Filhos doados pelas mães tentam resgatar a própria história
Na semana passada, contamos a trajetória de mães que foram obrigadas a tomar uma dolorosa decisão: doar os filhos. Hoje, mostramos que o vazio que elas sentem não é unilateral. Mesmo felizes com as famílias adotivas, eles buscam a origem genética
Flávia Duarte - Revista do CB
Publicação:21/03/2014 09:00Atualização: 17/03/2014 09:48
No dia do casamento do filho Sylvio, Denise Kusminsky estava presente. Era talvez a primeira vez que a pedagoga paulistana — autora do livro Reencontro, em que conta por que entregou o filho para a adoção — participava de um momento marcante na vida do primogênito. Denise não compareceu no primeiro dia de aula dele; não estava no banco do passageiro do carro, logo que o rapaz tirou carteira de motorista; nem chorou de emoção no dia da sua formatura. Mas, depois de mais de três décadas de distanciamento, ela estava lá, para ouvi-lo dizer sim à mulher que escolheu para formar uma família. Só não foi reconhecida como mãe de Sylvio. Ao menos legalmente. Na leitura dos nomes dos pais do noivo, a mãe citada foi Maria, a mulher quem o criou.
Jornalista, publicitário, surfista, Sylvio Mancusi, 37 anos, só descobriu que era adotado quando tinha 30 anos. Um parente da família contou apenas uma parte da história. O restante ele deveria descobrir assim que o susto passasse e a dor permitisse. “Fiquei em choque, nunca nem sonhei com essa possibilidade. Fui criado com muito amor e carinho pelos meus pais adotivos. Não fiquei revoltado. Ao contrário, isso me fez amá-los ainda mais”, comenta. “Infelizmente, meu pai já tinha falecido. Ele nunca quis me contar e acho que fez o certo: ou conta desde pequeno ou só depois de homem feito. Seria difícil para um adolescente saber dessa história.”
Para chegar até ela, o caminho foi perguntar ao padrinho, o médico que fez o parto de Sylvio e o entregou para a nova família, pistas de quem ela era. Quando soube que estava atrás de sua mãe, alguém da família de Denise tentou desencorajá-lo. Ela estava casada, com quatro filhas. O melhor era deixar esse episódio esquecido. Determinado a entender as motivações dessa separação, Sylvio não desistiu. “Estava disposto a encontrar qualquer coisa, de ser renegado mais uma vez. Quando fui procurá-la, sua família pediu para que eu não o fizesse. Fui pelas beiradas e consegui o telefone de onde ela trabalhava.”
Sylvio nem sequer desconfiava que Denise sonhava com esse telefonema por toda a vida. Quando soube quem era do outro lado da linha, ela não podia acreditar. Finalmente, conheceria o filho. Ele também se encheu de expectativas. Não podia imaginar como seriam os traços, a personalidade, o cheiro da mãe que nunca soube que existia. O encontro aconteceu em uma pizzaria de São Paulo. Denise, Sylvio e os respectivos companheiros. Ele ficou assustado como era jovem a mulher que engravidou dele aos 17 anos. Ela, impressionada com o homem em que havia se transformado o bebê de quem apenas se lembrava do choro. Eles passaram o jantar se olhando de canto de olho. Reconheceram-se fisicamente. Confirmaram que a genética, de fato, determina certos gestos e trejeitos.
Os dois não se afastaram mais. Viraram “grandes amigos, que é o papel dos pais”, define o jornalista. “Falo que hoje meu filho tem três avós e isso é bom demais.” A relação de mãe e filho é quase impossível depois de tantos anos de distanciamento. Mas um reencontro é a possibilidade de perdoar e de se explicar. Os filhos querem entender a razão do suposto abandono. As mães querem justificar o afastamento como um gesto de amor. “Ele é um filho por quem tenho o maior amor. Corro o mundo atrás dele e dou todo o meu amor e amizade, fazendo de tudo para compensar o tempo perdido”, resume essa mãe.
