Relação aberta ou inteligência erótica: existe uma resposta única para os dilemas atuais do casamento?
Veja a opinião de duas grandes autoridades quando o assunto é relacionamento, amor e desejo: a belga Esther Perel e a brasileira Regina Navarro Lins
A autora esclarece que, no Ocidente, o erotismo é automaticamente associado ao sexo, mas a inteligência erótica não é necessariamente uma habilidade sexual. “O ato sexual não pode ser o único objetivo. O erotismo é a poesia do sexo, é o sexo transformado pela nossa imaginação, e isso está além da cama – tem a ver com quem eu sou, com a identidade de cada um. Tem a ver com descobrir como é possível manter a novidade, a curiosidade e o espírito explorador dentro de um relacionamento duradouro”, define a terapeuta. “Se vejo o erotismo como inteligência, então é algo que cultivo, principalmente com a imaginação”, resume. Mas não fique com o resumo.
E temos ainda o fato de não gostar do próprio corpo. “Se você não gosta do próprio corpo, como vai convidar alguém para desfrutá-lo junto com você? A tirania do corpo que existe em vários países, inclusive no Brasil, exacerba essa frustração”, acrescenta Esther Perel. Ou seja: muitas vezes, a insatisfação que leva à infidelidade tem mais a ver com o conhecimento de nós mesmos do que com alguma negligência do outro.
Para toda a vida ou que seja eterno enquanto dure?
As mudanças no modelo de casamento foram drásticas em poucas décadas. Se antes, o casamento era obrigatoriamente e irrevogavelmente para a vida toda, hoje já se permite que o “para a vida toda” seja com uma pessoa por vez. “A monogamia é um conceito que sempre muda através da história. Em séculos passados, ela não era uma definição romântica, e sim econômica. Era uma imposição sobre a mulher, afinal, o patriarca precisava saber se aqueles filhos eram dele, para levar a família e o patrimônio adiante”, lembra Esther.
Com a criação do mito do amor romântico, no século XX, o casamento monogâmico deixou de ser uma imposição e se tornou uma convicção amorosa. “Passamos a querer que a pessoa com quem nos casamos seja uma boa amiga, uma boa confidente e também uma amante apaixonada”, detalha Esther. Mais tarde, com a legalização do divórcio, a revolução sexual e a pílula anticoncepcional, a monogamia passou a ser com uma pessoa por vez; e não com uma pessoa pela vida toda.
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Este nomadismo sexual foi abrindo mais possibilidades e permitindo comparações entre as experiências - através da história, o significado da sexualidade e as fronteiras sexuais mudam. Os relacionamentos abertos, por exemplo, são mostras dessa negociação de limites, segundo Esther, mas é necessário entender que, por outro lado, quem tem uma relação tradicional não necessariamente está perdendo. “O desafio erótico é integrar a relação de duas necessidades humanas fundamentais e opostas – uma relação comprometida, estável, segura, previsível, de um lado; e a surpresa, a novidade, o mistério, o fascínio pelo desconhecido, de outro”, pontua. Como é impossível que a mesma pessoa seja naturalmente estável e surpreendente, familiar e inovadora, previsível e misteriosa, a terapeuta bate na tecla do esforço.
“As pessoas que têm relações extraconjugais não necessariamente têm relações ruins. Elas buscam a possibilidade de serem diferentes, buscam renovação pessoal, o que quase sempre é difícil num casamento de décadas. O divórcio, neste sentido, é a reafirmação do sistema – você não acredita que errou de modelo, errou de pessoa”, explica Esther. Mas, apesar de difícil, ela garante que renovar-se não é impossível.
A terapeuta ensina que, para manter o desejo, é necessário manter o frescor. Como? Com distância. “O desejo precisa de uma história para surgir. A tendência é reclamar: fulano é sempre o mesmo. E esquecemos que nós também somos os mesmos”, alerta Esther. O desejo, com o tempo, passa a vir de forma mais calma, mas nem todos aceitam isso, tal é a idolatria do amor romântico. “Para o desejo surgir, não existe a necessidade obrigatória de uma nova pessoa. Bastam novos comportamentos, novas iniciativas. É um esforço, é um trabalho contínuo. Ele deve ser premeditado, uma vez que deixou de ser espontâneo”, define a terapeuta belga.
