Hábito de roer as unhas pode ser sinal de transtorno de ansiedade e causar prejuízos à pele e aos dentes
Psicoterapia ajuda a pessoa a entender a origem da compulsão e enfrentá-la. E atenção: um árbitro britânico teve a morte vinculada ao mau hábito
Isabela de Oliveira - Correio Braziliense
Publicação:10/04/2014 11:30Atualização: 10/04/2014 09:01
A lembrança de uma prova na escola, um dia tenso no trabalho ou um filme de suspense no cinema bastam para que as mãos sejam automaticamente levadas à boca. Adeus, unhas. Após a destruição das estruturas que protegem a ponta dos dedos, vem a difícil missão de esconder as feridas e as deformações que surgem. A situação é velha conhecida de quem sofre com onicofagia, nome dado ao comportamento crônico e descontrolado de roer e arrancar unhas e cutículas com os dentes. Um grupo cada vez maior de pesquisadores tem reservado mais atenção ao problema. Um levantamento publicado recentemente na revista especializada Acta Dermato — Venereologica indica que o hábito é um distúrbio emocional de causas variadas e ligado a problemas como ansiedade.
A onicofagia começa durante a infância ou início da adolescência e pelo menos metade dos indivíduos em idade escolar apresenta o distúrbio. Para muita gente, trata-se de uma compulsão mais difícil de superar que o tabagismo. Mesmo assim, ela costuma ser ignorada por pacientes e médicos, que ainda consideram o hábito inofensivo, com consequências meramente estéticas — o que não é correto. “É surpreendente que esse problema seja raramente relatado na literatura e não tenha sido muito estudado até agora. O prejuízo não é apenas estético. Foi claramente demonstrado que roer as unhas de maneira crônica pode causar anormalidades nos dentes, tais como recessão gengival”, argumenta o principal autor do estudo, Przemyslaw Pacan. Ele acrescenta que o hábito pode causar complicações graves, como infecções da pele ao redor das unhas, que sofrem um encurtamento irreversível.
“A onicofagia parece uma variante de compulsão e pode conduzir à destruição das unhas. Alguns indivíduos relatam prazer e relaxamento, e algumas observações sugerem comorbidades (males associados), como o transtorno obsessivo compulsivo (TOC) ou os transtornos de ansiedade”, diz. As causas ainda são desconhecidas. O que se descobriu até agora, no entanto, é que, para muita gente, o ato é automático, especialmente quando a pessoa está envolvida em uma atividade imersiva, como ver televisão ou ler um livro. Por outro lado, há indivíduos que roem as unhas de maneira intencional. Pacan aponta ainda outro motivo. “Também pode ser resultado de uma necessidade de ter unhas perfeitas. Algumas pessoas tentam morder as irregularidades, mas o comportamento traz mais prejuízos que ganhos. Curiosamente, mesmo que as unhas fiquem feias depois, elas continuam”, relata.
Qualidade de vida
Ranaia Tatsukawa, dermatologista do Hospital Santa Luzia, explica que roer as unhas de forma crônica provoca microtraumas nos dedos. As lesões possibilitam a entrada de bactérias, resultando na paniculite, uma inflamação da pele na região mordida. “Com o tempo, as unhas passam a crescer com defeito e ficam permanentemente distróficas. Observamos em consultório que há muita ansiedade por trás, inclusive em crianças. Quanto mais cedo esse hábito for tratado, mais chances há de superação”, alerta a especialista.
O patologista clínico Izidro Bendet, do Laboratório Exame, destaca outra questão: muita sujeira se concentra nas mãos. Passageiros de transporte público que roem unha, por exemplo, carregam toda a sorte de bactérias encontradas nos veículos coletivos, aumentando a possibilidade de infecções. “Geralmente, esses micro-organismos não causam doenças, mas podem ocasionar problemas respiratórios e gastrointestinais, como diarreia e gripes, pois a mão contaminada com vírus tem contato direto com boca”, alerta o médico.
Ainda que haja dor, ela não parece suficiente para inibir o comportamento. Às vezes, é até estimulante. “A dor prende nossa atenção. É difícil pensar ou fazer outra coisa quando ela se faz presente. Assim, se uma pessoa está ansiosa e começa a roer as unhas, ela rapidamente se distrai da fonte de ansiedade, gerando uma situação de alívio e prazer com a estimulação do tato e do paladar”, explica o psicólogo Felipe Burle dos Anjos. Ele ressalta que a ansiedade não é espontânea e está relacionada a alguma situação. “Frequentemente, a pessoa não sabe o que a deixa ansiosa. A psicoterapia é uma prática que ajuda a descobrir a origem desse estado e a lidar com ela.”
