Casal da Paraíba conta a rotina com a filha que nasceu com microcefalia
Falhas no apoio desde a gravidez dificultam o progresso de Maria Gabriela, vítima de uma infecção intrauterina cujos efeitos desafiam médicos e cientistas
Paloma Oliveto - Correio Brazilienze
Publicação:14/09/2016 15:00
Esperança é um município de 31 mil habitantes encravado no sertão paraibano. Diz a Wikipedia que, em 1860, foi erguida a primeira capela do local, numa tentativa de convencer Nossa Senhora a encerrar uma epidemia de cólera que se abateu sobre todo o Nordeste. Um século e meio depois, o flagelo é outro. No lugar do vibrião colérico, o Aedes aegypti é que não dá sossego. De 1º de janeiro a 8 de agosto, a Paraíba registrou 35.873 casos suspeitos de dengue, 15.634, de chikungunha e 3.907, de zika, todos eles causados pelo mosquito. Em 2015, o Aedes também esteve inclemente. Só de dengue, fez mais de 1,6 milhão de vítimas, número recorde nos registros históricos. De zika, não se sabe: doença, então desconhecida, não constava do sistema de notificação compulsória do Ministério da Saúde.
Por volta de julho, Maria Carolina Flor, 21 anos, foi picada. A esperancense, moradora da zona rural, a 10km do centro da cidade, começou a sentir dor de cabeça, febre e dor atrás dos olhos. O corpo ficou manchado de vermelho. No posto de saúde, recebeu o diagnóstico de uma enfermeira: virose. Seis meses depois, deu à luz Maria Gabriela. A criança nasceu com microcefalia.
Maria Carolina não sabia, mas, quando o mosquito depositou o vírus zika em sua corrente sanguínea, ela estava grávida de três meses. Mãe de Gabriel, 2, não planejava um novo filho; por isso, havia procurado o Hospital Municipal de Esperança para colocar um dispositivo intrauterino. Porém, diz que até hoje aguarda o agendamento dos exames que precisam ser feitos antes do implante do DIU.
Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz que acompanhou mulheres entre a 5ª e a 38ª semanas de gestação indicou que o zika prejudica o feto em qualquer fase da gravidez. Mas a infecção no primeiro trimestre é a que traz mais prejuízos. Uma pesquisa ainda em curso do Ministério da Saúde mostra que essa é a fase onde há maior risco de microcefalia.
Encaminhada ao pré-natal, Maria Carolina fez o primeiro e único ultrassom na gestação coberto pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “O médico disse que tinha uma alteração na cabeça dela, nos ventrículos laterais”, relata. Para ter certeza, precisava fazer a ultrassonografia morfológica, não coberta pelo SUS. Com o marido desempregado, o jeito foi fazer uma vaquinha na família.
Seja por instinto materno, seja pelas notícias que começavam a aparecer, Maria Carolina imaginou que a criança poderia ter microcefalia. À época, não havia sido feita a associação entre o vírus e o comprometimento do sistema nervoso central. O que se sabia era que um número estranhamente alto de bebês nordestinos estava nascendo com a cabeça menor que o normal. “Fizemos (o exame) em uma clínica particular de Esperança e o médico falou para não me preocupar, que era normal, era o cérebro dela se formando.” Maria Carolina já estava com cinco meses de gestação.
Prematura
Apesar de não planejada, a gravidez encheu o casal de alegria. Pais de um garoto, acabavam de saber que agora viria uma menina. Ainda mais que o exame foi avaliado novamente pelo médico do posto de saúde, que reafirmou o veredito do colega: não havia nada de mais com o feto. Maria Carolina e Joselito foram para casa felizes e com a recomendação de não fazer mais ultrassons, porque não seriam necessários. E foi assim até janeiro, quando Maria Gabriela chegou ao mundo um mês antes do previsto.
Um artigo publicado na revista The Lancet que analisou dados de 6.071 parturientes determinou que dengue e chikungunha podem causar abortos e partos prematuros. Ainda não se sabe se o mesmo vale para o zika, mas obstetras do Nordeste
têm encontrado essa associação na prática clínica.
