É alto o número de jovens com HIV que não aderem ao tratamento
A decisão deixa o vírus mais ativo no corpo, aumentando o risco do surgimento de doenças oportunistas, e os torna mais propensos a infectar outras pessoas
Pesquisa publicada no início deste mês na revista científica Jama Pediatrics afirma que quase metade dos adolescentes e jovens adultos norte-americanos infectados pelo HIV atrasam o início do tratamento até que a doença tenha avançado. “Essas descobertas são decididamente decepcionantes e reforçam a necessidade de desenvolver melhores formas de diagnosticar adolescentes mais cedo e, tão importante quanto, de tê-los sob terapia mais cedo”, preocupa-se o investigador principal, Allison Agwu, especialista em doenças infecciosas e HIV no Centro Infantil do Hospital Johns Hopkins (EUA). Agwu e a equipe liderada por ele analisaram os registros de cerca de 1.500 jovens, com idade entre 12 e 24 anos, infectados com o HIV e atendidos entre 2002 e 2010 em 13 clínicas do país.
Os pesquisadores consideram as descobertas particularmente preocupantes frente às evidências de que o início do tratamento o mais cedo possível pode ser um caminho, mesmo que longo, de manter o vírus sob controle. “É importante para evitar danos cardiovasculares, renais e neurológicos característicos da infecção pelo HIV mal controlada ao longo do tempo”, reforça Agwu.
Entre 30% e 45% dos jovens pesquisados procuraram tratamento quando a doença havia atingido estágio avançado, definido como a contagem de células CD4 — de defesa do corpo — abaixo de 350 por milímetro cúbico de sangue. As células CD4 são alvo favorito de HIV e sentinelas mais bem treinadas do sistema imunológico contra a infecção. O esgotamento ou a destruição delas torna os indivíduos mais vulneráveis a uma ampla gama de organismos bacterianos, virais e fúngicas. Esses fatores não causam doenças em pessoas saudáveis, mas podem levar a infecções graves com risco de vida em pessoas que têm o sistema imunológico comprometido, como as soropositivas.
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“Queria ser normal”
A explicação para o fenômeno que surpreende pesquisadores e se repete em outros países não é certeira. A combinação de substâncias fortes que devem ser ministradas diariamente e, em muitos casos, mais de uma vez causa, no mínimo, incômodo aos indivíduos em qualquer idade. Os efeitos colaterais imediatos à ingestão variam entre enjoo, vômito, dor de cabeça, inflamação estomacal, forte gosto amargo na boca e desânimo. O impacto não é somente físico. A exposição que sofre o paciente que engole cápsulas grandes duas vezes ao dia gera perguntas e, como consequência, o preconceito e o isolamento. A angustiante rotina é agravada pelos questionamentos e desejos comuns da adolescência.
“No começo, eu não quis aceitar. Queria ser normal, igual a todo mundo e decidi que não tomaria (os medicamentos). Eu não aceitava a doença que eu tinha. Muita gente conversou comigo e eu voltei para o meu bem”, relata Giovana*, 17 anos. O HIV foi transmitido a ela de maneira vertical, pela mãe soropositiva durante a gestação ou o parto. “De vez em quando, paro de tomar porque eu ainda não aceito. Eu olho para as minhas amigas, as vejo fazendo tudo e eu aqui. Não dou conta de aceitar.” As falhas no tratamento começaram por volta dos 13 anos, quando Giovana compreendeu a dimensão e o significado de carregar consigo o traiçoeiro inimigo. Mesmo tendo tomado o coquetel corretamente até então, o contra-ataque arquitetado pelo vírus foi avassalador.
Hoje, Giovana tem dificuldade na fala e precisa do auxílio de um andador para se locomover. O corpo magro está repleto de manchas que surgiram como consequência do ataque viral. “Quando eu paro (de tomar os antirretrovirais), me sinto muito mal e não dou conta de fazer nada. Fico desarrumada e decido que está na hora de tomar de novo. Tomo, fico quietinha uns dois dias e melhoro”, relata. A jovem, neste ano, não frequentará o ensino médio por temer a reação dos outros jovens. “Estava estudando, mas acho que as pessoas tinham muito preconceito comigo porque me deixavam de lado. Ninguém queria brincar comigo, me sentia muito só. Acho que, por isso, fiquei muito depressiva.”
Ela também atribui a baixa emocional à morte do pai, que faleceu há pouco mais de um ano em decorrência dos agravamentos da Aids. A mãe, Sílvia*, 38 anos, foi infectada aos 18, mas só fez o exame que confirmou a sorologia no dia em que Giovana nasceu. O primeiro filho do casal não tem o vírus. “Eu era muito jovem e, mesmo sabendo que ele era soropositivo, não procurei fazer o exame.” Ela acredita que a tendência da maioria dos soropositivos é esconder a condição. “A pessoa acaba entrando em depressão porque se vê sozinha. Quando esconde, exclui os amigos, a família. Ela se vê diferente de todos, como se fosse um extraterrestre.”