Ao ouvir de Denise que, para não fazer um aborto, como sugeriu seu namorado na época, ela preferiu entregar o filho a uma família que pudesse criá-lo, Sylvio a perdoou. “Ela não tinha outra opção. Naquele tempo, grávida, com 17 anos, e sem apoio de ambas as famílias, a dela e a do namorado, não a culpo de jeito nenhum”, avalia. “Só acho que não teria a mesma atitude de não ter ido ver como estava o filho já com 20 e poucos anos. Ela tentou me reaver quando pequeno, mas depois de uns anos nunca mais procurou. Eu não teria esse sangue frio. Sou pai e sei como é: meu amor é incomensurável.” Denise teve medo de atrapalhar a felicidade do filho, que nem sabia que era adotado. Esperava que, quando estivesse pronto, ele a encontrasse.
O caminho do reencontro de mães e filhos separados pela vida pode ser tortuoso. Na maioria das vezes, nem há pistas a seguir. Uma vez que as mães abrem mão do cuidado de suas crianças, elas não podem procurar a Justiça para saber onde moram ou qual a família os acolheu. Nos casos em que a adoção é ilegal, em que essas mães entregam o filho a alguém que se dispõe a buscar um lar para aquele bebê, dificilmente elas saberão o paradeiro dos pais adotivos. Algumas deixam o recém-nascido no hospital. Não querem levá-lo para casa, seja por impossibilidade financeira, seja por desequilíbrio emocional. Provavelmente, nunca mais se verão. “Nunca aconteceu de uma mãe voltar para buscar o bebê depois de tê-lo deixado no hospital”, conta Cristiane Scarpelli, assistente social de atendimento do HMIB.
Assim, cabe aos filhos tentarem encontrar a família da qual procedem. “A lei contempla a busca pela origem ao contrário. Isso quer dizer que o adulto adotado tem o direito de ter acesso ao processo de adoção”, esclarece a juíza da Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre Vera Deboni, coordenadora da Secretaria da Infância e Juventude da AMB. O direito é garantido especialmente por causa da saúde da pessoa, que pode precisar de informações sobre sua genética em casos de uma doença grave, por exemplo. No processo, vão encontrar o nome e a cópia da carteira da identidade da mãe; o endereço em que ela residia na época da adoção e os registros de avós paternos e maternos.
Apesar do direito, os pedidos para ter mais informações sobre o próprio passado são raros. A juíza Vera Deboni comenta que, no ano passado, atendeu só quatro casos em que filhos queriam saber o paradeiro dos pais biológicos, sendo que um deles estava em busca de respostas para uma doença aparentemente genética. Mas qual seria a explicação de tão poucos procurarem em papéis a única pista da identidade da mãe biológica? “Medo da rejeição, de magoar a família adotiva, o desconhecimento da possibilidade de buscar essas informações seriam alguns dos motivos”, lista a juíza.
Em Brasília, Sérgio Domingos, coordenador do Núcleo da Infância da Defensoria Pública do DF, também relata que poucos foram os jovens ou adultos que procuraram seu direito de ter acesso ao relatório que conta como, quando e em que circunstâncias foram entregues para a adoção. “Esse pedido não é muito comum. Alguns não sabem que foram adotados, outros não querem saber da família biológica. Há quem não esteja preparado para receber essas informações.”
A verdade é que há o risco de esses processos traduzirem em palavras sentimentos de abandono e de rejeição ou com a crueldade de uma realidade na qual o nascimento dessa criança foi resultado de uma violência. Há ainda o perigo de que a idealizada figura materna seja uma mulher sofrida, dura, drogada, prostituída. Sem amor para oferecer, já que também não recebeu. O que não significa, porém, que seja uma mulher má. “A compreensão de que toda criança que não permanece com a mãe biológica é abandonada pode ser verdadeira do ponto de vista da criança, mas, se examinamos as condições e motivações da mãe, o entendimento deve ser outro”, considera a psicóloga e psicanalista Maria Antonieta Pisano Motta, coordenadora técnica da AGAAESP (Associação dos Grupos de Apoio à Adoção de SP) e autora do livro Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção.
Ainda que a entrega de um filho seja um gesto de amor, ela gera dúvidas e ressentimentos. “Todo filho adotivo quer saber de onde saiu, se tem alguma doença genética, as suas origens e, o mais importante, procurar entender essa rejeição: por que minha mãe me deu?”, comenta Ricardo Fischer, criador do site Filhos Adotivos do Brasil, uma das únicas iniciativas independentes no país que se propõe a reunir essas famílias separadas pela vida.
Ricardo criou a associação porque ele próprio teve dificuldades de saber por onde andava sua mãe biológica. Queria ele mesmo tirar conclusões da atitude dela. “Me diziam que ela era a pior pessoa do mundo. Afinal, se sua mãe te deu, ela não pode ser uma boa pessoa”, convenciam-no.
Depois de quase uma década de tentativas, ele a reencontrou. “Na hora que você está com sua mãe biológica, você não consegue dimensionar o que sente”, relembra. Desse dia, só queria ter uma resposta para acalmar o coração de quem se sentia abandonado. “Ela me deu uma explicação bem razoável: ficou grávida aos 17 anos e quase foi queimada em praça pública. Era filha de classe média alta e caiu no mundo da droga, da prostituição e da bebida.” Palavras que acalmaram a agonia de Ricardo. Dela, ele nunca teve raiva. “Hoje, somos grande amigos, mas não consigo chamá-la de mãe. Só tem uma verdade: a maternidade se constrói com o tempo”, define.
É justamente esse temor de saber a verdade, seja ela qual for, que muitas vezes impede essa procura. A dona de casa Luciane Freitas da Silva, 48 anos, se revoltou quando descobriu que era adotada. Saiu da casa dos pais adotivos, em Imperatriz, no Maranhão, e foi tentar a vida, aos 15 anos, sozinha. Deixou para trás uma vida confortável, os pais que a criaram e os três irmãos. Passou dificuldades, refletiu sobre a própria vida e achou ter compreendido a razão de sempre ter se sentido “diferente” do resto da família em que cresceu. “Nunca me senti da família. Eu era meio revoltada. Não gostava de ninguém, não me relacionava bem com as pessoas. Não sei explicar”, comenta.
Passou sete anos sem dar notícias. Trabalhou como doméstica, dormiu na rua, foi parar na Febem de Belo Horizonte. Até que voltou para a casa da mãe de criação e tentou juntar os cacos da própria história. Da mulher que a teve só sabe o nome: Raimunda. Contaram que ela trabalhava em um cabaré, era jovem, negra e deu Luciane e um filho mais novo para o dono do bordel criar. Foi ele, aliás, quem entregou a menina, com 1 ano e 9 meses, para a nova mãe. “Quando ela me buscou, não tinha uma calcinha para vestir”, comenta, chorando.
Pouco além disso, soube de si mesma. Com sorte, descobriu onde morava o irmão, que também foi “dado”. Ele tinha olhos claros e nariz afilado. “Dizem que era parecido com meu pai”, conta a mulher de nariz largo e cabelos mais crespos. Até hoje, ela sonha em ver a mãe. Tem perguntas a fazer. “Queria saber se ela me procurou, se ela se arrependeu”, questiona-se.
Como a maior parte das adoções daquela época, especialmente do interior do país, não há documentos que possam dar uma dica sobre seu nascimento. Na certidão de Luciane, consta o nome da mãe adotiva, e o local do nascimento foi registrado como sendo em casa mesmo. Ela já pagou profissionais para investigar o rumo da mulher que a pariu, mas nada. Chora quando fala da possibilidade de nunca a conhecer. “Sinto um vazio muito grande de não saber nada da minha vida. Todo ser humano quer conhecer alguém que tenha seu sangue, saber com quem você se parece”, diz.
Uma lacuna que Ana Maria dos Santos, 32 anos, também ainda não conseguiu preencher. Ela foi entregue à sua família adotiva com apenas nove horas de vida. Desde muito pequena, soube que era “filha do coração”. Ainda que tenha enfrentado preconceito por parte de alguns parentes, que a tratavam como “agregada”, sempre teve muito bem resolvida a questão de que a mulher que a gestou foi a mesma que a deu para uma desconhecida. Só há pouco tempo decidiu ir atrás de respostas para essa entrega. “Hoje, tenho a mentalidade de que ela poderia ter abortado, mas preferiu seguir a gravidez”, comenta, grata pela chance de viver.
Mas, de alguma maneira, a funcionária pública se preocupa com a mãe biológica. “Não sei se essa foi a melhor escolha para a vida dela. Me questiono se essa entrega foi muito dolorida, se mudou a vida dela de alguma forma depois disso, se pensa que morri…”, imagina. Anny, como é chamada, sabe pouco de seu nascimento. Já foi ao hospital em que nasceu, mas não teve qualquer resposta. A mãe adotiva contou apenas que, na época, um dos médicos se prontificava a ajudar mulheres que decidiam abrir mão dos bebês que acabavam de nascer e encontrar uma família para eles. Além disso, não sabe de mais nada. “Não sei se foi falta de dinheiro ou alguma ligação familiar que a impediu de ficar comigo”, pensa.