Funciona como quando você decide cozinhar um prato especial – é preciso pensar na receita, comprar os ingredientes, criar a apresentação. Porque aceitamos tanto que deve haver empenho na vida profissional, mas a conjugal deve se resolver sozinha? Porque acreditamos que, se ela não se resolve, não há amor suficiente? Essas são algumas das provocações de Esther Perel.
Romantismo: o inimigo
Apesar de culturas, religiões e gêneros diferentes, as respostas foram semelhantes e agrupadas:
Primeiro grupo:
- sinto mais atração pelo meu parceiro quando estamos longe e nos reencontramos. Ou seja: é possível imaginar-se com o parceiro, devido à ausência e à saudade – uma grande componente do desejo.
Segundo grupo:
-sinto mais atraída pelo meu parceiro quando o vejo se destacando e seu ambiente ou fazendo allgo que gosta muito, quando é o centro das atenções. Um exemplo: “quando minha mulher faz uma apresentação de trabalho para centenas de pessoas sem nem perceber que estou ali na plateia”. Ou seja: aquela pessoa familiar volta a ter um certo mistério. Neste espaço, nasce o movimento, o impulso erótico.
Terceiro grupo:
- quando estou surpreso, quando rimos juntos, quando há alguma novidade. Novidade não tem nada a ver com novas posições na cama ou novas técnicas. Tem a ver com se descobrir.
Se, para o desejo no casamento sobreviver, é necessário existir uma distância, há muita gente que precisa trabalhar a tranquilidade de estar longe do outro, permitir que ele cresça. Muitos casais apostam em uma vida sem brigas e agressividade. Um mundo 100% politicamente correto. Mas a raiva pode trazer a distância que estimula o erotismo. Afeição permanente pode abafar o tesão. “Já procurei, mas ainda não encontrei uma pessoa que se excite por alguém que precisa dela. Precisar é desestimulante”, sentencia Esther. O desejo vem quando o outro é visto como independente, e não como pai/mãe/companheiro..
Fontes diferentes
Esther levanta ainda a questão da ‘igualdade’. Historicamente, as sociedades tentam controlar a sexualidade. Embora tenha havido uma luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, muitas abandonam sua condição independente após o nascimento dos filhos e passam a regredir ao mesmo comportamento das mães e avós. “Além de insatisfações com o corpo, cansaço e alterações hormonais, a mulher abandona sua individualidade. E o individualismo é vital para o desejo. Neste caso, o companheiro, em vez de ficar esperando alguma mudança, deve criar um novo ambiente”, alerta.
Não confunda premeditação com obrigação
É possível forçar o sexo, mas nunca o desejo. “É importante aprender pela experiência. Conhecer seu corpo e saber o que o satisfaz, para depois comunicar o que faz você se sentir bem. Ler e assistir filmes também ajudam a desenvolver a mente erótica, descobrir e explorar novos caminhos”, ensina Esther. É como descobrir seu gosto em música – vocês escuta uma música, descobre que gosta dela. Repete muitas vezes, depois passa para outras músicas. “A experiência é importante para desenvolver a autoaceitação, a autoestima – para se sentir confortável ao explorar o sexo”, resume.
A última fronteira - ou tabu universal - do sexo é sua presença dentro da família. E o casamento vive essa tensão entre a formação da família e o sexo. “Estar apaixonado dentro do casamento monogâmico é um paradoxo. Se antes o sexo era apenas para procriação, ele não fazia parte do dia a dia da família. E ainda estamos rompendo essa fronteira. É a sexualidade que vem do desejo, não da obrigação. O casamento atual precisa ter amor, sexualidade e desejo de felicidade. Quando alguém me procura e diz que enxerga o marido ou a esposa como irmão ou mãe, por exemplo, é porque o papel do outro deixou de ser sexual”, define a terapeuta.
