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Tempo livre e ócio criativo colaboram para o bem estar e maior produtividade

Em um mundo em que a concorrência está presente tanto na vida profissional quanto na pessoal, a saída para o sucesso e o bem-estar depende da criatividade, que somente é obtida por meio do ócio

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Lilian Monteiro - Estado de Minas Publicação:06/04/2014 13:00
Ricardo Dias Barbosa aproveita a pescaria esportiva para revigorar (Arquivo Pessoal)
Ricardo Dias Barbosa aproveita a pescaria esportiva para revigorar

Fugir do óbvio. Não se conformar com o pré-estabelecido. Ficar incomodado com a rotina. Buscar o novo. Alimentar a criatividade. O ser humano precisa inovar para evoluir em todas as áreas, sejam emocionais, sejam práticas. Para isso ele precisa de tempo livre e liberdade para exercer o ócio criativo. Só assim é possível equilibrar trabalho e produtividade com lazer e bem-estar.

A vida depende da criatividade: para conquistar um amor, assegurar a vaga de emprego, desenvolver uma máquina incrível ou descobrir a vacina para determinada doença. Não importa. Inspiração para apresentar algo novo é fundamental para a existência. É o oxigênio que move a existência.

O professor e sociólogo italiano Domenico De Masi, autor do livro Ócio criativo, alerta para a urgência de o homem fazer a redistribuição do tempo, do trabalho, da riqueza, do saber e do poder. Ele desenvolve um pensamento sobre o trabalho, o tempo livre e a evolução da sociedade e mostra toda a insatisfação diante do modelo centrado na idolatria do aspecto profissional e da competitividade. "É preciso dar valor à introspecção, ao convívio, à amizade, ao amor e às atividades lúdicas para se tornar um ser criativo."

Tanto é verdade essa necessidade que a professora Kalina Christoff, do Departamento de Psicologia da Universidade British Columbia, no Canadá, provou por meio de imagens de ressonância magnética que o cérebro está bem mais ativo durante o devaneio do que se imaginava. A pesquisa, publicada na revista científica americana Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), comparou esse estado a um momento de raciocínio lógico. Ou seja, mesmo num ritmo menos acelerado, o cérebro está criando. Isso significa que distração e a diversão não são coisas de gente preguiçosa ou folgada. É também um caminho para ter boas ideias, manter a saúde e resolver problemas.

Com uma vida muito atribulada, Virgínia Menezes, do Buffet Catharina, não abre mão de pequenas férias e de momentos com a família (Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
Com uma vida muito atribulada, Virgínia Menezes, do Buffet Catharina, não abre mão de pequenas férias e de momentos com a família


Para divagar a respeito e propor a discussão sob diversos pontos de vista, o Bem Viver conversou com três pessoas que dependem da criatividade na área em que atuam: gastronomia, beleza (cabeleireiro) e publicitário – e dois especialistas, um psicanalista e um neurocientista, que apresentam o pensamento analítico. Prontos para criar?

DE PERNAS PARA O AR
Um publicitário, um cabeleireiro e uma dona de bufê, profissionais que lidam com a criatividade no dia a dia e uma rotina estressante, contam como têm tempo para divagar

O sociólogo e professor Domenico De Masi admite, no livro Ócio criativo que "adoeceu de hiperatividade, já que não conseguia dizer não a nenhum compromisso". Por outro lado, ele deixa claro que "nunca pregou a indolência" e até reconhece  que, às vezes, "o não fazer nada é menos doce do que um trabalho criativo". Portanto, a sabedoria está no equilíbrio. Virgínia Matos de Menezes, de 41 anos, casada com Rodrigo e mãe dos gêmeos Victória e Arthur, de 10, é responsável pelo marketing, atendimento ao cliente e montagem de menu do Buffet Catharina, fundado por sua mãe há 55 anos.

Ao lado dos irmãos, ela não escapa de um dia a dia corrido, que começa às 7h30 e se encerra às 19h30 no bufê, sem contar as horas extras que cumpre em casa até a hora de dormir. "Eu me desdobro para estar disponível como mãe e mulher, mesmo com um trabalho que requer muito. De segunda a sexta estou no bufê das 9h às 19h30 e aos sábados até as 17h. Não consigo ter 30 dias de férias. A última vez foi na lua de mel."