Pacan ressalta que todas essas consequências comprometem a qualidade de vida, pois “as pessoas ficam infelizes ao tentarem parar com o comportamento, sem conseguir”. O autor diz que a frustração provoca na pessoa vergonha e medo de ser considerada fraca. Felipe dos Anjos aconselha a pessoa que sofre com o problema a procurar saber mais sobre a ansiedade, as causas e as consequências. A psicoterapia é a melhor ferramenta, diz, e os remédios devem ser utilizados em último caso. “Outras coisas também podem ajudar a lidar com a ansiedade, como praticar esportes ou artes”, indica o especialista.
Classificação
A onicofagia é mencionada no item F98.8 da Classificação internacional de doenças e problemas relacionados à saúde — 10ª Revisão (CID-10). A publicação qualifica o hábito como um distúrbio emocional, ao lado de outras práticas, como masturbação excessiva, chupar o dedo e cutucar o nariz compulsivamente. No entanto, os critérios de diagnóstico não são bem descritos para esse grupo de doenças.
Maioria inofensiva
Usando técnicas de sequenciamento de genes, pesquisadores da Universidade do Colorado, nos EUA, encontraram mais de 4,7 mil espécies de bactérias distribuídas entre as mãos de 51 participantes de um estudo. Em média, uma única palma hospeda 150 cepas diferentes. As duas palmas compartilham apenas 17% de todas as estirpes, uma variação maior do que a encontrada de uma pessoa para a outra, que é de 13%. Por sorte, a grande maioria dos micro-organismos não é patogênica. Os resultados foram publicados pela revista PNAS.
Duas perguntas para:
Felipe Burle dos Anjos, doutorando em psicologia social, do trabalho e das organizações pela UnB. Especialista em análise comportamental clínica e parceiro do grupo Medicando
O hábito de roer unhas começa nos primeiros anos da infância e se instala com o passar do tempo. Como é o desenrolar do processo?
Roer unhas pode ser um comportamento normal, fruto do ato de a criança explorar e cuidar do corpo. Mas roer unhas como um hábito nervoso está relacionado a um nível de ansiedade intenso e constante, podendo se tornar algo patológico. Roer unhas é um sintoma de um problema ou transtorno de ansiedade. Cada um reage de uma maneira à ansiedade: uns podem atacar a geladeira, outros perdem o apetite. Nossa sociedade estimula ansiedade e estresse. Isso não é exclusividade dos adultos, a infância cada vez mais sofre com cobranças. Por serem menos maduras e terem menos recursos cognitivos e comportamentais, as crianças são mais vulneráveis à ansiedade.
Por que é tão difícil parar de roer as unhas?
As unhas são acessíveis. Elas estão sempre perto da gente. Além disso, o hábito cumpre a função de alívio, por exemplo. É tão difícil parar principalmente porque boa parte dos tratamentos são sintomáticos e miram no sintoma, não na causa do problema. Algumas “técnicas” incluem pimenta nas mãos, esmalte com gosto ruim, medicação e castigo. A melhor maneira de resolver o problema, no entanto, é desenvolver comportamentos para que a pessoa lide diretamente com o problema ou busque ajuda. Assim, trabalhamos o fortalecimento em vez de focarmos apenas nos pontos fracos e vulneráveis.
Um caso fatal
Um árbitro de futebol que roía as unhas até sangrar morreu de um ataque cardíaco duas semanas após completar 40 anos. O britânico da cidade de Wigan John Gardener faleceu em setembro, mas a causa da morte só foi revelada no início de março com a conclusão do inquérito médico. O hábito crônico de roer unhas resultou em septicemia, uma infecção grave e generalizada provocada por patógenos. A enfermidade, que pode ocasionar a falha de órgãos, como o coração, se instalou no corpo de Gardener a partir das feridas ao redor das unhas. Duas semanas antes, o homem deu entrada no Hospital Royal Albert Edward Infirmary, onde foi submetido a uma cirurgia para remover a ponta de um de seus dedos que, a aquela altura, já não tinha sensibilidade. Antes do procedimento, Gardener, que era diabético, foi tratado com antibióticos intravenosos. O britânico havia tentado combater o transtorno com o tratamento para ansiedade e depressão, mas não tinha sido bem-sucedido.