Talvez Anny nunca saiba. Mesmo que a adoção seja legal, muitas mulheres que entregam seus filhos não querem ser encontradas. Mudam de endereço. Não deixam rastro. Outras têm medo do julgamento dos filhos que não criaram e por isso não se deixam achar. Há ainda o temor dos pais adotivos, que escondem a verdade por medo de perderem o amor das crianças que escolheram como suas. “Esse é um medo muito comum de quem adota”, reconhece a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente do Grupos de Apoio à Adoção, diretora de Assuntos Jurídicos da ANGAAD — Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção.
A jovem Gabriela, 18 anos, logo que soube da possibilidade de dar uma entrevista sobre o assunto, animou-se. Assim, quem sabe, alguém leria sua história e poderia ter notícias de sua mãe biológica. A iniciativa logo foi rechaçada, porém, pela mulher que a criou. “Ela ficou chateada. Acho que é medo de que eu deixe de amá-la”, supõe. Por isso, preferiu não divulgar o sobrenome. Contou apenas que soube que era adotada aos 7 anos, quando ouviu uma conversa entre as irmãs sobre o assunto. Quis então detalhes, mas só deram a ela dados incompletos. “Disseram que meu pai biológico era patrão da minha mãe.” Sem condições, ela teria procurado a avó adotiva de Gabriela para entregar o bebê com 3 meses de vida. Quando viram aquela criança, a nova família se apaixonou e não a deixou ir embora.
Assim, a menina bem articulada e muito tranquila sobre seu passado cresceu em duas casas: uma do pai adotivo e outra da mãe adotiva. Sim, a educação dela foi dividida por duas famílias diferentes. Para a adolescente, o fato só soma mais amor. “Sempre compreendi a atitude da minha mãe verdadeira. Acredito que sou muito amada porque fui uma filha escolhida pelos pais que me adotaram”, diz.
Amor não falta a Gabriela, mas sobra curiosidade sobre suas origens. A jovem vaidosa, que gosta de batom vermelho e aparecer maquiada e bem vestida nas redes sociais, já ouviu dizer que se parece com a mãe. Tem vontade de se apresentar a ela, mas também lhe faltam pistas. Só sabe o nome da mulher e o do hospital onde nasceu. A mãe adotiva prometeu ajudá-la a encontrar o pai biológico. Quem sabe ele possa dar alguma notícia sobre a jovem que engravidou anos atrás. Se isso acontecesse, Gabriela não sabe o que perguntaria a ela. Compreende seu gesto. “Eu era muito doente e ela não tinha condições de me criar.” Não quer julgar, deseja apenas a amizade dela, porque o papel de mãe acha difícil ela poder assumir. “Mãe é quem cria, né?”, define.
Sem saber toda a verdade, resta ao adotado apenas imaginar as justificativas da separação. Como vão interpretar o fato, depende de como a figura materna foi apresentada a eles. “A maneira como eu relato para a criança a forma como ela foi adotada vai determinar o modo que ela se vê e a maneira que constrói sua própria identidade”, afirma a psicanalista e estudiosa do tema Maria Luiza Ghirardi, membro fundadora do grupo Acesso — Estudos, Intervenções e Pesquisa sobre Adoção, do Instituto Sedes, de SP.
O adolescente Pedro (nome fictício), 16 anos, sempre conviveu com o medo da rejeição. Ele e a irmã gêmea são filhos de Linda Alexsandra, cuja história contamos na última edição da Revista. A moça deixou os dois com uma tia quando eles eram muito pequenos e nunca mais voltou para buscá-los. A lembrança do rosto da mãe ficou apenas em algumas poucas fotos tiradas naquela época. Agora, eles já não reconhecem os traços da mulher que os teve.
Pedro há dois anos busca notícias dela. Quer saber as razões de a mãe nunca ter voltado. “A gente cresceu ouvindo que ela nos abandonou, mas quero saber a verdade dela”, diz. No fim do ano passado, por meio do site Filhos Adotivos do Brasil, ele finalmente soube que Linda estava em São Paulo. A associação tenta, desde então, organizar um encontro entre os jovens, que moram no Sul do país, e a mãe, que não os vê há 11 anos. Faltam recursos para a viagem e sobram expectativas de ambas as partes. O menino ainda não conhece a fundo a história da mãe, que se prostituiu, usou drogas na Espanha e foi deportada para o Brasil. Envergonhada, ela nunca teve coragem de contar o que realmente se passou.
