Pesquisa descobre que vírus da dengue fortalece o zika
O corpo de um paciente infectado não consegue capturar corretamente o segundo invasor, que escapa das células de defesa e começa a se replicar. Mecanismo descoberto pode servir de base para a criação de vacinas
Isabela de Oliveira - Correio Braziliense
Publicação:24/06/2016 14:55Atualização: 24/06/2016 14:59
O primeiro estudo, que incluiu cientistas do Instituto Pasteur, na França; da Universidade de Mahidol, na Tailândia; e do Imperial College London, no Reino Unido, mostra como o vírus zika se apropria das defesas do organismo infectado e as utiliza como uma espécie de cavalo de Troia para invadir células humanas sem ser detectado. O processo chama-se aumento da infecção dependente de anticorpos (ADE). “Existem quatro tipos de vírus da dengue. A teoria é que um indivíduo contaminado pela segunda vez com um patógeno diferente da primeira infecção pode apresentar a doença mais grave porque os anticorpos do primeiro caso facilitariam a infecção do segundo tipo viral”, explica Luzia Maria de Oliveira Pinto, do Laboratório de Imunologia Viral do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e não participante da pesquisa.
Os cientistas imaginaram que o ADE poderia ocorrer quando o sistema imune já exposto à dengue tem contato com o zika. Liderados por Gavin Screaton, coletaram anticorpos de indivíduos diagnosticados com dengue e os colocaram em contato com culturas de células humanas e o vírus zika. Os anticorpos conseguiram reconhecer e se ligar ao zika. No entanto, essas células de defesa de dengue preexistentes parecem ter amplificado a infecção de zika pelo fenômeno ADE.
No processo, os anticorpos treinados para reconhecer o invasor da primeira infecção até conseguem identificar o novo vírus, mas com menor precisão. Embora consigam se ligar ao patógeno, fazem isso de forma irregular e “frouxa”. Esse ataque parcial do sistema imunológico não é suficiente para conter totalmente a infecção. “Frouxamente” ligado ao vírus, o anticorpo o transporta para uma célula imune, cuja responsabilidade é aniquilar o invasor. Mas o patógeno mal capturado consegue escapar e contra-ataca invadindo a célula humana. Nela, sequestra a maquinaria imunológica para replicar partículas virais, que se alastram rapidamente pelo organismo, provocando uma infecção ainda mais intensa.
Gavin Screaton diz que, embora o trabalho esteja em uma etapa muito precoce, oferece indícios consistentes de que a dengue potencializa a infecção por zika. “Isso pode explicar por que o surto nas Américas foi tão grave e por que ocorreu justamente nas áreas em que a dengue é prevalente. Precisamos, agora, de mais estudos que confirmem esses resultados, o que pode progredir para uma vacina”, acredita o pesquisador.
Elzinandes Leal de Azeredo, também do Laboratório de Imunologia Viral do IOC/Fiocruz, concorda que os achados são expressivos. “Mas não são conclusivos, apesar de muito relevantes diante do desconhecimento atual dos mecanismos imunopatológicos envolvidos na infecção pelo zika”, pondera. “Além disso, estão de acordo com achados de estudos anteriores demostrando que a infecção secundária por um sorotipo diferente de dengue pode aumentar a gravidade da doença. O que os autores pensam, ou buscam demonstrar, é que a infecção prévia pelo vírus da dengue poderia estar associada à gravidade da infecção do zika.”
Brasil
Elzinandes é cautelosa ao traduzir os achados para a realidade brasileira. “Pelo que temos observado, especialmente na nossa população, o vírus zika tem um tropismo (atuação) forte pelo sistema nervoso. As células que circulam no sangue, que foram as estudadas, não são o melhor modelo para entendermos os quadros de microcefalia ou as síndromes neurológicas que acontecem em alguns indivíduos”, explica.
