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Rotina excessivamente tecnológica pode dissolver laços familiares

Perceber que algo está errado é o primeiro passo para propor mudanças, mas alterações abruptas e impostas de forma autoritária podem trazer mais prejuízos que benefícios

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Publicação:26/01/2014 08:00Atualização:25/01/2014 15:28
Eduarda e Luca, fihos de Geraldo e Jaqueline Cantero, adoram andar de bicicleta. Os pais acabaram tornando o passeio um hábito na família (Euler Júnior/EM/D.A Press)
Eduarda e Luca, fihos de Geraldo e Jaqueline Cantero, adoram andar de bicicleta. Os pais acabaram tornando o passeio um hábito na família

Estabelecer limites, horários, políticas de uso e promover atividades livres de redes sociais e de jogos eletrônicos são algumas medidas que devem ser implantadas em casa para evitar a dissolução completa das relações entre pais e filhos. “Se essa rotina não for contornada, a separação no médio e longo prazo promoverá a perda da essência da família, que é o nosso primeiro modelo de sociedade”, alerta o psicólogo Davi Castelo Branco Avelar, especializado em psicopedagogia. As consequências, portanto, vão além do afastamento dentro do ambiente doméstico. “Se vivermos em um modelo de família mais fria e impessoal, esse vai ser nosso modelo-base para as demais relações interpessoais”, acrescenta Davi.

 

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Novas tecnologias resultam em menos convivência entre pais e filhos

A própria personalidade e comportamento serão determinados pelo exemplo de convivência em casa. “O foco dessas pessoas viciadas em distrações eletrônicas é cada vez mais difuso e dividido. Perde-se também a capacidade de observar detalhes e perceber determinadas situações no entorno”, observa Davi. Sem capacidade de notar as outras pessoas, aspectos importantes da vida em comunidade, como a própria solidariedade, ficam comprometidos. “Sem contar outros transtornos que não estão diretamente relacionados a essa rotina, mas que também são estimulados. Entre eles, o transtorno de déficit de atenção, hiperatividade e atenção difusa”, pondera o psicólogo.

Perceber que algo está errado é o primeiro passo para propor mudanças. “As pessoas vão se perdendo sem que tenham consciência. Quando se dão conta, as relações com a família já esfriaram e estão distanciadas”, observa a psicóloga Marina Reis, especializada em relações familiares e professora da Newton Paiva. Para muitos pais, a situação parece estar fora de controle e não haver mais volta. Mas é preciso ter firmeza e determinação para contornar essa realidade. “Devem ser feitos acordos dentro da família em que se perde um pouco, mas também existe o ganho. Todos têm que ser beneficiados e, de alguma forma, ceder por outro lado. É preciso deixar claro que ninguém faz sempre somente aquilo que quer”, afirma Marina.

PASSO A PASSO

Mudanças abruptas e impostas de forma autoritária podem trazer mais prejuízos que benefícios. Por isso, o ideal é que qualquer proposta de mudança seja muito bem conversada e ocorra em etapas. “Propor novas experiências, como fazer uma receita culinária juntos, ir ao cinema e outras tarefas que excluam as tecnologias, é um passo importante”, aconselha Marina. O resultado pode ser muito positivo, mas não serão raros os casos em que a experiência pode não agradar a todos. O importante é não desistir e continuar procurando atividades coletivas que sejam de interesse comum da família.

Reunir-se em torno da mesa de jantar sem que os smartphones estejam a tiracolo é outra regra simples que obriga a interação interpessoal. No caso extremo, em que a família não consegue estabelecer conexões por conta própria, vale recorrer à ajuda de um profissional. “Ele poderá orientar sobre as atitudes que poderão ser tomadas, inclusive com a possibilidade de estabelecer um tempo juntos todos os dias”, explica Marina. O ideal mesmo é que a convivência não seja alvo de obrigação e se torne um hábito prazeroso.

