Aparelhos dentários aplicados por amadores podem provocar até perda dos dentes
Febre dos aparelhos dentários por estética vem tomando conta do continente asiático há quatro anos e chega ao Brasil de forma perigosa
Lenne Ferreira - Revista Aurora - Diário de Pernambuco
Publicação:17/12/2013 09:00Atualização: 16/12/2013 09:39
Uma ponte estreita, sobre um canal poluído, leva até o pequeno barraco de alvenaria, sem reboco e sem janelas, formado por três vãos claustrofóbicos. O do meio é reservado para o atendimento odontológico: um banco de madeira e duas prateleiras improvisadas com o que restou de um armário —na parte de cima, uma pinça de sobrancelha e um alicate. Apenas uma lâmpada incandescente dá conta da iluminação. É ali que o menino franzino, de 17 anos, recebe diariamente seus clientes, a maioria adolescentes como ele, para aplicar aparelhos dentários, peças meramente estéticas, como dita a moda da vez.
O “consultório” descrito acima fica em Jardim São Paulo, mas instalações semelhantes se repetem em diversos bairros da Região Metropolitana do Recife. “Mago”, como preferiu ser identificado, o jovem responsável pelo atendimento, vive no próprio bairro, numa comunidade de baixa renda. Mal estudou e vive com irmãos e os pais numa casa à beira da linha ferroviária que liga as estações Wernerk e Santa Luzia. Desconfiado, topou conversar conosco num dos acessos que dá para o canal, perto da casa que usa para atender os clientes.
Ele conta que começou a aplicar os aparelhos dentários há três anos, depois que um vizinho apareceu com a novidade. “Eu o vi colocando e aprendi. É muito fácil”. Hoje, recebe de 5 a 10 clientes por dia e cobra R$ 35 por aplicação (da parte superior ou inferior). A manutenção fica por R$ 15. “Se cair alguma peça, reponho por R$ 5”. Em semana de “movimento bom”, dá para faturar uns R$ 500. Com o auxílio de um espelho, Mago aplicou seu próprio aparelho. “Uso porque gosto e para fazer a minha propaganda”.
Há pouco mais de dois meses, Dênis*, 13, realizou o sonho de exibir uma boca alaranjada. Ele mora na Vila São Miguel, em Afogados, e conseguiu autorização da mãe para a intervenção. Um amigo o levou até um homem conhecido como Gil, que trabalha como entregador de mercadorias. À noite e nos finais de semana, garante renda extra aplicando aparelhos. Segundo Dênis, Gil cobrou R$ 40 pela aplicação dos brackets (peças de aço por onde passa o fio) nos 10 dentes superiores. O jovem quer mais. Já começou a juntar dinheiro para “decorar” o resto da boca até o final do ano. A única orientação que recebeu foi sobre “não comer coisas resistentes, para as peças não caírem”. Quando isso acontece, a cola utilizada na fixação dos brackets fica exposta e “só sai se raspar”.
Nathalia, 17, é casada com Gil, com quem tem um filho de 2 anos, e também exibe um aparelho odontólogico. O dela foi colocado numa clínica especializada há dois anos e a manutenção é feita pelo companheiro. Na clínica, custava R$ 40. Com Gil, é de graça. “Ele troca o ferro e a cor das ligas e eu não pago nada”. O casal vive numa casa simples de dois cômodos, separados por uma cortina florida, onde ele atende os clientes. O movimento é constante. “Eu costumo ir para a casa da minha mãe (que é nossa vizinha), porque aqui fica cheio de homem”, diz Nathalia (quando conversamos com ela, o marido estava fora. Marcamos de retornar no início da noite, mas ele não quis nos receber).
No Barro, bairro vizinho, funciona um dos “consultórios” mais procurados da região. Diariamente, uma fila de espera se forma na porta da casa de dois andares. Quando visitamos o local, quatro pessoas aguardavam, enquanto um jovem era atendido. O garoto estava lá para fazer a manutenção do aparelho: com uma espécie de gancho, o dono do negócio raspava o dente do rapaz. Assim como Gil, ele se recusou a dar entrevista e insistiu em não ser identificado. O motivo é claro: o artigo 282 do Código Penal Brasileiro enquadra como crime o “exercício, ainda que a título gratuito, da profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal”. A pena prevista é de seis meses a dois anos de detenção em regime fechado. “Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa”.
O Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco (CRO-PE) conta com apenas três fiscais para todo o estado. Neste ano, apenas duas mulheres foram presas por exercer o ofício de dentista sem qualificação. Um atuava em Santa Maria da Boa Vista, no Sertão, e a outra, em Pontezinha, na RMR. “Recebemos as denúncias e informamos à Polícia Civil e à Vigilância Sanitária. Muitas vezes as pessoas acreditam que estão sendo atendidas por profissionais habilitados”, disse o presidente do CRO-PE, Rogério Zimmermann. “São necessários sete a oito anos de estudo (incluindo a graduação) para que um profissional tenha qualificação suficiente para atuar como cirurgião dentista”.
A febre dos aparelhos dentários por estética vem tomando conta do continente asiático há quatro anos. Em países como Tailândia, China e Indonésia, os aparelhos, conhecidos como “behel”, viraram símbolo de status entre os jovens. Popstars como o indonésio Andika Kangen e a cantora Earn the Star aderiram à moda. No entanto, a morte de duas jovens na Tailândia fez com que o governo do país proibisse o uso do acessório. Entre as vítimas estava uma adolescente de 17 anos, da cidade de Khon Kaen, nordeste do país, que teve uma infecção na tireoide por conta de um encaixe malfeito, que causou insuficiência cardíaca fatal. A outra garota, de 14 anos, de Chonburi, morreu depois de usar aparelhos que comprou numa loja ilegal.
Por aqui, não se sabe ao certo quando e como a moda pegou. “Foi a galera de Casa Amarela”, dizem alguns. Beberibe, Olinda e Cabo também são citados como precursores. O fato é que a onda se espalhou. Mago foi o responsável pela aplicação do aparelho dentário do próprio irmão, José*, de 15 anos, há nove meses. Também o ensinou a aplicar, mas o jovem prefere atuar apenas como auxiliar. Desde que passou a exibir o sorriso de aço, José vem sofrendo com dores nos dentes. “No começo, sentia alguns deles moles. Mas, até agora, não caiu nenhum”. A sorte não foi a mesma de uma conhecida sua, que teve os dois incisivos frontais estragados. “Se ela escovasse direito, não teria acontecido”, justificou José, logo emendando com outro exemplo malsucedido. “Teve um colega meu que engoliu uma peça quando estava comendo. Mas conseguiu vomitar”.
Todos os usuários entrevistados se queixaram de dificuldade para se alimentar, manter os dentes higienizados e pequenos arranhões nos lábios. No futuro, esse preço pode ser ainda mais alto, alerta o presidente do CRO-PE, Rogério Zimmermann. “Para colar um bracket é preciso ter conhecimento sobre o posicionamento correto. Por mais que eles não coloquem o anel (para a sustentação do aparelho), a aplicação dos ferros faz com que os dentes se movimentem”. Como consequência, dentes tortos, manchas, trincas, infecções nas gengivas e perda definitiva de alguns dentes.
Os equipamentos encontrados nesses consultórios deveria ser de uso exclusivo de profissionais da área, mas podem ser adquiridos por qualquer pessoa em algumas lojas. “Também tem dentista formado que compra e repassa o material”, diz Anderson*, morador de Caixa D’Água, que aplica aparelhos dentários desde 2011 e guarda seu material de trabalho em uma sacola de plástico no guarda-roupa. Recentemente, gastou cerca de R$ 270 com um modelo de porcelana para a própria boca.
Procuramos uma loja indicada por ele, a Alta Dental, na Rua Siqueira Campos, no Centro do Recife, onde vários adolescentes eram atendidos no balcão. Uma das vendedoras informou os preços solicitados: conjunto de brackets (R$ 18), ferro ortodôntico (R$ 2,50, a unidade), elástico ligadura (R$ 2, a fileira com 10) e cola (R$ 75). “Só não aceitamos cartão, senhora”.
Rogério Zimmermann, do CRO-PE, diz que, por enquanto, não há como proibir as lojas de comercializar os produtos. “Estamos trabalhando junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária para ver se é possível baixar uma resolução que vete a venda para quem não é cirurgião dentista”. Ele afirmou que, a curto prazo, o Conselho vai promover reuniões com os donos das lojas para conscientizá-los sobre os perigos de comercializar esse tipo de produto para amadores.