Esper Kallas, integrante da diretoria da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), também tem ressalvas sobre a validade dos resultados para explicar a maior repercussão do zika nas Américas, sobretudo no Brasil. “Aqui, temos uma população maior e mais densa, muito mais expressiva que regiões em que o vírus circulava até chegar aqui. Nós, os brasileiros, fomos capazes de observar as relações entre doenças neurológicas, começando pela microcefalia em recém-nascidos, com o zika. Isso pode fazer com que as pessoas pensem que, aqui, a situação é mais grave, mas não é assim. Parece ser mais grave porque observamos coisas que, até então, passavam despercebidas em outros lugares”, defende.
Kallas conta que, na Polinésia, os casos de microcefalia passaram despercebidos, sendo verificados muito tempo depois. Não há notícias de reações semelhantes na África. “O que pode ser apenas uma falta de comunicação desse efeito naquela região”, observa Luzia Maria, do IOC/Fiocruz. No entanto, após a associação do zika com microcefalia ter sido revelada por cientistas brasileiros, países como Cabo Verde, que tiveram o primeiro contato com a doença recentemente, registraram três casos da malformação neurológica em recém-nascidos de mulheres contaminadas na gestação.
Disseminações distintas
“Zika e dengue vêm da mesma família de vírus e sabemos que eles partilham muitas semelhanças na composição genética, no padrão de transmissão e na resposta imune que desencadeiam. Esses novos estudos sugerem que a contaminação prévia com dengue não oferece qualquer proteção contra zika, e que pode predispor as pessoas a uma infecção mais grave. Nós ainda não podemos dizer se essa interação está desempenhando um papel no surto atual, mas, se confirmada, pode ter implicações importantes no controle e na disseminação global de zika, além de influenciar o desenvolvimento de qualquer vacina contra o vírus. Ainda há mais perguntas do que respostas sobre o zika e esse grupo de vírus, incluindo o da dengue. Sabemos que o zika está presente no sudeste da Ásia e na África há muitos anos, mas não se alastrou lá como na América do Sul. É nisso que o esforço de investigação internacional precisa trabalhar rapidamente.”
Jeremy Farrar, diretor do Instituto Wellcome Trust Sanger (Reino Unido), que financiou as pesquisas publicadas na Nature e Nature Immunology
Anticorpo com ação promissora
O mesmo grupo de pesquisadores encontrou um anticorpo específico da dengue que pode ser útil para prevenir o aumento da infecção dependente de anticorpos (ADE) e impedir que o zika sequestre as células do sistema imunológico para se espalhar. Em trabalhos anteriores, os cientistas mostraram que a resposta imunitária contra a dengue mobiliza diferentes tipos de anticorpos, cada qual especializado em se ligar a um ponto específico do vírus.
Agora, na revista Nature, Felix Rey, do Instituto Pasteur, na França; e Gavin Screaton, do Imperial College London, no Reino Unido, confirmam que aos anticorpos EDE1 se ligam de forma eficiente ao vírus zika e têm o potencial de neutralizar a infecção. A equipe busca, agora, um meio para aplicar as descobertas e desenvolver vacinas contra as duas doenças.
Luzia Maria de Oliveira Pinto, do Laboratório de Imunologia Viral do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), observa que as novas informações sobre o risco de uma reação de imunologia cruzada entre dengue e zika complicam bastante o desenvolvimento de uma vacina, pois a própria imunização contra a dengue poderia aumentar a suscetibilidade dos casos graves ao vírus da outra doença. “É uma grande questão a ser analisada. Na minha opinião, a prevenção, no momento e sempre, é melhor e mais barata, mas precisa de conscientização e educação da nossa população, que é muito sofrida”, defende.
A especialista aponta outro caminho para a confecção de uma vacina: estudar a fundo a população que reage de forma mais dramática à infecção por zika. “Mas, sobretudo, é preciso conhecer melhor aquelas pessoas que são resistentes e que, por algum motivo, geram respostas mais eficientes contra a doença.”
Saiba mais...