Smartphone virou até marchinha

A necessidade incessante de disputar atenção com os tablets e smartphones virou até tema de marchinha de carnaval. A marchinha do smartphone está concorrendo no Concurso de Marchinhas Mestre Jonas e já começa colocando o dedo na ferida: “Vê se tira o olho desse smartphone e dá um sorriso pra mim. Caso contrário, não leve a mal, eu vou sozinho para o carnaval.” A composição ainda aborda uma prática diária cada vez mais comum. “Quando começa a manhã, você checa as fotos no Instagram. Não presta atenção no meu look, amor desgruda desse Facebook.” E para fechar, reconhece o drama de ter que implorar por carinho. “Sei que as redes sociais são muito legais, são sensacionais, mas meu bem eu imploro carinho, fica off-line só um segundinho.”

Como fisgar a atenção
As intervenções devem começar cada vez mais cedo. Segundo pesquisa do centro americano de estudos sobre os meios de comunicação, Common Sense Media, realizada no ano passado, 38% das crianças com menos de 2 anos já utilizam alguma mídia digital, contra 10% em 2011. Entre os pequenos de 5 a 8 anos, esse percentual chega a incríveis 83%.

A consultora comercial Jaqueline Lourenço Amorim Cantero, de 46 anos, e o marido, Geraldo Cantero, de 49, souberam como fisgar a atenção dos filhos Luca, de 10, e Eduarda Amorim Canteiro, de 7. Fãs de bicicleta, sempre que podem eles andam juntos, aproveitam para jogar vôlei e peteca na rua ou se divertir com jogos de tabuleiro em casa. “Pelo menos uma vez na semana jogamos juntos e é uma festa. Damos boas risadas e aproveitamos para conversar sobre o dia a dia”, conta Jaqueline.

Ao longo deste mês, Luca conheceu um jogo eletrônico apresentado pelo primo. Diante dos primeiros sinais de vício, os pais intervieram. “Ele ficou dois dias inteiros por conta desse jogo. Não comia mais com a gente, não atendia os nossos pedidos e nem sequer nos escutava. Chegou a ficar sem escovar dente para ficar na frente do computador”, lembra Jaqueline.

Em uma conversa franca, ela e Geraldo mostraram para o filho que aquela postura não era correta e que o limite diário que poderia se dedicar ao jogo eletrônico durante as férias seria de apenas duas horas. “Ele entendeu o recado e, por conta própria, resolveu deletar o jogo. Essa resposta consciente e sábia é um reflexo do contato próximo que temos com nossos filhos sempre baseada na conversa”, afirma.

Jaqueline tem consciência de que essa proximidade os tornará adultos melhores. “Eles têm uma percepção do mundo, sabem que têm outras pessoas que participam de sua vida e não vivem no automático, como é comum entre as crianças que estão sempre conectadas”, reconhece Jaqueline.

A troca de olhares, abraços e beijos e o próprio ato de brincar são imprescindíveis para a formação do caráter e para o desenvolvimento cognitivo das crianças. “A tecnologia ainda não conseguiu substituir isso”, reconhece a psicóloga Marina Reis.



Desconexão entre si

“Vemos um rápido desenvolvimento de relacionamentos que não passam pela palavra. É tudo rapidíssimo: o encontro romântico se transforma em apenas ficar e o encontro de família também num ficar, cada um na sua. Essa é a essência do laço social de nossa época. Todos ligados, cada um na sua. Assim, a família unida ganha novo lugar: todos conectados no mundo e desconectados entre si. É verdade que os recursos tecnológicos e as relações virtuais estão ocupando os espaços familiares e afetivos. Como reverter esse fenômeno tão atual e presente? Talvez retomando o princípio da semelhança de Hipócrates, as substâncias têm a potencialidade de curar os mesmos sintomas que são capazes de produzir. Usemos a criatividade. Mais que nunca, é preciso inventar.”

Gilda Paoliello - psiquiatra e psicanalista

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