Alguém, porém, já insinuou parte da história para o adolescente, mas Pedro não se incomoda. “Isso foi passado, não importa o que ela foi antes. Talvez fosse muito nova e não estivesse preparada para ter filhos”, avalia, compreensivo. E as expectativas depois do reencontro? “Espero que nós sejamos bons amigos”, deseja o jovem que considera mãe verdadeira a tia falecida que o criou.
Jornalista, publicitário, surfista, Sylvio Mancusi, 37 anos, só descobriu que era adotado quando tinha 30 anos. Um parente da família contou apenas uma parte da história. O restante ele deveria descobrir assim que o susto passasse e a dor permitisse. “Fiquei em choque, nunca nem sonhei com essa possibilidade. Fui criado com muito amor e carinho pelos meus pais adotivos. Não fiquei revoltado. Ao contrário, isso me fez amá-los ainda mais”, comenta. “Infelizmente, meu pai já tinha falecido. Ele nunca quis me contar e acho que fez o certo: ou conta desde pequeno ou só depois de homem feito. Seria difícil para um adolescente saber dessa história.”
Saiba mais...
Saber que foi entregue pela própria mãe a uma outra família não é uma experiência pela qual se passa indiferente. Sylvio enfrentou um período de depressão. Sem o pai adotivo, a quem considerava o “melhor amigo”, lembra que foi muito difícil “digerir” tudo sozinho. Não teve coragem de dividir com ninguém aquelas novas informações. Até que tomou coragem e, quase sete anos depois, foi em busca de seu verdadeiro passado. Decidiu procurar por Denise.Para chegar até ela, o caminho foi perguntar ao padrinho, o médico que fez o parto de Sylvio e o entregou para a nova família, pistas de quem ela era. Quando soube que estava atrás de sua mãe, alguém da família de Denise tentou desencorajá-lo. Ela estava casada, com quatro filhas. O melhor era deixar esse episódio esquecido. Determinado a entender as motivações dessa separação, Sylvio não desistiu. “Estava disposto a encontrar qualquer coisa, de ser renegado mais uma vez. Quando fui procurá-la, sua família pediu para que eu não o fizesse. Fui pelas beiradas e consegui o telefone de onde ela trabalhava.”
Sylvio nem sequer desconfiava que Denise sonhava com esse telefonema por toda a vida. Quando soube quem era do outro lado da linha, ela não podia acreditar. Finalmente, conheceria o filho. Ele também se encheu de expectativas. Não podia imaginar como seriam os traços, a personalidade, o cheiro da mãe que nunca soube que existia. O encontro aconteceu em uma pizzaria de São Paulo. Denise, Sylvio e os respectivos companheiros. Ele ficou assustado como era jovem a mulher que engravidou dele aos 17 anos. Ela, impressionada com o homem em que havia se transformado o bebê de quem apenas se lembrava do choro. Eles passaram o jantar se olhando de canto de olho. Reconheceram-se fisicamente. Confirmaram que a genética, de fato, determina certos gestos e trejeitos.
Sylvio, com a família: aos 30 anos, soube que era adotado e saiu em busca da mãe biológica
Ao ouvir de Denise que, para não fazer um aborto, como sugeriu seu namorado na época, ela preferiu entregar o filho a uma família que pudesse criá-lo, Sylvio a perdoou. “Ela não tinha outra opção. Naquele tempo, grávida, com 17 anos, e sem apoio de ambas as famílias, a dela e a do namorado, não a culpo de jeito nenhum”, avalia. “Só acho que não teria a mesma atitude de não ter ido ver como estava o filho já com 20 e poucos anos. Ela tentou me reaver quando pequeno, mas depois de uns anos nunca mais procurou. Eu não teria esse sangue frio. Sou pai e sei como é: meu amor é incomensurável.” Denise teve medo de atrapalhar a felicidade do filho, que nem sabia que era adotado. Esperava que, quando estivesse pronto, ele a encontrasse.
