Quando o assédio sexual vira caso de polícia: mulheres coitadinhas ou mulheres sem voz?
Juristas debatem a vitimização e a necessidade de que as políticas públicas voltadas aos direitos da mulher considerem fatores além da violência
Letícia Orlandi - Saúde Plena
Valéria Mendes - Saúde Plena
Publicação:19/09/2013 09:03Atualização: 18/09/2013 15:07
Parte 3: Criminalização e vitimização: mulheres coitadinhas ou mulheres sem voz?
Passou no meio da rua, soltou um “linda” ou “gostosa”, a contravenção penal é denominada perturbação da tranquilidade e está descrita no artigo 65 da Lei de Contravenções Penais. “A pena é prisão simples de 15 dias a 2 meses”, afirma a especialista. Também entram nesse artigo os casos de colegas de trabalho – sem relação de superioridade – que ficam constrangendo a mulher com expressões, comportamentos e brincadeiras que a incomodam.
Enquete: Você acha que o assédio na rua tem que acabar?
“Passar a mão em uma mulher, em tese, não é crime nenhum. Agora, agarrar ou tentar beijar à força é crime de estupro, artigo 213 do Código Penal. Nesses casos, a mulher deve chamar a polícia e registrar um boletim de ocorrência”, recomenda. Silvana Lobo saliente que em casos assim é importante uma prova testemunhal já que esse comportamento violento – comum em grandes shows, boates e carnaval - não costuma deixar vestígios. Outra dica da especialista, é pedir cópia de circuito interno de boates, por exemplo.
Caso a mulher tenha ingerido bebido alcoólica, esse mesmo ato se agrava: estupro de vulnerável, artigo 217 A do Código Penal. Agora, se a “passadinha de mão” acontecer dentro do ônibus voltamos à contravenção penal intitulada perturbação da tranquilidade. “Se o homem agarra a mulher para passar a mão nela é que o Código Penal considera com estupro”, detalha.
Se ao invés de “linda”, a mulher ouvir palavras de baixo calão, que ofenda sua honra, sua dignidade e a faça se sentir humilhada, tem-se outro crime: o de injúria. Se for proferida a crianças ou adolescentes, é corrupção de menores.
Todas essas particularidades da lei servem para explicitar que a solução não passa pela punição, apesar de existir crime taxado no Código Penal para qualquer um dos tipos de assédio sexual cometido contra mulheres. A abordagem mais construtiva para a questão está na garantia dos direitos fundamentais do ser humano sem distinção de gênero, sem pressupor relação de superioridade do homem em relação à mulher, sem objetificação do corpo feminino e no respeito mútuo.
Para Juliana Jayme, a mudança acontecerá pelo aprendizado: “Como diz a filósofa estadunidense Judith Butler, o gênero é aprendido. Assim, é possível que se aprenda e se ensine relações de gênero - mas não só, também raciais, de classe, de orientação sexual - com base na igualdade. E isso é adquirido (e ensinado) na família, na escola, mas é preciso que haja comprometimento do Estado, de modo a não desqualificar ou banalizar a denúncia de um constrangimento sofrido por assédio no espaço público, por exemplo”.
Vulnerabilidade
Dierle Nunes chama a atenção para a necessidade de uma política pública de implementação plena dos direitos das mulheres, que vá muito além da questão criminal. “As políticas públicas se preocupam hoje apenas com o direito criminal e deixa o comportamento cotidiano de assédio enquadrado como algo natural. Pode até ser muito comum, mas natural não é”, defende.
Outro ponto para o qual o advogado chama a atenção é que as próprias mulheres alimentam seu status como objeto quando chamam de periguete e desqualificam aquela que se veste desta ou daquela maneira. “Isso induz o comportamento machista e reforça a banalização da violência contra a mulher. As próprias mulheres, muitas vezes, nem percebem que são vítima de uma enorme rede de preconceitos. Acabam se tolhendo e deixando de fazer várias coisas que são do seu direito. E quando houver essa percepção de forma bem disseminada, haverá uma possibilidade maior de mudar isso”, observa o professor.
Mas e a vitimização da mulher nessa história toda? “Olha, posso te falar até como professor, porque vejo que as mulheres têm muito mais chances de um grande êxito profissional em curto e médio prazo, por serem mais comprometidas. Não deixando de reconhecer que existem injustiças salariais no mercado de trabalho, mas isso é só um exemplo de que a mulher não é uma coitadinha e é perfeitamente capaz de conseguir o que quer. Dizer que a mulher é uma coitada é jogar por terra anos de luta do movimento feminista”, define o advogado.
“A vitimização precisa ser combatida, sim, mas neste caso é um problema de abordagem. Até a Lei Maria da Penha já foi alvo de questionamento sobre vitimização excessiva. A abordagem não deve ser pela visão da mulher coitadinha, e sim pelo direito fundamental de se manifestar, de se fazer ouvir e de se opor a comportamentos constrangedores, pelo direito de não sofrer preconceito. Não se pode fingir que nada está acontecendo diante do assédio, porque as coisas vão continuar exatamente como estão”, finaliza.
Saiba mais...