Em quatro de janeiro, Maria Carolina começou a sentir dores nas costas. No dia seguinte, a sensação ficou mais forte. Às 15h30, ela e Joselito chegaram ao Hospital Municipal. Exatamente 30 minutos depois, Maria Gabriela nasceu, de parto normal. O anormal, segundo o relato dos pais, foi o tratamento recebido. Pela lei, a parturiente tem direito a um acompanhante durante todo o processo. Contudo, alegando falta de estrutura, o hospital não permitiu, nem que Joselito, nem que a mãe de Carolina ficassem com ela.
A criança nasceu e foi retirada da sala antes que Carolina pudesse vê-la. Imediatamente, o médico chamou Joselito. “Ele me perguntou se alguém na minha família tinha problema neurológico. Eu disse que não, e ele falou: ‘Sua filha tem microcefalia’. Foi embora. Desde então, não o vi mais.” Assim como Maria Carolina, Joselito desconfiava que a filha nasceria com o perímetro cefálico menor que 32cm. Quando passava a mão na barriga da mulher, a criança não se mexia. Ele diz que questionou isso com médicos e enfermeiros durante a gestação. “Como é que nós, filhos de agricultores, tidos como miseráveis e analfabetos, vamos ensinar a médico que tem diploma?”, pergunta o técnico de informática.
Um estudo da brasileira Vanessa van der Linden identificou em imagens outra sequela do zika: a artrogripose múltipla congênita, caracterizada por deformidades articulares em pelo menos duas áreas. Segundo a médica, o feto fica com uma postura fixa no útero, e isso faz com que ocorram as deformidades, que têm origem nos neurônios associados à área motora.
Naquele momento, eram várias as revoltas de Joselito. Para agravar, viu uma enfermeira chorando. “Como se tivesse nascido um bicho.” Na hora em que, finalmente, teve as filhas no braço, Maria Carolina confessa que levou um choque. A circunferência da cabeça de Maria Gabriela era de 27cm. Mas ela se apressa em esclarecer que jamais rejeitou a criança.
Com a insistência dos pais e depois de ter uma febre de 39ºC, Maria Gabriela foi removida para o Hospital Pedro I de Campina Grande, a 50km dali. Lá, o bebê recebeu a assistência necessária. Os problemas, porém, persistem. Ela tem baixa visão e precisa de óculos, mas o exame não é coberto, e a família não tem como pagar particulares — recebe do governo um salário mínimo do Benefício de Prestação Continuada (BPC), repassado às crianças com microcefalia com renda per capita de R$ 220.
Apoio limitado
O auxílio não é vitalício: o prazo máximo são três anos. “Isso quer dizer que minha filha vai morrer depois de três anos? Porque sarar, ela não vai. Isso não tem cura”, critica Joselito. A menina tem comprometimento da audição no ouvido esquerdo e precisa de uma órtese para auxiliar a movimentação dos braços. “Mas não tem especialista para colocar a órtese”, reclama o pai.
Duas vezes por semana, Maria Gabriela faz fisioterapia em Campina Grande. Cada sessão dura 40 minutos. Para chegar lá, a família é transportada por um carro da prefeitura, mas o serviço também é criticado pelos pais da menina: mãe e filha saem às 7h e, em média, só conseguem voltar para Esperança sete horas depois. Em casa, Maria Carolina repete os exercícios de estimulação feitos pelos especialistas com o bebê, que também precisa tomar remédio diariamente para evitar convulsões. Quando não consegue pegar o medicamento no posto de saúde, o casal tem de comprá-lo.
Maria Gabriela faz parte da primeira geração de crianças que nasceram com complicações devido ao zika. Algumas acabaram de completar 1 ano. Agora, a pequena esperancense está começando a “ficar mais esperta”, na avaliação da mãe. Estimulada, por exemplo, ela sorri e mexe o corpinho. Mama sem engasgar e chupa a chupeta com gosto. Ninguém, porém, tem ideia do que será dessas crianças que, no Brasil, já são quase 2 mil — isso considerando apenas os casos confirmados de microcefalia. Há bebês que nascem sem esse sintoma.