Sob controle
Não se trata exatamente da erradicação da doença porque o vírus permanece no sangue do paciente, mesmo que em quantidades mínimas e quase indetectáveis. Porém, o próprio sistema imunológico é capaz de controlar sozinho a multiplicação do vírus, impedindo que qualquer sintoma se manifeste.
Medo de serem identificados
O segredo faz parte da vida da grande maioria dos soropositivos. A exposição indesejada e o preconceito são duas grandes barreiras para que a pessoa infectada possa discutir a condição dela abertamente com familiares, amigos, no ambiente de trabalho ou mesmo com o(a) companheiro(a). A consequência desse temor também pode ser motivo de interrupção da terapia. Segundo a pesquisadora do Grupo de Estudos em Educação e Relação de Gênero, da Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Jeane Félix, uma das grandes preocupações do jovem soropositivo é adquirir a aparência física clássica do portador, com rosto e corpo muito magro, ou mesmo feições que o vincule à doença, como a lipodistrofia. “É um medo geral porque não querem ser identificados.”
Félix dedicou um dos capítulos da tese de pós-doutorado ao significado para o adolescente de tomar antirretrovirais, os efeitos do medicamento na vida deles e as estratégias utilizadas para tomar a medicação quando a família não sabe do diagnóstico. Alguns trocavam o frasco do remédio e o substituíam por potes de vitaminas para a prática de exercícios físicos, por exemplo. “Em relação às mudanças no corpo, ouvi bastante o medo de sofrer preconceito, discriminação em virtude da soropositividade ou de ser abandonado pela família ou pelo companheiro.”
Outra característica reparada pela pesquisadora foi a forma efêmera com que os jovens lidam com o tempo. Era mais presente neles a vontade de viver o agora e de não pensar em sintomas que poderiam surgir em 10, cinco anos ou mesmo nunca. “Ouvi de muitos jovens: ‘enquanto não aparecer nenhum sintoma, nenhuma dor, infecção oportunista, nada que me obrigue a tomar o medicamento, eu não vou tomar mesmo’”, relata.
Os pacientes de transmissão vertical tendem a apresentar outro tipo de característica. Jeane Félix conta a história de um soropositivo com cerca de 20 anos que decidiu parar o tratamento usando a justificativa de que tinha passado a vida inteira tomando o coquetel e que queria saber como viveria sem essa obrigação diária. “O caso interessante de um menino totalmente informado que burla aquela história de que as pessoas têm falta de informação e, por isso, não tomam a medicação”, classifica. Poucos meses depois, ele precisou voltar à terapia devido ao agravamento dos sintomas. (BS)
Consequência estética
É uma anormal distribuição de gordura corporal. Pode ocorrer aumento de gordura na região do abdômen/ventre, entre os ombros, em volta do pescoço ou no tórax (especialmente em mulheres) ou perda de gordura da pele, mais aparente nos braços, nas pernas, nas nádegas e no rosto, resultando em enfraquecimento da face, atrofiamento das nádegas e em veias aparentes nas pernas e nos braços.
Também no Brasil
Estudos divulgados no segundo semestre do ano passado pelo Instituto Emílio Ribas (SP) e o Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (RJ) mostram que um a cada cinco jovens abandona a terapia anti-HIV. A atitude dificulta o controle da doença, compromete o tratamento e aumenta o risco de resistência à medicação. A toxicidade dos medicamentos e os efeitos colaterais são os principais motivos apresentados pelos 581 entrevistados, seguidos de problemas psicológicos — especialmente a depressão — e esquecimento. Os dados foram levantados com adolescentes que estão em tratamento e têm entre 12 e 17 anos e também mostram que 20% dos jovens não fazem o tratamento regularmente, faltando a consultas e ingerindo os remédios incorretamente.
Falso vigor
“A dificuldade é a de todos os adolescentes, indivíduos que acham que nada vai acontecer com eles. Quando você observa um jovem de transmissão vertical que nunca teve nada, que tem uma convivência social, às vezes, tomar remédio, para ele, é algo que atrapalha. Ele tem medo dos efeitos colaterais, que também podem revelar a existência do problema. A adolescência é uma época mágica, de saúde e vigor. Pensam: tudo bem, tenho HIV, mas eu não vou ficar doente. A grande questão é que ele está doente, mas continua adolescente.”
Marinella Della Negra, infectologista do Instituto Emílio Ribas, vinculado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo