Mulher não é obrigada a ser multitarefa, mas é cobrada por isso
Se as mulheres mantiverem a postura de que devem assumir várias funções, continuarão acumulando responsabilidades e criando expectativas como a de obrigatoriamente serem mães
Carolina Cotta - Estado de Minas
Publicação:02/03/2014 10:17Atualização: 02/03/2014 10:31
Mas no lado oposto dessa expectativa social e dessa fisiologia começa a ganhar força a possibilidade de escolha. Na atualidade, as mulheres já podem escolher entre ser ou não ser mães, embora sigam sendo questionadas sobre isso. Essa mudança é resultado de uma transformação social. “Vivemos em uma era narcisista, hedonista e individualista. Essa é a marca dos novos tempos e é ela que permite à mulher confrontar essa questão”, explica. Elisabeth Badinter é uma das autoras a se debruçar sobre o papel da mãe. Segundo a historiadora francesa, em uma civilização em que o eu primeiro é elevado a um princípio, a maternidade é um desafio, quiçá uma contradição.
As mulheres de hoje têm a possibilidade de traçar seu destino. A funcionária pública Anya Campos, de 38 anos, seria o orgulho da avó se ela ainda estivesse lúcida. Foi dela que ouviu por toda a vida: “Não dependa de um homem”. Segundo Anya, o sonho de ser atriz de revista foi substituído por um casamento obrigado. “Ela não queria ter casado, não queria ter tido filhos. Falou sobre isso com todas as minhas primas, mas só eu penso como ela”, conta Anya, que nunca teve dúvidas sobre a decisão tomada ainda na infância. “Nunca tive esse sonho de ser mãe. Tinha um sonho considerado masculino: não depender de ninguém, ser independente. Também nunca pensei em me casar, meus sonhos eram profissionais.”
Mas ela se casou e é superfeliz. Como era importante para o marido, há sete anos aceitou que se seguisse o figurino. Não cuidou de absolutamente nada, passou a tarefa toda para a mãe: ela sim tinha sonhado com o casamento da única filha mulher. O marido teria o filho se ela quisesse, mas deixou que Anya decidisse por achar que o encargo maior realmente fica para a mulher. “Acho que se tivesse um filho com ele até seria legal. Ele me ajudaria a tomar conta da casa e a cuidar da criança. Mas tenho meus ganhos em não ser mãe. Não queria ter ninguém dependendo de mim. Isso me dá liberdade. Não preciso ser um modelo para ninguém. Posso viver minha vida do jeito que acho certo.”
Anya não está livre, entretanto, da cobrança sobre a maternidade. As pessoas a questionam a todo tempo. “Elas falam: ‘Ainda dá tempo. Por que não?’ Olham para mim como se minha vida fosse vazia só porque não fui mãe. Fico sendo a bruxa do pedaço. As pessoas mais próximas já não dizem nada, mas é uma cobrança que vem até do moço da padaria, que nem me conhece. Sou bem resolvida em relação a isso. Gosto do rumo que minha vida tomou. Sou o que queria ser. Às vezes, penso que as coisas estão melhorando, em outros momentos vejo a sociedade dando passos para trás. É como se não dessem conta dessa nossa tomada de poder.”
CULPA
Para Renata Feldman, há uma normatividade no ser mãe. “As mulheres de hoje crescem aprendendo que precisam estudar, casar, construir uma carreira e ter filhos. Não passa outra coisa pela cabeça. Na clínica vemos várias mulheres esgotadas e frustradas por não darem conta de tudo sozinhas. Aí vem a culpa”, explica. Uma mudança desse modelo, entretanto, depende das próprias mulheres. Para Marlise Mattos, as mulheres continuam a ser as principais responsáveis pelo cuidado com os filhos, a família e a educação porque sentem poder em dominar esse espaço privado. Como se não pudessem ter esse poder no espaço público, valorizam o poder que têm dentro de casa.
