Artrite reumatoide muda relação dos pacientes com o sexo

Para quem tem a doença ter relações sexuais pode ser penoso. As dores, contudo, não se limitam ao corpo. Acima de tudo, a autoestima fica abalada

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Gláucia Chaves - Revista do CB Publicação:29/07/2016 09:00Atualização:26/07/2016 14:22

A estudante Priscila Torres, 35 anos, descobriu a doença já na vida adulta (Arquivo Pessoal)
A estudante Priscila Torres, 35 anos, descobriu a doença já na vida adulta
Sexo é tabu. Nem todo mundo consegue falar abertamente sobre o tema, sem amarras ou constrangimentos. Quando a dor, a fadiga e a rigidez muscular fazem parte da rotina, como no caso de pacientes com artrite reumatoide (AR), o assunto torna-se ainda mais espinhoso. Muitos doentes não encontram espaço para pensar em mais nada que não seja o desenrolar da doença ou as limitações inerentes à condição. Às vezes, a flexibilidade já não é a mesma. Algumas posições pioram as dores. A preocupação com o(a) parceiro(a) é constante: "Estou agradando? Minha performance está deixando a desejar?". Os que conseguem sublimar os incômodos para dar vazão à libido nem sempre sentem abertura para falar sobre sexo no consultório médico, ou com o outro. Como resolver o impasse sem deixar a qualidade de vida de lado?

Uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), publicada recentemente na Revista Brasileira de Reumatologia, mostrou um recorte da vida sexual de quem tem que driblar a dor para ter prazer. Ao todo, os pesquisadores ouviram 68 mulheres sobre questões como satisfação na cama, insegurança e autoestima. A maioria (79,8%) admitiu ter alguma disfunção sexual. Para ilustrar o artigo, os estudiosos usaram imagens de posições que facilitam o sexo para quem sofre de problemas articulares. Produzidas pela fundação britânica Arthritis Research UK, as figuras também ilustram as páginas desta reportagem.

Lícia Maria Henrique da Mota, reumatologista e coordenadora da Coorte Brasília de Artrite Reumatoide Inicial (grupo do Ambulatório de Reumatologia do Hospital Universitário de Brasília), foi uma das principais condutoras do estudo. A ideia principal, segundo ela, é vencer o tabu de que doente não transa, além de, claro, facilitar a vida dos pacientes. Para isso, a médica encabeça, em parceria com o terapeuta ocupacional Pedro Henrique de Almeida, o projeto de um guia para pacientes com dicas sobre como levar uma vida sexual saudável.

Além das dores, quem convive com a AR precisa lidar com uma grande quantidade de medicamentos. Os efeitos colaterais são muitos e podem incluir alterações de humor, depressão, alterações hormonais e perda da libido. Alguns, como o corticoide, podem facilitar a retenção de líquido, provocar inchaço e até aumentar a gordura em algumas regiões do corpo, como o abdômen."O próprio adoecimento altera a libido. A questão da autoimagem, a destruição das articulações, as deformidades — tudo isso afeta a forma como o paciente se vê", completa Lícia Mota. "Ele perde a libido porque o desejo faz parte de um contexto mais amplo, sobretudo entre as mulheres."

Nelas, as alterações hormonais provocadas pelos medicamentos podem ser ainda mais fatais para o desejo. De acordo com Lícia, existem tratamentos que podem levar à menopausa precoce. Anticonvulsivantes e antidepressivos, muito usados no controle da dor, também podem atrapalhar. Por fim, há o perigo da automedicação. Em uma tentativa de minimizar o incômodo durante o sexo, alguns pacientes apelam para relaxantes musculares ou analgésicos, inúteis para o tipo de dor que a doença provoca. "Não recomendamos o uso para essa finalidade", orienta a médica. "Até porque pode haver interação desses remédios com outros que estejam sendo usados no tratamento."


Aceitação e compreensão

 

Pelo fato de ser uma doença ainda sem cura, a AR muitas vezes pode ser encarada como uma espécie de destino: se, mesmo tomando os remédios por anos a fio, o problema nunca cederá, por que continuar? A armadilha mental, segundo a psiquiatra Carmita Abdo, é o cerne dos problemas que poderão advir da condição. "A evolução da doença crônica depende muito da disciplina do paciente", reforça. O resultado é uma reclusão, às vezes involuntária, que faz com que pensamentos pouco amigáveis comecem a surgir. Será que ainda sou atraente? Será que alguém se interessará por mim, mesmo com essa doença? E por aí vai. "Há o ‘humor’ da artrite, que acompanha a doença. Pela própria dor, a gente percebe que a personalidade vai se tornando mais reclusa, mais cética de que alguém possa se interessar. A pessoa vai ficando sem disposição."

Como ajudar, então? Se você é casado(a) com um paciente de AR, a primeira dica é deixar claro que o interesse permanece. Depois, frisar a importância de seguir o tratamento à risca e sem interrupções. "Não é uma infecção que vai passar com antibiótico. É uma doença crônica que vai ter que ser combatida todos os dias", reforça Carmita. Por fim, respeite os limites do paciente. Dor, secura vaginal, receio da manhã seguinte — tenha em mente que tudo isso influencia a performance e o desejo, e vá com calma.

A estudante Priscila Torres, 35 anos, descobriu a doença já na vida adulta. À época, em 2006, ela trabalhava como enfermeira. Sua primeira reação quando a dor começou foi se automedicar. "Comecei a derrubar as coisas e a ter dificuldade de fazer alguns movimentos", relembra. Quando recebeu o diagnóstico de AR, Priscila era casada. O matrimônio não durou muito mais e, após um tempo, ela recomeçou a sair, até se casar novamente. "Realmente existe essa dificuldade de ter uma relação sexual, acordar no outro dia e ficar com medo de não ter tido o mesmo desempenho de uma mulher sem AR", reconhece. "Medo de a pessoa saber o quanto você é diferente; ter que explicar que você pode precisar de ajudar até para vestir a roupa. A gente nunca sabe como a pessoa vai entender a doença."

Em 2011, a reumatologista Clarissa Ferreira conduziu outro estudo, também sobre a sexualidade de pacientes artríticos. À época, a médica aplicou um questionário sobre disfunção sexual a 163 mulheres com diversas doenças, sendo AR e lúpus as prevalentes. As perguntas avaliaram o desejo, a falta de libido e a dor durante a relação sexual. Cerca de 18% das entrevistadas tinham alguma disfunção sexual e uma parte considerável delas, 24%, sequer havia praticado alguma atividade sexual nas últimas quatro semanas (tempo médio estipulado no questionário). O estudo durou nove meses.

A falta de vontade de fazer sexo ficou em primeiro no ranking de reclamações, seguida pela dor. Segundo Clarissa, o incômodo da falta de libido é comum, mas poucos pacientes têm a desenvoltura ou a coragem de abordar o assunto durante uma consulta comum. "Poucas relatam espontaneamente, mas, quando aplicamos o questionário, elas se sentiam à vontade", frisa a médica. "Acredito que falar sobre o assunto está cada vez mais comum, mas ainda existe o tabu." O mea-culpa médico também entra aqui: devido à brevidade das consultas, outros assuntos mais práticos e aparentemente mais urgentes costumam ter preferência. Resultado: sobra pouco tempo para falar de sexo — e os pacientes vão ficando cada vez mais estéreis.

 

Hoje, a marca registrada de seu atual casamento é a tranquilidade: saber-se amada e desejada amenizou suas dores emocionais e até as físicas. "Meu atual marido brinca que nossa cama é mais quente que as outras, até porque minhas articulações ficam quentes quando estou em crise", diverte-se. Nesses períodos, é o marido quem avisa que está na hora de voltar ao reumatologista.

A doença está também em pequenos detalhes da rotina. Assim que se casaram, o marido a levava todos os domingos (único dia de folga de Priscila) para almoçar fora. "Ele via que eu, às vezes, quebrava os pratos em casa, então achou que eu tinha raiva de cozinhar", recorda. Quando a movimentação articular melhora, o sexo é de um determinado jeito. Se Priscila entra em crise, o marido percebe e adapta as posições. O companheirismo em todas as horas a ajudou a melhorar em todos os aspectos da vida. "Ele não sabia nada sobre a doença, nunca tinha tido contato. Sempre aconselho os pacientes que vêm falar comigo para não se prender. Se a pessoa está disposta a ter relações sexuais com você, ela também não se prenderá a detalhes. Não é o cara que está reparando em você — é você que está se reparando", conclui.

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