Cabeleireiro Célio Faria tem sagrados 15 dias por ano para se desligar do universo dos cabelos e noivas e abastecer o cérebro com novas ideias (Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
Cabeleireiro Célio Faria tem sagrados 15 dias por ano para se desligar do universo dos cabelos e noivas e abastecer o cérebro com novas ideias


Apesar do ritmo frenético e da dificuldade de desligar, "estava num aniversário e, de repente, me lembrei que um cliente tinha pedido cerveja sem álcool no cardápio e fiquei na dúvida se tinha falado ou não com o maître. Telefonei correndo e a cerveja já estava gelando".

Virgínia reconhece que ela precisa de momentos de serenidade, calmaria, relaxamento e diversão para se conectar com a criatividade que usa diariamente no ramo da gastronomia. "Viagens, feiras, um simples café, almoço ou a passada por uma chocolateria fazem brilhar meu olhar profissional. Eu me alimento de coisas diferentes, um prato bonito me desperta uma ideia que posso desenvolver. Outro dia, me deparei com uma panela linda de cobre que me fez criar um prato especial só para ela. Assim é minha rotina. Mas confesso que, às vezes, no meio de uma reunião que suga, sinto necessidade de parar. É quando deixo de almoçar no bufê, como faço diariamente, por exemplo, e procuro outro lugar para arejar. Tem semana que pesa."

SENSIBILIDADE A vida de Virgínia é mesmo atribulada, mas ela não abre mão de pequenas férias e momentos ao lado da família, que são, basicamente, suas fontes de ócio e criatividade. "Tenho muito energia e não preciso de grandes coisas para descansar. Um fim de semana me deixa bem. Meu astral é bom. Fim de ano, de dezembro a janeiro, é quando preciso viajar. No ano passado, foram 13 dias em Ilhéus. Ao sair do ambiente de trabalho e da rotina tenho como propósito o descanso", comenta.

Depois de 25 anos de mercado, Ricardo Dias Barbosa  conseguiu desacelerar e trabalhar oito horas por dia, reservando os fins de semana para curtir a família e o tempo livre (Cristina Horta/EM/D.A Press)
Depois de 25 anos de mercado, Ricardo Dias Barbosa conseguiu desacelerar e trabalhar oito horas por dia, reservando os fins de semana para curtir a família e o tempo livre


PEQUENAS COISAS "Ajuda demais, porque enxergo o mundo mais leve, o detalhe das pequenas coisas. Se estou atribulada, o olhar não percebe as nuances e perde a sensibilidade. É nos momentos de relax, quando sou servida e mudo de lado, que vejo como é bom e agradável. Aliás, é produtivo também porque noto um drinque diferente, um coquetel novo. A rotina massacrante limita a criatividade. Por isso, é essencial arejar, sair, respirar ar puro. Além das viagens, meus filhos e meu marido, minha mãe, enfim, a família é responsável pelo meu ócio diariamente. Todos eles fazem parte da minha recarga criativa."

EQUILÍBRIO É A BASE

Com 25 anos de profissão, o cabeleireiro Célio Faria, sócio-diretor do Célio Faria Instituto, tem sagrados 15 dias por ano para se desligar do universo dos cabelos e noivas e abastecer o cérebro com novas ideias. "É a folga que tiro para viver, curtir e nada mais." No entanto, por lidar diariamente com a beleza, 12 horas por dia, de terça a sábado, sendo que as segundas e sextas são reservadas para viagens, treinamento e gestão do negócio, ele confessa que o próprio trabalho alimenta sua criatividade. Embaixador da L'Oréal Professionnel no Brasil, Célio precisa estar em Paris duas vezes por ano para apresentar shows de lançamento das coleções, o Haute Coiffure Francaise. "Lido com mulheres de todos os estilos, tipos de cabelo, rosto, meio social, que me pedem para mudar porque cansaram da imagem e, ao mesmo tempo, me impõem barreiras: 'quero cortar só as pontas', 'não gosto de franja'... Tenho de ser criativo o tempo todo e raciocinar rápido. É o que faço."

Célio não para. Ele revela que em casa, no intervalo do almoço, tem um quarto que transformou em laboratório. É onde testa texturas de cabelo, desenvolve penteados, enfim, "é um lugar de estudo, onde faço a prévia do meu trabalho". E, com ritmo alucinante, se sobram alguns minutos, ele confessa se refugiar na varanda em meio a revistas internacionais, para buscar mais inspiração. "Só de folhear minha imaginação é aguçada. Sei que isso tudo é loucura, mas ao mesmo tempo me alimenta. É natural para mim e encaro esses momentos também como relaxamento. Consigo descansar e divertir criando. Funciona comigo." Mas o cabeleireiro sabe que não pode ficar 365 dias nesse pique. Por isso, nos 15 dias especiais, ele foge do mundo.