A ciência, que desconhecia os efeitos da infecção do patógeno sobre o desenvolvimento fetal, aprende, com as vítimas, o que é a síndrome neurológica associada ao zika. Joselito e Maria Carolina dizem como lidam com o fato de que nem os médicos podem dizer como será a vida da filha: “A gente vai encarando na superação”.
Joselito e Maria Carolina são pais de Gabriel e Maria Gabriela, que tem microcefalia: as suspeitas de malformação surgiram na gravidez, mas sem confirmação médica
Por volta de julho, Maria Carolina Flor, 21 anos, foi picada. A esperancense, moradora da zona rural, a 10km do centro da cidade, começou a sentir dor de cabeça, febre e dor atrás dos olhos. O corpo ficou manchado de vermelho. No posto de saúde, recebeu o diagnóstico de uma enfermeira: virose. Seis meses depois, deu à luz Maria Gabriela. A criança nasceu com microcefalia.
Maria Carolina não sabia, mas, quando o mosquito depositou o vírus zika em sua corrente sanguínea, ela estava grávida de três meses. Mãe de Gabriel, 2, não planejava um novo filho; por isso, havia procurado o Hospital Municipal de Esperança para colocar um dispositivo intrauterino. Porém, diz que até hoje aguarda o agendamento dos exames que precisam ser feitos antes do implante do DIU.
Saiba mais...
Na semana passada, ela, o marido, Joselito Alves, 27 anos, e as crianças viajaram a Brasília para participar do lançamento do livro Zika: do Sertão nordestino à ameaça global, da antropóloga Debora Diniz. Também vieram denunciar a violação de direitos que, na opinião do casal, começou quando a jovem não teve acesso ao anticonceptivo e continuou com a precariedade de infraestrutura no alto sertão. “O culpado de tudo isso é a negligência do governo. É a falta de esgoto, a falta de saneamento básico, ninguém olha a periferia. E o que acontece? A proliferação de mosquitos”, diz Joselito.- Além da microcefalia: estudo brasileiro mostra que infecção por zika causa mais defeitos cerebrais graves em bebês
- Microcefalia por zika já chega a 17 países e Brasil lidera número de casos
- Cientistas identificam proteínas do vírus da zika que causam microcefalia
- 70% das grávidas acham exames do SUS insuficientes para microcefalia
- Antropóloga conta em livro como epidemia do zika foi identificada no Brasil
- Mundo deve se preparar para epidemia de microcefalia por zika, adverte estudo
Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz que acompanhou mulheres entre a 5ª e a 38ª semanas de gestação indicou que o zika prejudica o feto em qualquer fase da gravidez. Mas a infecção no primeiro trimestre é a que traz mais prejuízos. Uma pesquisa ainda em curso do Ministério da Saúde mostra que essa é a fase onde há maior risco de microcefalia.
Encaminhada ao pré-natal, Maria Carolina fez o primeiro e único ultrassom na gestação coberto pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “O médico disse que tinha uma alteração na cabeça dela, nos ventrículos laterais”, relata. Para ter certeza, precisava fazer a ultrassonografia morfológica, não coberta pelo SUS. Com o marido desempregado, o jeito foi fazer uma vaquinha na família.
Seja por instinto materno, seja pelas notícias que começavam a aparecer, Maria Carolina imaginou que a criança poderia ter microcefalia. À época, não havia sido feita a associação entre o vírus e o comprometimento do sistema nervoso central. O que se sabia era que um número estranhamente alto de bebês nordestinos estava nascendo com a cabeça menor que o normal. “Fizemos (o exame) em uma clínica particular de Esperança e o médico falou para não me preocupar, que era normal, era o cérebro dela se formando.” Maria Carolina já estava com cinco meses de gestação.
Prematura
Apesar de não planejada, a gravidez encheu o casal de alegria. Pais de um garoto, acabavam de saber que agora viria uma menina. Ainda mais que o exame foi avaliado novamente pelo médico do posto de saúde, que reafirmou o veredito do colega: não havia nada de mais com o feto. Maria Carolina e Joselito foram para casa felizes e com a recomendação de não fazer mais ultrassons, porque não seriam necessários. E foi assim até janeiro, quando Maria Gabriela chegou ao mundo um mês antes do previsto.