A exposição anterior ao vírus da dengue pode potencializar a infecção por zika, sugere pesquisa publicada hoje na revista Nature Immunology. Apesar de iniciais, os achados indicam que há a possibilidade de o surto explosivo de zika nas Américas ter sido impulsionado, em parte, pela alta frequência de dengue na região. Em uma segunda pesquisa na revista Nature, o mesmo grupo mostra que um anticorpo específico da dengue exerce efeito inverso: o de neutralizar o zika, proporcionando alvo potencial para uma futura vacina.- Brasil e EUA acompanham 10 mil gestantes para avaliar riscos do Zika
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O primeiro estudo, que incluiu cientistas do Instituto Pasteur, na França; da Universidade de Mahidol, na Tailândia; e do Imperial College London, no Reino Unido, mostra como o vírus zika se apropria das defesas do organismo infectado e as utiliza como uma espécie de cavalo de Troia para invadir células humanas sem ser detectado. O processo chama-se aumento da infecção dependente de anticorpos (ADE). “Existem quatro tipos de vírus da dengue. A teoria é que um indivíduo contaminado pela segunda vez com um patógeno diferente da primeira infecção pode apresentar a doença mais grave porque os anticorpos do primeiro caso facilitariam a infecção do segundo tipo viral”, explica Luzia Maria de Oliveira Pinto, do Laboratório de Imunologia Viral do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e não participante da pesquisa.
Os cientistas imaginaram que o ADE poderia ocorrer quando o sistema imune já exposto à dengue tem contato com o zika. Liderados por Gavin Screaton, coletaram anticorpos de indivíduos diagnosticados com dengue e os colocaram em contato com culturas de células humanas e o vírus zika. Os anticorpos conseguiram reconhecer e se ligar ao zika. No entanto, essas células de defesa de dengue preexistentes parecem ter amplificado a infecção de zika pelo fenômeno ADE.
No processo, os anticorpos treinados para reconhecer o invasor da primeira infecção até conseguem identificar o novo vírus, mas com menor precisão. Embora consigam se ligar ao patógeno, fazem isso de forma irregular e “frouxa”. Esse ataque parcial do sistema imunológico não é suficiente para conter totalmente a infecção. “Frouxamente” ligado ao vírus, o anticorpo o transporta para uma célula imune, cuja responsabilidade é aniquilar o invasor. Mas o patógeno mal capturado consegue escapar e contra-ataca invadindo a célula humana. Nela, sequestra a maquinaria imunológica para replicar partículas virais, que se alastram rapidamente pelo organismo, provocando uma infecção ainda mais intensa.
Gavin Screaton diz que, embora o trabalho esteja em uma etapa muito precoce, oferece indícios consistentes de que a dengue potencializa a infecção por zika. “Isso pode explicar por que o surto nas Américas foi tão grave e por que ocorreu justamente nas áreas em que a dengue é prevalente. Precisamos, agora, de mais estudos que confirmem esses resultados, o que pode progredir para uma vacina”, acredita o pesquisador.
Elzinandes Leal de Azeredo, também do Laboratório de Imunologia Viral do IOC/Fiocruz, concorda que os achados são expressivos. “Mas não são conclusivos, apesar de muito relevantes diante do desconhecimento atual dos mecanismos imunopatológicos envolvidos na infecção pelo zika”, pondera. “Além disso, estão de acordo com achados de estudos anteriores demostrando que a infecção secundária por um sorotipo diferente de dengue pode aumentar a gravidade da doença. O que os autores pensam, ou buscam demonstrar, é que a infecção prévia pelo vírus da dengue poderia estar associada à gravidade da infecção do zika.”
Brasil
Elzinandes é cautelosa ao traduzir os achados para a realidade brasileira. “Pelo que temos observado, especialmente na nossa população, o vírus zika tem um tropismo (atuação) forte pelo sistema nervoso. As células que circulam no sangue, que foram as estudadas, não são o melhor modelo para entendermos os quadros de microcefalia ou as síndromes neurológicas que acontecem em alguns indivíduos”, explica.