Assim, se o marido ajuda a trocar a fralda do bebê e não fica certo, elas reforçam que ele não sabe fazer aquilo. Se ele cozinha e erra a mão também são criticados. As próprias mulheres estariam, na opinião de Marlise, impedindo que os homens se sintam bem nesse universo. “As mulheres estão com a faca e o queijo na mão. Se continuarem valorizando essa ideia de que são multitarefas, continuarão acumulando responsabilidades. É preciso uma tomada de consciência. As mães têm, na educação dos filhos, meninos ou meninas, a possibilidade de ensinar sobre as novas relações de gênero, menos tradicionais. Menina não tem que estar ligada ao cuidado, à casa. Meninos não precisam estar ligados à agressividade, à rua. Essa lição tem que vir até os 4 anos.”
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Mulher e mãe: uma associação histórica. Ao longo da humanidade, a maternagem é relacionada ao feminino, como se toda mulher tivesse que ser mãe. Segundo a psicóloga e escritora Renata Feldman, que em sua dissertação de mestrado “As várias faces da mãe contemporânea” se voltou para o tema, ainda hoje se espera que todas as mulheres gerem um filho. “A sociedade tem expectativas e cobranças em relação a isso, como se o fato de a mulher ser fisiologicamente preparada para isso a obrigasse a desempenhar esse papel. Não é à toa que, quando se pede uma definição de mulher, a resposta passe necessariamente pela ideia de mãe.”Mas no lado oposto dessa expectativa social e dessa fisiologia começa a ganhar força a possibilidade de escolha. Na atualidade, as mulheres já podem escolher entre ser ou não ser mães, embora sigam sendo questionadas sobre isso. Essa mudança é resultado de uma transformação social. “Vivemos em uma era narcisista, hedonista e individualista. Essa é a marca dos novos tempos e é ela que permite à mulher confrontar essa questão”, explica. Elisabeth Badinter é uma das autoras a se debruçar sobre o papel da mãe. Segundo a historiadora francesa, em uma civilização em que o eu primeiro é elevado a um princípio, a maternidade é um desafio, quiçá uma contradição.
Renata Feldman, psicóloga
Mas ela se casou e é superfeliz. Como era importante para o marido, há sete anos aceitou que se seguisse o figurino. Não cuidou de absolutamente nada, passou a tarefa toda para a mãe: ela sim tinha sonhado com o casamento da única filha mulher. O marido teria o filho se ela quisesse, mas deixou que Anya decidisse por achar que o encargo maior realmente fica para a mulher. “Acho que se tivesse um filho com ele até seria legal. Ele me ajudaria a tomar conta da casa e a cuidar da criança. Mas tenho meus ganhos em não ser mãe. Não queria ter ninguém dependendo de mim. Isso me dá liberdade. Não preciso ser um modelo para ninguém. Posso viver minha vida do jeito que acho certo.”
Marlise Mattos, pesquisadora
CULPA
Para Renata Feldman, há uma normatividade no ser mãe. “As mulheres de hoje crescem aprendendo que precisam estudar, casar, construir uma carreira e ter filhos. Não passa outra coisa pela cabeça. Na clínica vemos várias mulheres esgotadas e frustradas por não darem conta de tudo sozinhas. Aí vem a culpa”, explica. Uma mudança desse modelo, entretanto, depende das próprias mulheres. Para Marlise Mattos, as mulheres continuam a ser as principais responsáveis pelo cuidado com os filhos, a família e a educação porque sentem poder em dominar esse espaço privado. Como se não pudessem ter esse poder no espaço público, valorizam o poder que têm dentro de casa.
Assim, se o marido ajuda a trocar a fralda do bebê e não fica certo, elas reforçam que ele não sabe fazer aquilo. Se ele cozinha e erra a mão também são criticados. As próprias mulheres estariam, na opinião de Marlise, impedindo que os homens se sintam bem nesse universo. “As mulheres estão com a faca e o queijo na mão. Se continuarem valorizando essa ideia de que são multitarefas, continuarão acumulando responsabilidades. É preciso uma tomada de consciência. As mães têm, na educação dos filhos, meninos ou meninas, a possibilidade de ensinar sobre as novas relações de gênero, menos tradicionais. Menina não tem que estar ligada ao cuidado, à casa. Meninos não precisam estar ligados à agressividade, à rua. Essa lição tem que vir até os 4 anos.”