Duas pessoas que querem manter o desejo e desenvolver sua inteligência nesta direção devem compreender que o amor é um espaço erótico, dentro do qual o desejo pode desabrochar. O desejo é uma ponte que deve ser cruzada para se chegar ao outro. “Para isso, é necessário haver egoísmo, no melhor sentido da palavra: a habilidade de estar conectado consigo mesmo na presença do outro”, explica Esther.
Mas ela chama a atenção para algo cada vez mais raro nessa equação: a privacidade. Casais eróticos têm privacidade sexual, um espaço que pertence a cada um. Entendem que o erotismo e o sexo são um lugar para onde você vai sem sua roupa de cidadão responsável, de homem e mulher ‘de bem’. “A privacidade e o tempo que passamos longe um do outro, significam intimidade consigo mesmo, e isso está cada vez mais raro na sociedade ocidental, que vive a valorização da transparência”, conclui Esther Perel.
A psicanalista e escritora Regina Navarro Lins também acredita que boa parte desses conflitos e angústias se devem às mudanças na forma de encarar o mito do amor romântico – que exige a exclusividade (ou monogamia) e prega que as duas pessoas do casal vão se tornar uma só. Elas têm a certeza de que não ficarão mais sozinhas. Todas as expectativas, que antes poderiam ser diluídas entre vários parceiros, concentram-se e um único indivíduo. “O amor romântico, que povoa as mentes desde meados do século XX, cria uma situação muito irreal, e por isso mesmo esse conceito de monogamia está acabando. Cada vez mais pessoas entendem que o amor pode existir – ainda que não haja exclusividade”, afirmou Regina durante a entrevista.
Do alto dessa experiência, ela acredita que essa idealização do outro – o amor por uma pessoa que nós mesmos inventamos, a nossa alma gêmea – está saindo de cena. “Isso acontece porque há uma crescente busca pela individualidade – que nada tem a ver com o sentido pejorativo do egoísmo”, explica ela, em um de seus pontos de contato com as ideias de Esther Perel. “A grande viagem atual é para dentro de si mesmo. Cada um quer saber qual é o seu potencial e desenvolvê-lo. E nesse processo não cabem tantas concessões apenas para manter alguém ao seu lado. A busca da individualidade bate de frente com o amor romântico, que prega a fusão dos sujeitos”, define.
Regina também acredita no respeito ao espaço do outro: cada um tem que ter liberdade de ir para onde quiser, ter os amigos que quiser, sem ter sua vida e sexualidade controlados. “Mas somos muito inseguros, a partir do momento em que saímos do útero. Daí procuramos alguém que nos complete, preencha. Mas a única coisa que deveria importar para uma pessoa num relacionamento é se ela se sente amada e desejada, e não com quem o outro está transando”, afirma. É também o que Esther diz: é necessário ter capacidade de manter vida própria, ter atividades separadas, preservar a liberdade.
Para Esther, ter vida própria ajuda a manter a vontade de reconquistar o parceiro diariamente. Já Regina foca em outro aspecto: se no amor romântico só se tem olhos para o ser amado, ele tem que ser exclusivo. Logo, o problema não está na distância, e sim na exclusividade. Regina não acredita nessas mudanças de mentalidade “dentro dos limites do casamento”.
A estudiosa brasileira aponta, sim, uma mudança mais drástica, só que gradual. Menos pessoas vão querer se fechar numa relação a dois e mais gente vai optar por ter relações múltiplas. “O casamento vai mudar muito. Estamos no meio de um processo de mudança de mentalidade - os anseios, o comportamento, os desejos coletivos de cada época”, afirma a psicanalista. Regina lembra que, hoje, as pessoas exigem e valorizam a exclusividade, mas uma grande proporção delas tem casos extraconjugais. “Alguns estudos apontam inclusive que as mulheres transam fora do casamento quase na mesma proporção que os homens e já não sentem tanta culpa”, complementa a escritora.
Para Regina, uma relação extraconjugal não recebe o nome de traição. Trair seria decepcionar gravemente um amigo, um colega ou alguém da família, sem nada ter a ver com exclusividade amorosa e ciúme.
A sociedade somos nós
Para a autora, isso não quer dizer que toda relação monogâmica tradicional esteja fadada ao fracasso. “A grande vantagem do momento em que vivemos é que cada um pode escolher sua forma de viver. O que estou apontando não é a substituição de um modelo por outro”, pondera. “Nós somos afetados por muitos estímulos, o tempo todo. É natural sentir desejo por outras pessoas. Mas você tem a escolha sobre o que vai fazer com este desejo, se vai colocar em prática ou não. Isso depende de como você encara o desejo, o amor e o sexo”, explica a especialista.
Assim como Esther, ela acredita que a dependência do outro – principalmente a dependência emocional, a incapacidade de ficar sozinho – destrói o desejo e o tesão. Elas concordam que há necessidade de uma certa insegurança para manter o desejo do outro. Mas, enquanto Esther coloca que uma terceira pessoa não precisa existir concretamente, Regina não barra essa possibilidade.
A grande dificuldade, segundo a psicanalista brasileira, é que, desde criança, sempre tivemos que nos enquadrar em modelos, anulando nossa singularidade. As mulheres devem ser sensíveis. Os homens devem ser fortes. Todos devem desejar as mesmas coisas. “Os modelos tradicionais não dão respostas satisfatórias para todos. Isso abre espaço para a experiência de novas formas. Se existe desejo por outras coisas e pessoas e você os abandona por medo, está na hora de repensar. Por outro lado, se você não têm essa vontade ou a angústia, a relação com exclusividade poderá atendê-lo”, aponta a autora.
Condicionamento
Mas Regina enxerga sinais de que isso está mudando. “No meu blog, por exemplo, lancei recentemente a pergunta – você deseja fazer sexo a três? Se, há algumas décadas, o número de respostas afirmativas não passaria de 5% e há dez anos foi de 77%, nesta pesquisa o índice alcançou 85%. Outro exemplo são as casas de swingue, cada vez mais populares. Esses comportamentos desafiam o amor romântico”, explica Regina. “No futuro, meus tataranetos vão pensar: coitadinha da vovó, tinha um único parceiro para tudo”, brinca.
A psicanalista lembra que, em todas as épocas, há comportamentos díspares. “Em qualquer momento, encontramos aberrações. A Comissão de Direitos Humanos não propôs a cura gay?”, exemplifica.
Protagonismo
Para ela, assim como para Esther, a mudança de visão atinge homens e mulheres. “Em breve, as mulheres que acham que o homem deve pagar tudo serão minoria. Mas os homens também têm que se libertar do mito da masculinidade – homem não chora, homem não brocha, homem não tem sensibilidade – isso só traz sofrimento”, define. “Homens que já se libertaram desse ideal de força, sucesso e poder estão muito mais preparados para trocar afeto e ter uma relação sexual em nível de igualdade. O pior homem de cama é o homem machista, que vai para o sexo para provar que é macho reprodutor – está mais preocupado em mostrar suas ‘qualidades’ do que trocar prazer”, diz, taxativa. E completa: “a mulher precisa de mais sangue circulando e tempo para ter um orgasmo”.
Se, para Regina, daqui a 30/40 anos a maioria dos casais vai optar por relações abertas, o conceito de inteligencia erótica – dentro dos limites do casamento, como define Esther Perell – não é o caminho. “Não há inteligência nessa preocupação constante de seduzir o parceiro. Tem uma nova inteligência quem consegue ficar bem sozinho e para de buscar a segurança no outro. É inteligente quem está junto pelo prazer, não pela necessidade de ter alguém”, define.
Em seu consultório, a psicanalista tem visto um número cada vez maior de pessoas descobrindo que essa segurança é ilusória e indo atrás de novas paixões, na medida em que elas aparecem. “A ilusão da segurança pela exclusividade é primária, digna de uma criança de 5 anos. As relações podem ser ótimas, proporcionar um grande aprendizado de como dar e obter prazer. Mas é preciso ter coragem, abandonar o moralismo para fazer essa opção e ser feliz”, conclui a autora, casada pela terceira vez aos 63 anos – em uma relação sem exclusividade -, mãe de dois filhos e avó de uma menina. E que já foi acusada de ser contra o amor.
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