Do ponto de vista jurídico, a coordenadora do curso de Direito da Fumec e especialista em Direito Penal, Silvana Lobo afirma que não se pode misturar o assédio que acontece em espaço público daquele que se manifesta em ambiente de trabalho. “O crime de assédio sexual no âmbito da relação de serviço está previsto no artigo 216 A do Código Penal e pressupõe uma relação de superioridade entre o autor a vítima”, explica. A advogada diz que a abordagem que exige favorecimento, constrange a mulher ou a faz ter medo de perder o emprego é um comportamento grave digno de punição.- Assédio na rua: 'mimimi' de rede social ou violência contra a mulher?
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"As políticas públicas se preocupam hoje apenas com o direito criminal e deixa o comportamento cotidiano de assédio enquadrado como algo natural. Pode até ser muito comum, mas natural não é" - Dierle Nunes
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“Passar a mão em uma mulher, em tese, não é crime nenhum. Agora, agarrar ou tentar beijar à força é crime de estupro, artigo 213 do Código Penal. Nesses casos, a mulher deve chamar a polícia e registrar um boletim de ocorrência”, recomenda. Silvana Lobo saliente que em casos assim é importante uma prova testemunhal já que esse comportamento violento – comum em grandes shows, boates e carnaval - não costuma deixar vestígios. Outra dica da especialista, é pedir cópia de circuito interno de boates, por exemplo.
Caso a mulher tenha ingerido bebido alcoólica, esse mesmo ato se agrava: estupro de vulnerável, artigo 217 A do Código Penal. Agora, se a “passadinha de mão” acontecer dentro do ônibus voltamos à contravenção penal intitulada perturbação da tranquilidade. “Se o homem agarra a mulher para passar a mão nela é que o Código Penal considera com estupro”, detalha.
Se ao invés de “linda”, a mulher ouvir palavras de baixo calão, que ofenda sua honra, sua dignidade e a faça se sentir humilhada, tem-se outro crime: o de injúria. Se for proferida a crianças ou adolescentes, é corrupção de menores.
Todas essas particularidades da lei servem para explicitar que a solução não passa pela punição, apesar de existir crime taxado no Código Penal para qualquer um dos tipos de assédio sexual cometido contra mulheres. A abordagem mais construtiva para a questão está na garantia dos direitos fundamentais do ser humano sem distinção de gênero, sem pressupor relação de superioridade do homem em relação à mulher, sem objetificação do corpo feminino e no respeito mútuo.
Para Juliana Jayme, a mudança acontecerá pelo aprendizado: “Como diz a filósofa estadunidense Judith Butler, o gênero é aprendido. Assim, é possível que se aprenda e se ensine relações de gênero - mas não só, também raciais, de classe, de orientação sexual - com base na igualdade. E isso é adquirido (e ensinado) na família, na escola, mas é preciso que haja comprometimento do Estado, de modo a não desqualificar ou banalizar a denúncia de um constrangimento sofrido por assédio no espaço público, por exemplo”.
"É possível que se aprenda e se ensine relações de gênero - mas não só, também raciais, de classe, de orientação sexual - com base na igualdade. E isso é adquirido (e ensinado) na família, na escola, mas é preciso que haja comprometimento do Estado, de modo a não desqualificar ou banalizar a denúncia de um constrangimento sofrido por assédio no espaço público, por exemplo" - Juliana Gonzaga Jayme, professora do Programa de Ciências Sociais e da graduação em Ciências Sociais e Publicidade e Propaganda da PUC Minas
Dierle Nunes chama a atenção para a necessidade de uma política pública de implementação plena dos direitos das mulheres, que vá muito além da questão criminal. “As políticas públicas se preocupam hoje apenas com o direito criminal e deixa o comportamento cotidiano de assédio enquadrado como algo natural. Pode até ser muito comum, mas natural não é”, defende.
Outro ponto para o qual o advogado chama a atenção é que as próprias mulheres alimentam seu status como objeto quando chamam de periguete e desqualificam aquela que se veste desta ou daquela maneira. “Isso induz o comportamento machista e reforça a banalização da violência contra a mulher. As próprias mulheres, muitas vezes, nem percebem que são vítima de uma enorme rede de preconceitos. Acabam se tolhendo e deixando de fazer várias coisas que são do seu direito. E quando houver essa percepção de forma bem disseminada, haverá uma possibilidade maior de mudar isso”, observa o professor.
Mas e a vitimização da mulher nessa história toda? “Olha, posso te falar até como professor, porque vejo que as mulheres têm muito mais chances de um grande êxito profissional em curto e médio prazo, por serem mais comprometidas. Não deixando de reconhecer que existem injustiças salariais no mercado de trabalho, mas isso é só um exemplo de que a mulher não é uma coitadinha e é perfeitamente capaz de conseguir o que quer. Dizer que a mulher é uma coitada é jogar por terra anos de luta do movimento feminista”, define o advogado.
“A vitimização precisa ser combatida, sim, mas neste caso é um problema de abordagem. Até a Lei Maria da Penha já foi alvo de questionamento sobre vitimização excessiva. A abordagem não deve ser pela visão da mulher coitadinha, e sim pelo direito fundamental de se manifestar, de se fazer ouvir e de se opor a comportamentos constrangedores, pelo direito de não sofrer preconceito. Não se pode fingir que nada está acontecendo diante do assédio, porque as coisas vão continuar exatamente como estão”, finaliza.