A onicofagia começa durante a infância ou início da adolescência e pelo menos metade dos indivíduos em idade escolar apresenta o distúrbio
A onicofagia começa durante a infância ou início da adolescência e pelo menos metade dos indivíduos em idade escolar apresenta o distúrbio. Para muita gente, trata-se de uma compulsão mais difícil de superar que o tabagismo. Mesmo assim, ela costuma ser ignorada por pacientes e médicos, que ainda consideram o hábito inofensivo, com consequências meramente estéticas — o que não é correto. “É surpreendente que esse problema seja raramente relatado na literatura e não tenha sido muito estudado até agora. O prejuízo não é apenas estético. Foi claramente demonstrado que roer as unhas de maneira crônica pode causar anormalidades nos dentes, tais como recessão gengival”, argumenta o principal autor do estudo, Przemyslaw Pacan. Ele acrescenta que o hábito pode causar complicações graves, como infecções da pele ao redor das unhas, que sofrem um encurtamento irreversível.
Saiba mais...
Em seu estudo, Pacan investigou a incidência do problema em 339 jovens estudantes de medicina. Os resultados mostraram que 46% dos entrevistados tinham ou já haviam tido onicofagia. As mulheres apresentaram maior frequência no transtorno e agiam de forma mais inconsciente. Já 51,5% dos homens admitiram perceber claramente o momento em que levavam a mão à boca. Quanto às comorbidades, boa parte dos adeptos foi diagnosticada com ansiedade (22,5%), e o TOC apareceu com menos frequência (3,1%).-
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“A onicofagia parece uma variante de compulsão e pode conduzir à destruição das unhas. Alguns indivíduos relatam prazer e relaxamento, e algumas observações sugerem comorbidades (males associados), como o transtorno obsessivo compulsivo (TOC) ou os transtornos de ansiedade”, diz. As causas ainda são desconhecidas. O que se descobriu até agora, no entanto, é que, para muita gente, o ato é automático, especialmente quando a pessoa está envolvida em uma atividade imersiva, como ver televisão ou ler um livro. Por outro lado, há indivíduos que roem as unhas de maneira intencional. Pacan aponta ainda outro motivo. “Também pode ser resultado de uma necessidade de ter unhas perfeitas. Algumas pessoas tentam morder as irregularidades, mas o comportamento traz mais prejuízos que ganhos. Curiosamente, mesmo que as unhas fiquem feias depois, elas continuam”, relata.
Qualidade de vida
Ranaia Tatsukawa, dermatologista do Hospital Santa Luzia, explica que roer as unhas de forma crônica provoca microtraumas nos dedos. As lesões possibilitam a entrada de bactérias, resultando na paniculite, uma inflamação da pele na região mordida. “Com o tempo, as unhas passam a crescer com defeito e ficam permanentemente distróficas. Observamos em consultório que há muita ansiedade por trás, inclusive em crianças. Quanto mais cedo esse hábito for tratado, mais chances há de superação”, alerta a especialista.
O patologista clínico Izidro Bendet, do Laboratório Exame, destaca outra questão: muita sujeira se concentra nas mãos. Passageiros de transporte público que roem unha, por exemplo, carregam toda a sorte de bactérias encontradas nos veículos coletivos, aumentando a possibilidade de infecções. “Geralmente, esses micro-organismos não causam doenças, mas podem ocasionar problemas respiratórios e gastrointestinais, como diarreia e gripes, pois a mão contaminada com vírus tem contato direto com boca”, alerta o médico.
Ainda que haja dor, ela não parece suficiente para inibir o comportamento. Às vezes, é até estimulante. “A dor prende nossa atenção. É difícil pensar ou fazer outra coisa quando ela se faz presente. Assim, se uma pessoa está ansiosa e começa a roer as unhas, ela rapidamente se distrai da fonte de ansiedade, gerando uma situação de alívio e prazer com a estimulação do tato e do paladar”, explica o psicólogo Felipe Burle dos Anjos. Ele ressalta que a ansiedade não é espontânea e está relacionada a alguma situação. “Frequentemente, a pessoa não sabe o que a deixa ansiosa. A psicoterapia é uma prática que ajuda a descobrir a origem desse estado e a lidar com ela.”
