cognitivas e vitais, em função de quanto se investiu, ao longo do passar dos anos, nos pilares que sustentam uma terceira idade ativa: saúde, participação, segurança e educação. Os avanços na medicina e o advento de uma cultura de cuidados sustentam o fenômeno, mas não basta chegar a essa fase com os exames em dia: o envelhecimento precisa ser uma experiência positiva.

Segundo Alexandre Kalache, doutor em envelhecimento e saúde pública e presidente do Centro Internacional da Longevidade no Brasil, não basta, por exemplo, chegar aos 70 com saúde física e financeira, mas não ter relacionamentos interpessoais. Nesse sentido, ganha ainda mais importância a convivência entre gerações diferentes.

 

“A convivência de netos e avós, por exemplo, traz ganhos claros para os mais velhos, que se verão diante de novos conceitos, valores e conhecimentos”, explica o especialista, que já foi consultor da Organização Mundial de Saúde (OMS) no tema da longevidade.

Para a psicologia do envelhecimento, os indivíduos precisam tomar consciência de que o envelhecimento começa no momento em que se nasce e que a realidade do futuro nada mais é do que o resultado de como se viveu até lá.

 

É possível envelhecer de forma saudável, sendo essencial investir em atividades que mantenham o bom funcionamento cognitivo e psicossocial. O modelo psicológico de envelhecimento bem-sucedido, baseado em processos de otimização seletiva com compensação, significa simplesmente fazer e ser o melhor possível com os recursos de que dispõe.

Estudos constataram que atividades sociais se associam ao aumento na velocidade de processamento das informações e que o desempenho cognitivo em idosos vivendo em comunidade sugere forte ligação entre o engajamento em atividades mentais estimulantes e o desempenho cognitivo. O convívio entre gerações diferentes, que nos Estados Unidos e na Europa levou à formatação de programas intergeracionais, melhora a qualidade de vida dos idosos, fornecendo entusiasmo, afeto e espontaneidade, assim como os mais velhos oferecem orientação, confiança e apoio, narrando suas experiências de vida aos mais jovens.

• AFETO DOS NETOS DIARIAMENTE
Os irmãos André e Nathalia Molhano, advogado de 28 anos e fisioterapeuta de 30, respectivamente, e a professora Juliana Perez Carvalho Abrahão, de 34, sabem bem dos ganhos da convivência diária com a avó Júlia Ribeiro Molhano, às vésperas de completar 92 anos. Juliana curtiu muito a avó quando trabalhava perto de sua casa e aproveitava para almoçar com ela. “Ela é uma referência de carinho e afeto. Depois que me casei e me mudei, não venho com a mesma frequência, mas sempre que sinto falta de um chamego de vó corro pra cá”, conta Juliana.

Hoje, são André e Nathalia que estão por perto. Os irmãos montaram seus negócios ao lado da casa de Júlia, e contam com seus mimos frequentemente. “Ela vai sempre ao escritório, oferecendo uma fruta para o lanche, querendo saber se está tudo bem”, conta o advogado. Com Nathália, que mantém um estúdio de pilates nos fundos da casa, Júlia é mais do que a recepcionista perfeita para os alunos, mas também uma aluna dedicada. “Ela está o tempo inteiro preocupada com a gente. É um privilégio poder ter uma avó ativa, com quem podemos conviver sempre. Hoje, sinto que ela me acolhe e convive comigo muito mais que minha mãe. Afinal, estamos juntas todos os dias”, diz a fisioterapeuta. Dona Júlia, que diz não gostar de gente velha, adora estar ao lado dos netos para bater papo e aprender com eles. No ano passado, por exemplo, pediu um tablet de presente. Coisas de quem não parou no tempo. Nem deveria.

Novos arranjos familiares

A professora Kênia Osório se dedica a cuidar da mãe, Carmen, de 73 anos, que teve um acidente vascular cerebral e está acamada (Tulio Santos/EM/D.A Press.)
A professora Kênia Osório se dedica a cuidar da mãe, Carmen, de 73 anos, que teve um acidente vascular cerebral e está acamada
Requisitadas para cuidar dos seus segmentos mais “vulneráveis”, os jovens e os idosos, não é de hoje que as famílias desenham arranjos e formas de apoios entre gerações, bem como estratégias de convivência e de sobrevivência, o que varia consideravelmente entre as classes mais ricas e as menos favorecidas. Essas transformações muitas vezes reconfiguram os espaços residenciais e os modos de viver dos idosos e de seus familiares. Chega uma hora em que é inevitável decidir como os mais velhos passarão essa última fase da vida. São muitas as opções, o que depende do nível de dependência e autonomia dos mais velhos.

Segundo Alexandre Kalache, doutor em envelhecimento e saúde pública e presidente do Centro Internacional da Longevidade no Brasil, tanto a sociedade quanto as famílias brasileiras precisam se organizar para fazer face ao crescente envelhecimento de sua população e as consequências desse processo demográfico e social. Dados do IBGE revelam que a principal forma de moradia dos idosos é a coabitação intergeracional, bem superior à moradia em instituições de longa permanência ou residências geriátricas, e também mais comum do que idosos vivendo sozinhos.

O Censo de 2010 revela que apenas 11% dos idosos brasileiros moram em instituições de longa permanência. Para alguns pesquisadores, isso ocorre porque no Brasil esse tipo de instituição ainda não é visto como comum e aceitável, como ocorre em outros países. Ainda prevalece a discriminação que assimila essas casas aos asilos destinados a idosos pobres, doentes e carentes. E, na prática, o que ocorre é que muitos idosos e muitos de seus filhos acabam não aceitando o modelo. Outros não querem incomodar os filhos, mudando para suas casas, e ainda há os que fazem questão de permanecer na casa onde viveram grande parte da vida.

