Apesar de irrevogável aos olho da lei, adoção não impede que mães biológicas sonhem com o reencontro

Os desejos do coração não obedecem à lei. A tristeza e o remorso de escolha tão definitiva não amenizam com o tempo

Diminuir Fonte Aumentar Fonte Imprimir Corrigir Notícia Enviar
Flávia Duarte - Revista do CB Publicação:14/03/2014 13:02Atualização:14/03/2014 10:59
Seja qual for o caminho dessa despedida, ela é sempre dolorosa. E cheia de culpas, remorsos, saudade e idealizações. “Não tem um dia em que a gente se esqueça disso”, define Denise Kusminsky. Depois do nascimento do primogênito, a vida da pedagoga foi refeita. Ela se casou, teve quatro filhas e construiu a tão sonhada família. Mas, todas as noites, rezava para Sylvio. Quando o menino completou 5 anos, Denise procurou os advogados porque queria tê-lo de volta. Foi demovida da ideia. A nova família já estaria entrosada. Para proteger o filho, e para não ser ingrata com os pais que o criaram, Denise desistiu e seguiu com a esperança de que a profecia do marido se concretizasse. “Não se preocupe. Um dia, seu filho vai procurar você.”

Para a Justiça, a adoção é um processo irrevogável. Isso quer dizer que não pode ser desfeita. Também é irretratável. “Quando a mulher quer entregar seu filho, ela é avisada das consequências. Elas precisam saber que ele está morrendo para elas para nascer em outro lugar”, define a juíza Vera Deboni.

'Há 38 anos, o conceito de lar era pai, mãe e filhos. Eu não tinha condições emocionais para criá-lo sozinha.' Denise Kusminsky, 57 anos, que reencontrou o filho e escreveu um livro (Arquivo Pessoal)
'Há 38 anos, o conceito de lar era pai, mãe e filhos. Eu não tinha condições emocionais para criá-lo sozinha.' Denise Kusminsky, 57 anos, que reencontrou o filho e escreveu um livro
Os desejos do coração, no entanto, não obedecem à lei. A tristeza e o remorso de escolha tão definitiva não amenizam com o tempo. O sonho do reencontro é reafirmado por todas as mães. Um momento sonhado, em que poderão ter certeza de que o rebento está melhor do que estaria com elas. Também representa uma chance de pedir perdão. “A separação entre mãe e a criança parece vir acompanhada de um luto sem fim. Muitas delas ‘criam’ seus filhos em suas mentes; outras evitam novos relacionamentos devido ao medo ou à vergonha; algumas se transformam em mãe afetivamente distantes ou prejudicialmente superprotetoras”, relata a pesquisadora Maria Antonieta.

A única informação que Vera Lúcia Fortunato, lá do Rio Grande do Sul, teve do filho, hoje com 43 anos, foi a de que ele teria sido assassinado aos 9 anos. Mas ela não acredita: “No meu coração, sinto que ele está vivo e um dia vou me encontrar com ele”. Encontrar pistas de um filho adotado por outros pais é uma tarefa difícil, sobretudo em doações ilegais. A maioria não sabe nem por onde começar. Uma das iniciativas para tentar reunir as pontas desse passado é a ONG Filhos Adotivos do Brasil, uma iniciativa de Ricardo Fisher, que também foi adotado e passou 14 anos em busca da mãe.

A sede da organização fica em Porto Alegre e até hoje já promoveu cerca de 487 encontros entre pais e filhos de sangue. Ricardo diz que, diariamente, são mais de 50 pedidos de gente que quer conhecer suas origens. Na fila, somam mais de 3 mil órfãos atrás da própria história. “Trabalhamos com voluntários, fazendo pesquisas em cartórios, órgãos públicos, viajamos para o interior atrás de hospitais”, explica. Mas a iniciativa pioneira na país está com os dias contados. Falta verba para prosseguir nessa busca.

Anália já mandou seu relato para o site desse ONG. Ela tem certeza de que a filha está aqui ao lado, em Goiânia. Desconfia que a irmã sabe onde a sobrinha está, mas prefere não contar. “Sinto ela tão perto, tão fácil. Se eu tivesse dinheiro para contratar um detetive…”, imagina.

“Adoção à brasileira”
Deixar a criação do filho a cargo de outras pessoas foi a opção da pensionista Vera Lúcia, 59 anos. Aos 17, engravidou do segundo filho. Só descobriu isso depois que o marido tinha sumido no mundo. Pobre, filha de pai e mãe muito “brabos”, ouviu da família: “Do mais velho, eles cuidavam, do outro, não”. Ela ainda tentou dar conta da criação daquela criança. “Um dia, cheguei em casa e ele estava sentado no chão, sem fralda e comecei a chorar. Eu queria o melhor para ele, então decidi entregá-lo a uma família”, conta. O menino já tinha mais de 1 ano. Vera combinou com a família adotiva que queria vê-lo sempre. Mas os pais adotivos se mudaram e ela nunca mais soube de seu pequenino.

Rita Jordânia entregou o filho há 23 anos (Arquivo Pessoal)
Rita Jordânia entregou o filho há 23 anos
Entregar a criança a uma família sem os trâmites legais era algo muito comum no Brasil. A prática até recebeu um nome: adoção à brasileira. “A família assume a criança e, depois de quatro ou cinco anos, entra com um pedido de adoção, comprovando o vínculo”, esclarece a juíza Vera Deboni, coordenadora Secretaria da Infância e Juventude da AMB.

“Há uma construção de estigmas em relação às mães que entregam filhos, o que impede que elas façam isso de forma legal”, analisa a psicóloga e psicanalista Maria Antonieta Pisano Motta, assessora de Família e Infância e Juventude, coordenadora Técnica da AGAAESP (Associação dos Grupos de apoio à adoção de SP) e autora do livro Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção.

A Justiça tenta há anos acabar com esse tipo de adoção. “A informalidade gera riscos, como comércio de crianças ou adoção para caprichos sexuais. Quando a mãe procura a Vara, a Justiça vai verificar o perfil da família candidata, para que essa criança não seja exposta”, alerta Walter Gomes de Sousa, supervisor da área de adoção da Vara da Infância. Outra forma de adoção comum é a consensual, em que mãe aponta a família para qual quer entregar o filho. “Vamos investigar se houve algum tipo de retribuição. Há, por exemplo, mães que entregam o bebê para determinadas pessoas porque precisam garantir o sustento dos outros filhos”, alerta Vera.

"Há 38 anos, o conceito de lar era pai, mãe e filhos. Eu não tinha condições emocionais para criá-lo sozinha." Denise Kusminsky, 57 anos, que reencontrou o filho e escreveu um livro

Um novo começo
A culpa corrói o coração dessas mulheres. “Sinto vergonha do que fiz. Hoje faria de tudo para ter ficado com ele”, declara Vera Lúcia. “Eu era muito boba, não tinha responsabilidade”, pensa Rita Jordânia, ao falar da entrega do filho, que hoje deve ter 23 anos. “Queria saber como ele está. Parece que estou presa dentro de mim. É um sofrimento muito profundo, falta alguma coisa na minha vida”, descreve. “Não sei se eu era burra ou ingênua de ter feito isso” penaliza-se Ilda Aparecida do Nascimento.

A professora Eva Vanderli, de Passo Fundo, também não se poupa. “Sinto culpa todos os dias da minha vida. Enquanto eu viver, vou carregar isso comigo. Arrependo-me, mas, ao mesmo tempo, acredito que ele deve estar bem e penso como seria a vida dele comigo. Será que eu teria conseguido dar uma vida digna ou teria perdido ele para o mundo? Fica esse questionamento.”

O contato com esse filho quase desconhecido foi de apenas um dia. Eva disse que o carregou no colo, que era um bebê lindo. Chorou e pediu bênção a Deus. Feito isso, o deixou com a enfermeira e partiu. Hoje, ela almeja que o homem de 33 anos esteja “casado, com filhos, que tenha estudado, tenha uma boa profissão e seja feliz”, lista os desejos de todas as mães dedicadas. Ela já fez busca em cartórios e nos hospitais na esperança de encontrar informações de seu menino. Até agora, nada.

“Eu era boba, inocente, não tinha conhecimento da vida. Muitas vezes, julgo-me covarde por não ter enfrentado meu pai, insistido e ficado com meu filho. Mas não tem com voltar atrás, porque, se tivesse, com certeza jamais eu teria entregue ele para outra família”, acrescenta Eva, que de alguma maneira ameniza sua dor ao olhar para seu filho adotivo de 14 anos. Depois de ter engravidado aquela vez, ela nunca mais pôde ter outro bebê. Virou mãe adotiva, cuidando do filho de uma outra mulher que provavelmente conta um passado de desamparo como o dela própria.

Linda Alexsandra teve mais sorte. O medo de ir atrás da família e contar uma vida carregada de dor e abusos foi superado quando recebeu uma ligação em dezembro do ano passado. Era o filho. “Eu pensava: ‘Depois de tantos anos, quem vai querer saber de mim?”, chora. Os filhos queriam. O garoto mora com o pai. A irmã gêmea, com a avó. Desconheciam o paradeiro da mãe desde que ela foi se prostituir na Espanha. Ela não os procurou por medo do julgamento. “Como ia aparecer na frente deles lisa, lesa e louca? Eu pensava que iam querer me linchar.”

O encontro, porém, ainda não aconteceu. Todos vivem em situação financeira muito apertada e esperam uma ajuda para custear a viagem. O momento em que estiver cara a cara com os filhos, Linda não sabe como será. Não planejou nenhum discurso nem sabe bem o que dizer. “Mas, só de eu poder pedir perdão, será um alívio”, conclui.

A possibilidade de ser absolvida é uma das promessas que movem essas mulheres. Sabem que a chance de ver os filhos crescerem, acompanhar o primeiros passos, o primeiro dia na escola já passou, mas querem desculpar-se pela ausência. “Diria que, mesmo não tento convivido com ele, o amo de todo meu coração. Quero que ele me perdoe, que o que fiz foi pensando no melhor para ele. Talvez ele possa aceitar o meu amor e, quem sabe, me conhecer”, escreve Eva. “Se ele não aceitar, eu vou entender”, lamenta Ilda, que ofereceu seu filho por meio de uma rádio do interior do Paraná.

Mais do que isso, elas querem tirar de dentro do coração e da cabeça dos filhos a angústia de que possam ter sido abandonados um dia. “Quero que ela saiba das circunstâncias em que a entreguei. Ela deve imaginar que foi abandonada, rejeitada. Isso vai ajudá-la também”, afirma Anália, sabiamente.

COMENTÁRIOS

Os comentários são de responsabilidade exclusiva dos autores.