Pacan ressalta que todas essas consequências comprometem a qualidade de vida, pois “as pessoas ficam infelizes ao tentarem parar com o comportamento, sem conseguir”. O autor diz que a frustração provoca na pessoa vergonha e medo de ser considerada fraca. Felipe dos Anjos aconselha a pessoa que sofre com o problema a procurar saber mais sobre a ansiedade, as causas e as consequências. A psicoterapia é a melhor ferramenta, diz, e os remédios devem ser utilizados em último caso. “Outras coisas também podem ajudar a lidar com a ansiedade, como praticar esportes ou artes”, indica o especialista.
Classificação
A onicofagia é mencionada no item F98.8 da Classificação internacional de doenças e problemas relacionados à saúde — 10ª Revisão (CID-10). A publicação qualifica o hábito como um distúrbio emocional, ao lado de outras práticas, como masturbação excessiva, chupar o dedo e cutucar o nariz compulsivamente. No entanto, os critérios de diagnóstico não são bem descritos para esse grupo de doenças.
Maioria inofensiva
Usando técnicas de sequenciamento de genes, pesquisadores da Universidade do Colorado, nos EUA, encontraram mais de 4,7 mil espécies de bactérias distribuídas entre as mãos de 51 participantes de um estudo. Em média, uma única palma hospeda 150 cepas diferentes. As duas palmas compartilham apenas 17% de todas as estirpes, uma variação maior do que a encontrada de uma pessoa para a outra, que é de 13%. Por sorte, a grande maioria dos micro-organismos não é patogênica. Os resultados foram publicados pela revista PNAS.
Duas perguntas para:
Felipe Burle dos Anjos, doutorando em psicologia social, do trabalho e das organizações pela UnB. Especialista em análise comportamental clínica e parceiro do grupo Medicando
O hábito de roer unhas começa nos primeiros anos da infância e se instala com o passar do tempo. Como é o desenrolar do processo?
Roer unhas pode ser um comportamento normal, fruto do ato de a criança explorar e cuidar do corpo. Mas roer unhas como um hábito nervoso está relacionado a um nível de ansiedade intenso e constante, podendo se tornar algo patológico. Roer unhas é um sintoma de um problema ou transtorno de ansiedade. Cada um reage de uma maneira à ansiedade: uns podem atacar a geladeira, outros perdem o apetite. Nossa sociedade estimula ansiedade e estresse. Isso não é exclusividade dos adultos, a infância cada vez mais sofre com cobranças. Por serem menos maduras e terem menos recursos cognitivos e comportamentais, as crianças são mais vulneráveis à ansiedade.
Por que é tão difícil parar de roer as unhas?
As unhas são acessíveis. Elas estão sempre perto da gente. Além disso, o hábito cumpre a função de alívio, por exemplo. É tão difícil parar principalmente porque boa parte dos tratamentos são sintomáticos e miram no sintoma, não na causa do problema. Algumas “técnicas” incluem pimenta nas mãos, esmalte com gosto ruim, medicação e castigo. A melhor maneira de resolver o problema, no entanto, é desenvolver comportamentos para que a pessoa lide diretamente com o problema ou busque ajuda. Assim, trabalhamos o fortalecimento em vez de focarmos apenas nos pontos fracos e vulneráveis.
Um árbitro de futebol que roía as unhas até sangrar morreu de um ataque cardíaco duas semanas após completar 40 anos. O britânico da cidade de Wigan John Gardener faleceu em setembro, mas a causa da morte só foi revelada no início de março com a conclusão do inquérito médico. O hábito crônico de roer unhas resultou em septicemia, uma infecção grave e generalizada provocada por patógenos. A enfermidade, que pode ocasionar a falha de órgãos, como o coração, se instalou no corpo de Gardener a partir das feridas ao redor das unhas. Duas semanas antes, o homem deu entrada no Hospital Royal Albert Edward Infirmary, onde foi submetido a uma cirurgia para remover a ponta de um de seus dedos que, a aquela altura, já não tinha sensibilidade. Antes do procedimento, Gardener, que era diabético, foi tratado com antibióticos intravenosos. O britânico havia tentado combater o transtorno com o tratamento para ansiedade e depressão, mas não tinha sido bem-sucedido.
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- 03/10/2014
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