 

Coabitação Em pesquisa sobre as possibilidades e limites da coabitação intergeracional, Françoise Dominique Valéry, professora do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), observa como rearranjos extremamente fluídos e criativos estão tomando lugar no âmbito doméstico, como domicílios onde coabitam várias gerações, permanente ou transitoriamente, tudo isso em função dos hábitos, necessidades, relações entre gênero e gerações e “adaptação” ao espaço construído.

Em decorrência do processo de envelhecimento, a situação de moradia dos idosos está intimamente relacionada à situação de autonomia ou de dependência, sempre tendo em vista as necessidades decorrentes da perda de suas capacidades funcionais e financeiras. Mas relações intergeracionais e de corresidência não são prerrogativa da sociedade contemporânea. Entretanto, com a presença maciça das mulheres no mercado de trabalho, não só as relações de poder dentro das famílias são cada vez mais redistribuídas, como tem mudado um padrão em que os cuidados com os pais recaem sobre as mulheres.

Cada vez mais os homens estão aderindo aos cuidados dos pais. Na casa de Maria Helena Caldeira Viana de Paula, por exemplo, o filho Homero é presença diária, assim como a filha Beatriz. Dona Helena mora na mesma casa há 50 anos e, com a morte do marido, não quis se mudar. Os filhos então mantiveram a presença constante, e não só fazem questão de participar do almoço que Maria Helena prepara todos os dias, como a levam para passear todo fim de semana. Fora as viagens ao Rio.

Para a nora Ana Paula, a presença diária alimenta a ligação da família e os aproxima. “Nem todo mundo tem a sorte de poder conviver com os pais e sogros. É um bom exemplo e ganham todas as gerações. Às vezes, meu marido questiona se deixar o neto com ela não seria uma sobrecarga, mas penso que não. Pelo contrário. É bom para ela porque alegra a casa e é bom pra ele, que pode aproveitar todas as coisas boas de ter uma avó querida por perto”, comemora.

Marlene e Eci Fernandes se revezam para cuidar da mãe, Maria, de 86 anos, que tem Alzheimer  (Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
Marlene e Eci Fernandes se revezam para cuidar da mãe, Maria, de 86 anos, que tem Alzheimer
Na casa de Carmem Pires Osório, de 73 anos, também não há diferença de gênero quando o assunto é cuidado. Diagnosticada com Alzheimer em 2007, e vítima de um acidente vascular cerebral recentemente, Carmem hoje está acamada e demanda muitos cuidados. Os seis filhos ajudam, cada um de acordo com sua realidade. Dois, por exemplo, moram fora, e por isso contribuem mais financeiramente. Mas no dia a dia, a professora universitária Kênia Osório, de 42, divide as tarefas com o irmão Éber, músico, de 48.

O diagnóstico precoce de Alzheimer sugeria um quadro grave, que foi confirmado. Na época, o marido de Carmen, Alderico, hoje com 78, chegou a largar o emprego para ajudar a cuidar da esposa, mas com o passar do tempo ele também precisou de ajuda e entraram as cuidadoras e, principalmente, os filhos. A convivência com o idoso com saúde debilitada é, sem dúvidas, mais penosa, mas não por isso deixa de ser prazerosa. Kênia, por exemplo, não marca nenhum compromisso no domingo. Das 7h às 15h, dona Carmen é sua responsabilidade. O que faz com muito carinho.

“Sinto uma impotência em não poder ajudar, em não ter como mudar esse quadro. O que posso fazer é cuidar do bem-estar. Então, nessa fase, o que tentamos, ao máximo, é que ela fique bem. Ao mesmo tempo, sinto um alívio em estar por perto e poder cuidar da minha mãe. É reconfortante saber que estou presente mesmo na fase mais difícil, mesmo que hoje ela já não me reconheça. Quero curti-la da forma que ainda é possível. Se ainda posso dar carinho, estou feliz por isso”, emociona-se Kênia, segundo a qual o fato de a mãe não mais reconhecê-la não muda em nada sua dedicação. “O amor é o mesmo.”

TAREFAS COMPARTILHADAS Dona Maria Fernandes Parreiras, de 86, também tem Alzheimer, embora em estágio menos avançado. O tipo de cuidado que demanda é diferente, mas também precisa das filhas por perto. E sua família também precisou se organizar para dividir as tarefas, já que ela não tem uma cuidadora de idosos. A filha Marlene Fernandes Rocha, de 53, auxiliar administrativo, é um das que se revezam nos cuidados com as outras duas irmãs. Por morar nos fundos, em uma casa separada, os cuidados acabam ultrapassando as visitas. E acabam, também, envolvendo o genro e a neta de dona Maria.

Segundo Marlene, o envelhecimento dos pais traz novas demandas e responsabilidades, mas pode ser também uma forma de curti-los nessa fase tão especial da vida. “É mais alegre do que sofrido. Ela já não tem muita consciência das coisas, então se diverte, canta, bate palmas. É cansativo, porque, muitas vezes, o idoso com Alzheimer se torna muito repetitivo, mas é gratificante. Sei o tanto que ela sofreu para nos criar. Sei o quanto ela ajudou as pessoas durante a vida. Gosto de fazer o mesmo por ela”, conta Marlene, que nunca conseguiu sair de perto da mãe. “O contato diário é da vida inteira. Não sei como seria se não visse minha mãe todo dia.”

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