O caminho do reencontro de mães e filhos separados pela vida pode ser tortuoso. Na maioria das vezes, nem há pistas a seguir. Uma vez que as mães abrem mão do cuidado de suas crianças, elas não podem procurar a Justiça para saber onde moram ou qual a família os acolheu. Nos casos em que a adoção é ilegal, em que essas mães entregam o filho a alguém que se dispõe a buscar um lar para aquele bebê, dificilmente elas saberão o paradeiro dos pais adotivos. Algumas deixam o recém-nascido no hospital. Não querem levá-lo para casa, seja por impossibilidade financeira, seja por desequilíbrio emocional. Provavelmente, nunca mais se verão. “Nunca aconteceu de uma mãe voltar para buscar o bebê depois de tê-lo deixado no hospital”, conta Cristiane Scarpelli, assistente social de atendimento do HMIB.
Assim, cabe aos filhos tentarem encontrar a família da qual procedem. “A lei contempla a busca pela origem ao contrário. Isso quer dizer que o adulto adotado tem o direito de ter acesso ao processo de adoção”, esclarece a juíza da Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre Vera Deboni, coordenadora da Secretaria da Infância e Juventude da AMB. O direito é garantido especialmente por causa da saúde da pessoa, que pode precisar de informações sobre sua genética em casos de uma doença grave, por exemplo. No processo, vão encontrar o nome e a cópia da carteira da identidade da mãe; o endereço em que ela residia na época da adoção e os registros de avós paternos e maternos.
'Sinto um vazio muito grande de não saber nada da minha vida. Todo ser humano quer conhecer alguém que tenha seu sangue, saber com quem você se parece' - Luciane Freitas da Silva, dona de casa, abandonada pela mãe quando tinha 1 ano e 9 meses
Em Brasília, Sérgio Domingos, coordenador do Núcleo da Infância da Defensoria Pública do DF, também relata que poucos foram os jovens ou adultos que procuraram seu direito de ter acesso ao relatório que conta como, quando e em que circunstâncias foram entregues para a adoção. “Esse pedido não é muito comum. Alguns não sabem que foram adotados, outros não querem saber da família biológica. Há quem não esteja preparado para receber essas informações.”
A verdade é que há o risco de esses processos traduzirem em palavras sentimentos de abandono e de rejeição ou com a crueldade de uma realidade na qual o nascimento dessa criança foi resultado de uma violência. Há ainda o perigo de que a idealizada figura materna seja uma mulher sofrida, dura, drogada, prostituída. Sem amor para oferecer, já que também não recebeu. O que não significa, porém, que seja uma mulher má. “A compreensão de que toda criança que não permanece com a mãe biológica é abandonada pode ser verdadeira do ponto de vista da criança, mas, se examinamos as condições e motivações da mãe, o entendimento deve ser outro”, considera a psicóloga e psicanalista Maria Antonieta Pisano Motta, coordenadora técnica da AGAAESP (Associação dos Grupos de Apoio à Adoção de SP) e autora do livro Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção.
Ainda que a entrega de um filho seja um gesto de amor, ela gera dúvidas e ressentimentos. “Todo filho adotivo quer saber de onde saiu, se tem alguma doença genética, as suas origens e, o mais importante, procurar entender essa rejeição: por que minha mãe me deu?”, comenta Ricardo Fischer, criador do site Filhos Adotivos do Brasil, uma das únicas iniciativas independentes no país que se propõe a reunir essas famílias separadas pela vida.
Ricardo criou a associação porque ele próprio teve dificuldades de saber por onde andava sua mãe biológica. Queria ele mesmo tirar conclusões da atitude dela. “Me diziam que ela era a pior pessoa do mundo. Afinal, se sua mãe te deu, ela não pode ser uma boa pessoa”, convenciam-no.
Depois de quase uma década de tentativas, ele a reencontrou. “Na hora que você está com sua mãe biológica, você não consegue dimensionar o que sente”, relembra. Desse dia, só queria ter uma resposta para acalmar o coração de quem se sentia abandonado. “Ela me deu uma explicação bem razoável: ficou grávida aos 17 anos e quase foi queimada em praça pública. Era filha de classe média alta e caiu no mundo da droga, da prostituição e da bebida.” Palavras que acalmaram a agonia de Ricardo. Dela, ele nunca teve raiva. “Hoje, somos grande amigos, mas não consigo chamá-la de mãe. Só tem uma verdade: a maternidade se constrói com o tempo”, define.