O neurocientista Guilherme Cunha dos Santos cita estudo americano sobre a relação dos mecanismos neurais e a divagação da mente  (Maria Tereza Correia/EM/D.A Press
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O neurocientista Guilherme Cunha dos Santos cita estudo americano sobre a relação dos mecanismos neurais e a divagação da mente


DIA CURTO

Não faz tanto tempo assim que o publicitário Ricardo Dias Barbosa, sócio-diretor da Flymidia, deixou de encarar sua rotina de trabalho com o pensamento de "o dia era curto para mim". Depois de 25 anos de mercado, ele conseguiu desacelerar e trabalhar oito horas por dia, reservando os fins de semana para curtir a família e o tempo livre. Casado com Cláudia, uma médica, e pai de Laura, de 12 anos, e Gustavo, de 10, Ricardo diz que "o segredo é encontrar o equilíbrio".

Apesar de ter diminuído o ritmo, a produtividade permanece alta, mas ele não despreza os momentos de lazer. "Entendi que numa rotina estafante, num dia a dia carregado ou mesmo sem tempo para desviar o foco, a criatividade para novos negócios e boas ideias não funciona tanto." Por isso, Ricardo estabeleceu dois momentos para reciclar e realimentar. Além de viagens anuais, ainda que menores, "a pescaria esportiva é meu grande momento de isolamento. Desligo celular, fico sem internet e faço uma imersão na Amazônia. Sempre volto com pique total".

SONHAR ACORDADO
Especialistas destacam a importância do ócio criativo e da incessante busca pela realização de desejos. Estudos mostram que o cérebro está bem mais ativo durante o devaneio do que se supunha


Qual a importância de dedicar um tempo de nossa rotina ao ócio, como forma de estimular a criatividade? O sociólogo e professor Domenico De Masi, no livro Ócio criativo, ressalta que "a civilização baseada no ócio faz com que vivam melhor até aqueles que trabalham: porque é mais agradável trabalhar entre pessoas que descansam ou se divertem".

 O trabalho é uma profissão, o ócio é uma arte. Portanto, os escravos do trabalho, aqueles que pararam de pensar, de amar e de jogar para se dedicar totalmente à carreira, sutilmente invejam e tenazmente combatem os mestres de vida que sabem usufruir do ócio e amam apagar a distinção entre arte e vida, como diria John Cage (compositor, teórico musical, escritor, admirador anarquista e artista norte-americano).

 É superimportante sonhar acordado e, claro, buscar a realização desses desejos. Basta lembrar-se do ativista norte-americano Martin Luther King (1929-1968), que organizou a mais contundente reivindicação pelos direitos civis dos negros e alertava a todos no seu discurso: "Eu tenho um sonho". A dimensão é ainda maior quando se depara com o resultado da professora Kalina Christoff, do Departamento de Psicologia da Universidade British Columbia, no Canadá, que provou por meio de imagens de ressonância magnética que o cérebro está bem mais ativo durante o devaneio do que se imaginava.

Domenico De Masi: 'Posso viver o ócio com vantagens para mim e para os outros' (Divulgação)
Domenico De Masi: "Posso viver o ócio com vantagens para mim e para os outros"


 O médico, professor de fisiologia da Faculdade de Medicina da Faseh, mestre em neurociência pela UFMG e editor do neurocurso.com, Guilherme Cunha Santos, diz que um dos achados mais intrigantes da neurociência na última década foi o estudo dos mecanismos neurais de como a mente divaga, do inglês Mind Wandering (MW). "A neurofenomenologia do MW classicamente tem apontado esse estado cognitivo como o grande vilão para tarefas que requerem atenção seletiva, interpretação de textos e memória. O MW é dependente de um grupo de áreas do cérebro (lobo frontal, principalmente) que envolvem córtex pré-frontal medial, cingulado posterior e córtex temporo-parietal. Mas estudos recentes de neuroimagem em humanos têm mostrado que o MW não é tão vilão assim como pensavam os cientistas. Ele desempenha papel crucial na formação da autobiografia de um indivíduo e na resolução criativa de problemas diversos."
 
Ou seja, Guilherme explica que "parece ser uma evidência científica bastante cabal para o tão famoso e falado ócio criativo. O mais intrigante é que a rede formada pelas áreas citadas acima está bastante ativa no MW quando o indivíduo não tem ideia de que sua mente está divagando. Quando ele tem consciência do fato, a rede do MW fica bem menos ativa do que no primeiro caso". No entanto, Guilherme lembra, claro, que há outros fatores responsáveis pelo MW, incluindo os níveis de dopamina. "Podemos concluir que o MW parece ser aquele momento necessário para que uma nova ideia seja incubada, um tempo importante para a reorganização de circuitos neurais subjacentes à automatização de rotinas."