Um artigo publicado na revista The Lancet que analisou dados de 6.071 parturientes determinou que dengue e chikungunha podem causar abortos e partos prematuros. Ainda não se sabe se o mesmo vale para o zika, mas obstetras do Nordeste
têm encontrado essa associação na prática clínica.
Em quatro de janeiro, Maria Carolina começou a sentir dores nas costas. No dia seguinte, a sensação ficou mais forte. Às 15h30, ela e Joselito chegaram ao Hospital Municipal. Exatamente 30 minutos depois, Maria Gabriela nasceu, de parto normal. O anormal, segundo o relato dos pais, foi o tratamento recebido. Pela lei, a parturiente tem direito a um acompanhante durante todo o processo. Contudo, alegando falta de estrutura, o hospital não permitiu, nem que Joselito, nem que a mãe de Carolina ficassem com ela.
Um estudo da brasileira Vanessa van der Linden identificou em imagens outra sequela do zika: a artrogripose múltipla congênita, caracterizada por deformidades articulares em pelo menos duas áreas. Segundo a médica, o feto fica com uma postura fixa no útero, e isso faz com que ocorram as deformidades, que têm origem nos neurônios associados à área motora.
Naquele momento, eram várias as revoltas de Joselito. Para agravar, viu uma enfermeira chorando. “Como se tivesse nascido um bicho.” Na hora em que, finalmente, teve as filhas no braço, Maria Carolina confessa que levou um choque. A circunferência da cabeça de Maria Gabriela era de 27cm. Mas ela se apressa em esclarecer que jamais rejeitou a criança.
Com a insistência dos pais e depois de ter uma febre de 39ºC, Maria Gabriela foi removida para o Hospital Pedro I de Campina Grande, a 50km dali. Lá, o bebê recebeu a assistência necessária. Os problemas, porém, persistem. Ela tem baixa visão e precisa de óculos, mas o exame não é coberto, e a família não tem como pagar particulares — recebe do governo um salário mínimo do Benefício de Prestação Continuada (BPC), repassado às crianças com microcefalia com renda per capita de R$ 220.
Apoio limitado
O auxílio não é vitalício: o prazo máximo são três anos. “Isso quer dizer que minha filha vai morrer depois de três anos? Porque sarar, ela não vai. Isso não tem cura”, critica Joselito. A menina tem comprometimento da audição no ouvido esquerdo e precisa de uma órtese para auxiliar a movimentação dos braços. “Mas não tem especialista para colocar a órtese”, reclama o pai.
Duas vezes por semana, Maria Gabriela faz fisioterapia em Campina Grande. Cada sessão dura 40 minutos. Para chegar lá, a família é transportada por um carro da prefeitura, mas o serviço também é criticado pelos pais da menina: mãe e filha saem às 7h e, em média, só conseguem voltar para Esperança sete horas depois. Em casa, Maria Carolina repete os exercícios de estimulação feitos pelos especialistas com o bebê, que também precisa tomar remédio diariamente para evitar convulsões. Quando não consegue pegar o medicamento no posto de saúde, o casal tem de comprá-lo.
Maria Gabriela faz parte da primeira geração de crianças que nasceram com complicações devido ao zika. Algumas acabaram de completar 1 ano. Agora, a pequena esperancense está começando a “ficar mais esperta”, na avaliação da mãe. Estimulada, por exemplo, ela sorri e mexe o corpinho. Mama sem engasgar e chupa a chupeta com gosto. Ninguém, porém, tem ideia do que será dessas crianças que, no Brasil, já são quase 2 mil — isso considerando apenas os casos confirmados de microcefalia. Há bebês que nascem sem esse sintoma.
A ciência, que desconhecia os efeitos da infecção do patógeno sobre o desenvolvimento fetal, aprende, com as vítimas, o que é a síndrome neurológica associada ao zika. Joselito e Maria Carolina dizem como lidam com o fato de que nem os médicos podem dizer como será a vida da filha: “A gente vai encarando na superação”.