É justamente esse temor de saber a verdade, seja ela qual for, que muitas vezes impede essa procura. A dona de casa Luciane Freitas da Silva, 48 anos, se revoltou quando descobriu que era adotada. Saiu da casa dos pais adotivos, em Imperatriz, no Maranhão, e foi tentar a vida, aos 15 anos, sozinha. Deixou para trás uma vida confortável, os pais que a criaram e os três irmãos. Passou dificuldades, refletiu sobre a própria vida e achou ter compreendido a razão de sempre ter se sentido “diferente” do resto da família em que cresceu. “Nunca me senti da família. Eu era meio revoltada. Não gostava de ninguém, não me relacionava bem com as pessoas. Não sei explicar”, comenta.
Entregue a uma família adotiva com nove horas de vida, Ana Maria dos Santos, 32 anos, ainda busca respostas: 'Ela poderia ter abortado, mas preferiu seguir a gravidez'
"Sinto um vazio muito grande de não saber nada da minha vida. Todo ser humano quer conhecer alguém que tenha seu sangue, saber com quem você se parece " Luciane Freitas da Silva, dona de casa, abandonada pela mãe quando tinha 1 ano e 9 meses
Pouco além disso, soube de si mesma. Com sorte, descobriu onde morava o irmão, que também foi “dado”. Ele tinha olhos claros e nariz afilado. “Dizem que era parecido com meu pai”, conta a mulher de nariz largo e cabelos mais crespos. Até hoje, ela sonha em ver a mãe. Tem perguntas a fazer. “Queria saber se ela me procurou, se ela se arrependeu”, questiona-se.
Como a maior parte das adoções daquela época, especialmente do interior do país, não há documentos que possam dar uma dica sobre seu nascimento. Na certidão de Luciane, consta o nome da mãe adotiva, e o local do nascimento foi registrado como sendo em casa mesmo. Ela já pagou profissionais para investigar o rumo da mulher que a pariu, mas nada. Chora quando fala da possibilidade de nunca a conhecer. “Sinto um vazio muito grande de não saber nada da minha vida. Todo ser humano quer conhecer alguém que tenha seu sangue, saber com quem você se parece”, diz.
Uma lacuna que Ana Maria dos Santos, 32 anos, também ainda não conseguiu preencher. Ela foi entregue à sua família adotiva com apenas nove horas de vida. Desde muito pequena, soube que era “filha do coração”. Ainda que tenha enfrentado preconceito por parte de alguns parentes, que a tratavam como “agregada”, sempre teve muito bem resolvida a questão de que a mulher que a gestou foi a mesma que a deu para uma desconhecida. Só há pouco tempo decidiu ir atrás de respostas para essa entrega. “Hoje, tenho a mentalidade de que ela poderia ter abortado, mas preferiu seguir a gravidez”, comenta, grata pela chance de viver.
Mas, de alguma maneira, a funcionária pública se preocupa com a mãe biológica. “Não sei se essa foi a melhor escolha para a vida dela. Me questiono se essa entrega foi muito dolorida, se mudou a vida dela de alguma forma depois disso, se pensa que morri…”, imagina. Anny, como é chamada, sabe pouco de seu nascimento. Já foi ao hospital em que nasceu, mas não teve qualquer resposta. A mãe adotiva contou apenas que, na época, um dos médicos se prontificava a ajudar mulheres que decidiam abrir mão dos bebês que acabavam de nascer e encontrar uma família para eles. Além disso, não sabe de mais nada. “Não sei se foi falta de dinheiro ou alguma ligação familiar que a impediu de ficar comigo”, pensa.
Talvez Anny nunca saiba. Mesmo que a adoção seja legal, muitas mulheres que entregam seus filhos não querem ser encontradas. Mudam de endereço. Não deixam rastro. Outras têm medo do julgamento dos filhos que não criaram e por isso não se deixam achar. Há ainda o temor dos pais adotivos, que escondem a verdade por medo de perderem o amor das crianças que escolheram como suas. “Esse é um medo muito comum de quem adota”, reconhece a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente do Grupos de Apoio à Adoção, diretora de Assuntos Jurídicos da ANGAAD — Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção.
A jovem Gabriela, 18 anos, logo que soube da possibilidade de dar uma entrevista sobre o assunto, animou-se. Assim, quem sabe, alguém leria sua história e poderia ter notícias de sua mãe biológica. A iniciativa logo foi rechaçada, porém, pela mulher que a criou. “Ela ficou chateada. Acho que é medo de que eu deixe de amá-la”, supõe. Por isso, preferiu não divulgar o sobrenome. Contou apenas que soube que era adotada aos 7 anos, quando ouviu uma conversa entre as irmãs sobre o assunto. Quis então detalhes, mas só deram a ela dados incompletos. “Disseram que meu pai biológico era patrão da minha mãe.” Sem condições, ela teria procurado a avó adotiva de Gabriela para entregar o bebê com 3 meses de vida. Quando viram aquela criança, a nova família se apaixonou e não a deixou ir embora.
Assim, a menina bem articulada e muito tranquila sobre seu passado cresceu em duas casas: uma do pai adotivo e outra da mãe adotiva. Sim, a educação dela foi dividida por duas famílias diferentes. Para a adolescente, o fato só soma mais amor. “Sempre compreendi a atitude da minha mãe verdadeira. Acredito que sou muito amada porque fui uma filha escolhida pelos pais que me adotaram”, diz.
Amor não falta a Gabriela, mas sobra curiosidade sobre suas origens. A jovem vaidosa, que gosta de batom vermelho e aparecer maquiada e bem vestida nas redes sociais, já ouviu dizer que se parece com a mãe. Tem vontade de se apresentar a ela, mas também lhe faltam pistas. Só sabe o nome da mulher e o do hospital onde nasceu. A mãe adotiva prometeu ajudá-la a encontrar o pai biológico. Quem sabe ele possa dar alguma notícia sobre a jovem que engravidou anos atrás. Se isso acontecesse, Gabriela não sabe o que perguntaria a ela. Compreende seu gesto. “Eu era muito doente e ela não tinha condições de me criar.” Não quer julgar, deseja apenas a amizade dela, porque o papel de mãe acha difícil ela poder assumir. “Mãe é quem cria, né?”, define.
Sem saber toda a verdade, resta ao adotado apenas imaginar as justificativas da separação. Como vão interpretar o fato, depende de como a figura materna foi apresentada a eles. “A maneira como eu relato para a criança a forma como ela foi adotada vai determinar o modo que ela se vê e a maneira que constrói sua própria identidade”, afirma a psicanalista e estudiosa do tema Maria Luiza Ghirardi, membro fundadora do grupo Acesso — Estudos, Intervenções e Pesquisa sobre Adoção, do Instituto Sedes, de SP.
O adolescente Pedro (nome fictício), 16 anos, sempre conviveu com o medo da rejeição. Ele e a irmã gêmea são filhos de Linda Alexsandra, cuja história contamos na última edição da Revista. A moça deixou os dois com uma tia quando eles eram muito pequenos e nunca mais voltou para buscá-los. A lembrança do rosto da mãe ficou apenas em algumas poucas fotos tiradas naquela época. Agora, eles já não reconhecem os traços da mulher que os teve.
Pedro há dois anos busca notícias dela. Quer saber as razões de a mãe nunca ter voltado. “A gente cresceu ouvindo que ela nos abandonou, mas quero saber a verdade dela”, diz. No fim do ano passado, por meio do site Filhos Adotivos do Brasil, ele finalmente soube que Linda estava em São Paulo. A associação tenta, desde então, organizar um encontro entre os jovens, que moram no Sul do país, e a mãe, que não os vê há 11 anos. Faltam recursos para a viagem e sobram expectativas de ambas as partes. O menino ainda não conhece a fundo a história da mãe, que se prostituiu, usou drogas na Espanha e foi deportada para o Brasil. Envergonhada, ela nunca teve coragem de contar o que realmente se passou.
Alguém, porém, já insinuou parte da história para o adolescente, mas Pedro não se incomoda. “Isso foi passado, não importa o que ela foi antes. Talvez fosse muito nova e não estivesse preparada para ter filhos”, avalia, compreensivo. E as expectativas depois do reencontro? “Espero que nós sejamos bons amigos”, deseja o jovem que considera mãe verdadeira a tia falecida que o criou.
"Fui criado com muito amor e carinho pelos meus pais adotivos. Não fiquei revoltado, ao contrário, isso me fez amá-los ainda mais”
Sylvio Mancusi, 37 anos
Sylvio Mancusi, 37 anos