Esper Kallas, integrante da diretoria da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), também tem ressalvas sobre a validade dos resultados para explicar a maior repercussão do zika nas Américas, sobretudo no Brasil. “Aqui, temos uma população maior e mais densa, muito mais expressiva que regiões em que o vírus circulava até chegar aqui. Nós, os brasileiros, fomos capazes de observar as relações entre doenças neurológicas, começando pela microcefalia em recém-nascidos, com o zika. Isso pode fazer com que as pessoas pensem que, aqui, a situação é mais grave, mas não é assim. Parece ser mais grave porque observamos coisas que, até então, passavam despercebidas em outros lugares”, defende.
Kallas conta que, na Polinésia, os casos de microcefalia passaram despercebidos, sendo verificados muito tempo depois. Não há notícias de reações semelhantes na África. “O que pode ser apenas uma falta de comunicação desse efeito naquela região”, observa Luzia Maria, do IOC/Fiocruz. No entanto, após a associação do zika com microcefalia ter sido revelada por cientistas brasileiros, países como Cabo Verde, que tiveram o primeiro contato com a doença recentemente, registraram três casos da malformação neurológica em recém-nascidos de mulheres contaminadas na gestação.
Disseminações distintas
“Zika e dengue vêm da mesma família de vírus e sabemos que eles partilham muitas semelhanças na composição genética, no padrão de transmissão e na resposta imune que desencadeiam. Esses novos estudos sugerem que a contaminação prévia com dengue não oferece qualquer proteção contra zika, e que pode predispor as pessoas a uma infecção mais grave. Nós ainda não podemos dizer se essa interação está desempenhando um papel no surto atual, mas, se confirmada, pode ter implicações importantes no controle e na disseminação global de zika, além de influenciar o desenvolvimento de qualquer vacina contra o vírus. Ainda há mais perguntas do que respostas sobre o zika e esse grupo de vírus, incluindo o da dengue. Sabemos que o zika está presente no sudeste da Ásia e na África há muitos anos, mas não se alastrou lá como na América do Sul. É nisso que o esforço de investigação internacional precisa trabalhar rapidamente.”
Jeremy Farrar, diretor do Instituto Wellcome Trust Sanger (Reino Unido), que financiou as pesquisas publicadas na Nature e Nature Immunology
Anticorpo com ação promissora
O mesmo grupo de pesquisadores encontrou um anticorpo específico da dengue que pode ser útil para prevenir o aumento da infecção dependente de anticorpos (ADE) e impedir que o zika sequestre as células do sistema imunológico para se espalhar. Em trabalhos anteriores, os cientistas mostraram que a resposta imunitária contra a dengue mobiliza diferentes tipos de anticorpos, cada qual especializado em se ligar a um ponto específico do vírus.
Agora, na revista Nature, Felix Rey, do Instituto Pasteur, na França; e Gavin Screaton, do Imperial College London, no Reino Unido, confirmam que aos anticorpos EDE1 se ligam de forma eficiente ao vírus zika e têm o potencial de neutralizar a infecção. A equipe busca, agora, um meio para aplicar as descobertas e desenvolver vacinas contra as duas doenças.
Luzia Maria de Oliveira Pinto, do Laboratório de Imunologia Viral do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), observa que as novas informações sobre o risco de uma reação de imunologia cruzada entre dengue e zika complicam bastante o desenvolvimento de uma vacina, pois a própria imunização contra a dengue poderia aumentar a suscetibilidade dos casos graves ao vírus da outra doença. “É uma grande questão a ser analisada. Na minha opinião, a prevenção, no momento e sempre, é melhor e mais barata, mas precisa de conscientização e educação da nossa população, que é muito sofrida”, defende.
A especialista aponta outro caminho para a confecção de uma vacina: estudar a fundo a população que reage de forma mais dramática à infecção por zika. “Mas, sobretudo, é preciso conhecer melhor aquelas pessoas que são resistentes e que, por algum motivo, geram respostas mais eficientes contra a doença.”