Em alguns casos, a situação é ainda mais grave. Amadores costumam usar fios telefônicos ou de computador no lugar dos fios vendidos nas lojas. Os equipamentos para aplicar as peças são reutilizados em várias pessoas, sem esterilização. Também não se usam luvas. “O Conselho não dá conta de todas as campanhas educativas necessárias. O Estado tem de entrar nessa luta também. Se essa moda tomar maiores proporções, vai acabar virando um problema de saúde pública”, alerta o presidente do CRO-PE. Denúncias podem ser feitas por meio do site do órgão (www.cro-pe.org.br) ou pelo telefone 3194-4900. Em Minas Gerais, o telefone é (31)2104-3000 e o site é www.cromg.org.br.
Amadores costumam usar fios telefônicos ou de computador no lugar dos fios vendidos nas lojas. Os equipamentos para aplicar as peças são reutilizados em várias pessoas, sem esterilização
O “consultório” descrito acima fica em Jardim São Paulo, mas instalações semelhantes se repetem em diversos bairros da Região Metropolitana do Recife. “Mago”, como preferiu ser identificado, o jovem responsável pelo atendimento, vive no próprio bairro, numa comunidade de baixa renda. Mal estudou e vive com irmãos e os pais numa casa à beira da linha ferroviária que liga as estações Wernerk e Santa Luzia. Desconfiado, topou conversar conosco num dos acessos que dá para o canal, perto da casa que usa para atender os clientes.
Ele conta que começou a aplicar os aparelhos dentários há três anos, depois que um vizinho apareceu com a novidade. “Eu o vi colocando e aprendi. É muito fácil”. Hoje, recebe de 5 a 10 clientes por dia e cobra R$ 35 por aplicação (da parte superior ou inferior). A manutenção fica por R$ 15. “Se cair alguma peça, reponho por R$ 5”. Em semana de “movimento bom”, dá para faturar uns R$ 500. Com o auxílio de um espelho, Mago aplicou seu próprio aparelho. “Uso porque gosto e para fazer a minha propaganda”.
Mago aplicou o próprio aparelho. Ele atende cerca de 5 a 10 clientes por dia e chega a faturar R$ 500 em uma semana
Nathalia, 17, é casada com Gil, com quem tem um filho de 2 anos, e também exibe um aparelho odontólogico. O dela foi colocado numa clínica especializada há dois anos e a manutenção é feita pelo companheiro. Na clínica, custava R$ 40. Com Gil, é de graça. “Ele troca o ferro e a cor das ligas e eu não pago nada”. O casal vive numa casa simples de dois cômodos, separados por uma cortina florida, onde ele atende os clientes. O movimento é constante. “Eu costumo ir para a casa da minha mãe (que é nossa vizinha), porque aqui fica cheio de homem”, diz Nathalia (quando conversamos com ela, o marido estava fora. Marcamos de retornar no início da noite, mas ele não quis nos receber).
No Barro, bairro vizinho, funciona um dos “consultórios” mais procurados da região. Diariamente, uma fila de espera se forma na porta da casa de dois andares. Quando visitamos o local, quatro pessoas aguardavam, enquanto um jovem era atendido. O garoto estava lá para fazer a manutenção do aparelho: com uma espécie de gancho, o dono do negócio raspava o dente do rapaz. Assim como Gil, ele se recusou a dar entrevista e insistiu em não ser identificado. O motivo é claro: o artigo 282 do Código Penal Brasileiro enquadra como crime o “exercício, ainda que a título gratuito, da profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal”. A pena prevista é de seis meses a dois anos de detenção em regime fechado. “Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa”.
O Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco (CRO-PE) conta com apenas três fiscais para todo o estado. Neste ano, apenas duas mulheres foram presas por exercer o ofício de dentista sem qualificação. Um atuava em Santa Maria da Boa Vista, no Sertão, e a outra, em Pontezinha, na RMR. “Recebemos as denúncias e informamos à Polícia Civil e à Vigilância Sanitária. Muitas vezes as pessoas acreditam que estão sendo atendidas por profissionais habilitados”, disse o presidente do CRO-PE, Rogério Zimmermann. “São necessários sete a oito anos de estudo (incluindo a graduação) para que um profissional tenha qualificação suficiente para atuar como cirurgião dentista”.
