Fumantes impregnam a casa de substâncias cancerígenas; crianças que engatinham são maiores vítimas
Fumo de terceira mão (FTM) não vem das tragadas. Invisível, a ameaça esconde-se em todos os cantos da casa: mobília, cortinas, tapetes e parede
A lista de substâncias nocivas é longa. Há o ácido cianídrico, usado em armas químicas; o butano, presente no fluido de isqueiros; o tuolento, encontrado em solventes de tintas. Isso sem falar no arsênico, no chumbo, no monóxido de carbono e no polônio-210, um cancerígeno altamente radioativo. De acordo com o estudo da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, as crianças são as maiores vítimas desses resíduos porque engatinham e tocam em uma grande quantidade de superfícies poluídas. Com isso, acabam ingerindo cerca de 0,25g de poeira (muitas vezes contaminada) por dia, o dobro de um adulto.
- Brasil é considerado 'notável exceção' no atual quadro de epidemia tabagista
- Em vez de ajudar no combate ao tabagismo, cigarros eletrônicos levam usuários a fumar mais
- Morte de garoto-propaganda de cigarro chama atenção para a DPOC
- Lei proíbe produtos em forma de cigarro para crianças
- Fumar com criança e gestante no carro pode se tornar crime
- Pesquisa mostra que crianças expostas ao tabaco podem ser mais agressivas ou medrosas
- Número de fumantes no país cai 30,7% em nove anos
- Pesquisa revela que homens fumantes têm menos cromossomos Y
- Lei Antifumo começa a valer em dezembro e quer proteger população do fumo passivo
- Número de fumantes cai no Brasil
Araujo explica que o risco do tabagismo terciário é medido pelo nível de cotinina — metabólito da nicotina e um dos marcadores utilizados para medir a exposição ambiental ao fumo — na urina de crianças que moram com fumantes. “Evidências científicas mostram que, mesmo com baixos níveis de marcadores de fumaça do tabaco, há associação com deficits cognitivos em crianças (que vivem nesses ambientes), como dificuldade do desenvolvimento neuropsicomotor e de aprendizado na escola”, diz.
Os cigarros industrializados são mais perigosos, representam a maior fonte de resíduos, gases e toxinas, em especial as nitrosaminas, que integram a lista dos mais potentes carcinogéneos, os causadores diretos ou indiretos de cânceres. “As outras formas de tabaco, como o narguilé, o charuto, o cachimbo tradicional e o cigarro eletrônico, também liberam substâncias no ambiente. Elas não são inócuas à saúde, mesmo que sejam à base de vapor. Guimbas, bitucas e cinzeiros no ambiente domiciliar também expõem as crianças, que podem tentar imitar os adultos e experimentar ou manipular esses produtos”, aponta Araujo.
Lesões no DNA
Liderados por Bo Hang, os cientistas do Laboratório Nacional de Laurence Berkeley realizaram dois ensaios para testar a genotoxicidade do fumo de terceira mão. Eles descobriram que os resíduos provocam lesões oxidativas e quebram as cadeias de DNA. Os dois processos levam à mutação genética. “Até este estudo, a toxicidade do fumo de terceira mão não era bem compreendida. Essa fumaça tem uma menor quantidade de produtos químicos do que a do fumo de segunda mão. Por isso, é bom ter evidências experimentais para confirmar a genotoxicidade dela”, avalia Hang, que é bioquímico.
“O estudo é inovador porque desvenda a etiologia de muitas neoplasias que não têm uma relação causal tão óbvia e clara, como as pessoas que não fumam, mas desenvolvem câncer de pulmão. Conhecer as causas de uma doença é fundamental para preveni-la. Quanto mais anos de exposição aos poluentes do fumo terciário, mais aumenta o nosso risco”, considera Rodrigo Medeiros, oncologista do Hospital Sírio-Libanês de Brasília.
Medeiros explica que o efeito se dá dentro do DNA, composto por duas fitas entrelaçadas. Quando as nitrosaminas interagem com o organismo, criam “pontes” capazes de ligar a célula aos compostos cancerígenos. “Com isso, começam a surgir falhas e danos no DNA da célula. Muitas vezes, o organismo deleta as células estragadas, mas, uma série de fatores, como deficiência no reparo do DNA ou comprometimento da imunidade, pode fazer essas estruturas defeituosas vingarem”, explica.
O oncologista ressalta ainda que o tabagismo terciário tem ocupado mais espaço nos debates acadêmicos nos últimos quatro anos, quando as primeiras evidências sobre a toxidade dos resíduos nas superfícies começaram a despontar nos periódicos especializados. Medeiros é um dos muitos que recomenda a troca de carpetes e cortinas da casa de ex-fumantes. “Se ele estiver muito motivado, eu aconselho até a trocar de carro. Muitos fumam dentro do veículo e o ambiente acaba contaminado da mesma maneira”, explica. Segundo o especialista, além de impregnar toda a superfície do automóvel, as nitrosinaminas prendem-se ao filtro de ar dos veículos.
Também perigoso
O fumo passivo só perde para o tabagismo ativo e o alcoolismo no número de mortes em todo o mundo. A fumaça que fica em um ambiente fechado após alguém fumar é chamada de poluição tabagística ambiental (PTA) e é muito mais perigosa. O ar contaminado tem, em média, três vezes mais nicotina e monóxido de carbono, e a quantidade de substâncias cancerígenas aumenta em até 50 vezes se comparada à fumaça inalada pelos fumantes. De certa forma, eles são protegidos pelo filtro do cigarro.
Efeitos a longo prazo
Algumas reações químicas deixam os resíduos dos cigarros fixados em paredes, móveis e cortinas ainda mais nocivos. O contato das nitrosanimas com o ácido estomacal, por exemplo, pode gerar câncer no estômago e nos pulmões. Tudo isso em longo prazo, frisa Rodrigo Medeiros, oncologista do Hospital Sírio-Libanês de Brasília. “Essas doenças dificilmente se desenvolvem em idades precoces porque o processo leva anos, o que é uma das características da exposição crônica. Não é que a criança exposta uma vez terá problemas ainda jovem, mas o contato anos a fio com esses químicos favorece o aparecimento de tumores na vida adulta”, observa.
Medeiros explica que esse efeito é bastante comum no câncer de pulmão. Segundo ele, para cada 10 pacientes, um ou dois nunca fumaram. “Essa teoria afirma que a doença é resultado do tabagismo passivo ou terciário”, diz, ressaltando, em seguida, que o acúmulo das substâncias tóxicas no organismo de crianças é indicador também de possíveis tumores no esôfago e no estômago na idade adulta.
Embora muitos locais públicos proíbam o fumo, Bo Hang, líder do estudo divulgado no Congresso da Sociedade Americana de Química, levanta uma preocupação: o maior perigo está em apartamentos alugados, quartos de hotéis e residências privadas. Até agora, a melhor maneira de se livrar do fumo terciário é a reforma da casa e renovação de mobiliária e objetos que o fumante teve contato. As tradicionais faxinas, com uso de materiais de limpeza ou aspiradores, não são eficazes na remoção desses resíduos. (IO)