 
ECONOMIA CRIATIVA


Ema artigo publicado na revista Inteligência Empresarial, nº 37, assinado por Edna dos Santos-Duisenberg, economista, diplomata internacional aposentada da ONU e ex-chefe do Programa de Economia Criativa da United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), em Genebra, a autora discorre sobre tempo livre, lazer e economia criativa. Ela diz que a definição de lazer é controversa.

Mas há um certo consenso de que existem três formas: lazer como tempo, lazer como atividade e lazer como estado de espírito. "Lazer como tempo é o chamado tempo livre de obrigações de trabalho e das necessidades fisiológicas. Lazer também pode ser compreendido como as atividades a que as pessoas se dedicam quando dispõem de tempo livre, sem contar as atividades vinculadas à existência, como as horas de sono ou cuidando da casa ou dos afazeres domésticos. Estas atividades podem ser variadas, desde aquelas ligadas à recreação, aos esportes, até as que são mais voltadas ao desenvolvimento humano ou intelectual, tais como ler por prazer. Considerar lazer como estado de espírito é ainda mais complexo, pois depende da percepção individual sobre conceitos diversos, tais como a liberdade, a motivação, a competência, o espírito competitivo etc.

O importante, neste caso, é a possibilidade de escolha." Edna fala ainda sobre a economia criativa, "um conceito relativamente novo, centrado, mas não restrito às artes e às atividades culturais, e voltado para a dinâmica das indústrias criativas e seu impacto na economia global. Trata-se de um grupo de bens tangíveis e serviços intangíveis que têm como insumo principal a criatividade e o capital intelectual, e que se tornou um componente essencial de crescimento econômico, do emprego, do comércio, da inovação e da coesão social." Edna lembra que o comércio de produtos criativos atingiu em 2011, US$ 624 bilhões. "O Brasil, apesar do seu grande potencial criativo, exporta atualmente cerca de US$ 7,4 bilhões de bens e serviços criativos."

OBRA DE ARTE DO INCONSCIENTE

O psicanalista e professor de psicologia da UFMG Guilherme Massara, diz que este é um tema instigante. "A pesquisa que revela dados sobre o Mind Wandering é interessante e atesta como o devaneio se apoia num complexo arranjo de funções cerebrais. Outro dado interessante: que é uma atividade que aumenta na medida em que a mente não está sob a pressão de uma tarefa por realizar."

Conforme Guilherme Massara, para a psicanálise, o devaneio diurno ou noturno, aparentemente desprovido de sentido, às vezes absurdo, incoerente ou estranho, é um processo que traz a marca do inconsciente. "E como tal, traz em sua composição – muitas vezes de forma disfarçada – traços dos desejos, dos temores ou angústias que vivemos. O sonhar acordado não necessariamente resulta numa narrativa que seja portadora de um sentido em si mesma, mas é algo que pode ser interpretado (numa situação específica, ali, trabalhada "no divã") e que pode sim, com isso, revelar algum sentido ao sonhador."

O psicanalista lembra que o termo inglês "wandering" reporta-se à raiz etimológica de "errância" ou divagação. "A lição de Freud é que a errância não é sinônimo de esmo, de aleatório ou de indeterminado. Há caminhos, trilhas e vias traçadas sobre as experiências e memórias inconscientes de cada um de nós e, quando devaneamos, frequentemente essas vias são alimentadas e nos põem diante de algumas verdades difíceis, dolorosas ou proibidas. E são esses caminhos que nos colocam diante das inscrições fundamentais de nossa história e que se mesclam às ficções dos devaneios, cujo resultado, frequentemente, não deixa de exibir também qualidades estéticas. O sonho, e quem sabe também o devaneio, sejam no final das contas aquela pequena obra de arte com a qual nos saúda o inconsciente nosso de cada dia?", questiona.

Para o sociólogo Domenico De Masi , a escolha é a seguinte: "Posso viver o ócio prevaricando, roubando, violentando, entediando-me e explorando. Ou posso vivê-lo com vantagens para mim e para os outros, fazendo com que eu e os outros sejamos felizes, sem prejudicar ninguém. Neste caso, e só neste caso, atinjo a plenitude do conhecimento e da qualidade de vida".

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