Dênis, 13 anos, pagou R$ 40 pelo sorriso alaranjado e está economizando para 'decorar' o resto da boca
Por aqui, não se sabe ao certo quando e como a moda pegou. “Foi a galera de Casa Amarela”, dizem alguns. Beberibe, Olinda e Cabo também são citados como precursores. O fato é que a onda se espalhou. Mago foi o responsável pela aplicação do aparelho dentário do próprio irmão, José*, de 15 anos, há nove meses. Também o ensinou a aplicar, mas o jovem prefere atuar apenas como auxiliar. Desde que passou a exibir o sorriso de aço, José vem sofrendo com dores nos dentes. “No começo, sentia alguns deles moles. Mas, até agora, não caiu nenhum”. A sorte não foi a mesma de uma conhecida sua, que teve os dois incisivos frontais estragados. “Se ela escovasse direito, não teria acontecido”, justificou José, logo emendando com outro exemplo malsucedido. “Teve um colega meu que engoliu uma peça quando estava comendo. Mas conseguiu vomitar”.
Todos os usuários entrevistados se queixaram de dificuldade para se alimentar, manter os dentes higienizados e pequenos arranhões nos lábios. No futuro, esse preço pode ser ainda mais alto, alerta o presidente do CRO-PE, Rogério Zimmermann. “Para colar um bracket é preciso ter conhecimento sobre o posicionamento correto. Por mais que eles não coloquem o anel (para a sustentação do aparelho), a aplicação dos ferros faz com que os dentes se movimentem”. Como consequência, dentes tortos, manchas, trincas, infecções nas gengivas e perda definitiva de alguns dentes.
Nathalia, 17 anos, é casada com Gil, que aplica aparelhos: 'Ele troca o ferro e a cor das ligas e eu não pago nada'
Procuramos uma loja indicada por ele, a Alta Dental, na Rua Siqueira Campos, no Centro do Recife, onde vários adolescentes eram atendidos no balcão. Uma das vendedoras informou os preços solicitados: conjunto de brackets (R$ 18), ferro ortodôntico (R$ 2,50, a unidade), elástico ligadura (R$ 2, a fileira com 10) e cola (R$ 75). “Só não aceitamos cartão, senhora”.
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Vizinha ao estabelecimento está a Dentina, especializada em material protético (para prótese dentária), mas que acaba sendo muito procurada por quem aplicou aparelho dentário. Uma funcionária, que pediu para não ser identificada, disse que recentemente apareceu uma adolescente desesperada pedindo indicação de produtos para remover manchas nos dentes, causadas pela cola de um aparelho. “Eu a orientei a procurar o dentista responsável pela aplicação, mas ela disse que não tinha feito com um dentista”, conta.- Neuralgia do trigêmeo provoca dor insuportável e é confundida com enxaqueca e problema nos dentes
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Rogério Zimmermann, do CRO-PE, diz que, por enquanto, não há como proibir as lojas de comercializar os produtos. “Estamos trabalhando junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária para ver se é possível baixar uma resolução que vete a venda para quem não é cirurgião dentista”. Ele afirmou que, a curto prazo, o Conselho vai promover reuniões com os donos das lojas para conscientizá-los sobre os perigos de comercializar esse tipo de produto para amadores.
Em alguns casos, a situação é ainda mais grave. Amadores costumam usar fios telefônicos ou de computador no lugar dos fios vendidos nas lojas. Os equipamentos para aplicar as peças são reutilizados em várias pessoas, sem esterilização. Também não se usam luvas. “O Conselho não dá conta de todas as campanhas educativas necessárias. O Estado tem de entrar nessa luta também. Se essa moda tomar maiores proporções, vai acabar virando um problema de saúde pública”, alerta o presidente do CRO-PE. Denúncias podem ser feitas por meio do site do órgão (www.cro-pe.org.br) ou pelo telefone 3194-4900. Em Minas Gerais, o telefone é (31)2104-3000 e o site é www.cromg.org.br.
* Nomes trocados a pedido dos entrevistados