Pessoas que superaram traumas viram exemplo de vida
Pessoas que passaram pelo sofrimento e o transformaram em experiência positiva contam como deram a volta por cima e hoje ajudam os outros na superação
Era para ser dor. Foi uma dor. Mas uma dor transformada em algo maior e melhor. Dor aceita e escancarada, modificada para levar algo de bom ao outro e, assim, confortar o outro e a si mesmo. O psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung, criador da psicologia analítica, acreditava que o sofrimento é algo a ser superado, sendo o único meio de superá-lo a capacidade de suportá-lo. E suportar pressupõe conseguir falar sobre ele e reavivar capacidades de enfrentamento.
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Estudos com vítimas do terremoto da Cidade do México, em 1985, e do tsunami asiático, em 2004, revelaram que nem todas as pessoas respondem ao trauma da mesma maneira, sendo que algumas chegaram a ter uma vida melhor com o passar do tempo. A partir de então, pesquisadores se voltaram para a capacidade dos indivíduos de atravessar momentos difíceis e dolorosos e voltar à qualidade satisfatória de vida: a resiliência.
No livro Trauma e superação: o que a psicologia, a neurociência e a espiritualidade ensinam, lançado pela Editora Roca, o doutor em neurociências e comportamento Júlio Peres mostra que é possível aprender com os traumas. Segundo o psicólogo e pesquisador de temas como resiliência e espiritualidade, a maioria das pessoas já sofreu ou sofrerá uma situação potencialmente traumática, ou mesmo situações estressoras cumulativas, que podem deixar marcas nesses indivíduos.
Em 1991, Rosana Antunes, hoje com 52 anos, era uma jovem empresária da moda mineira. Um motorista alcoolizado que sequer a conhecia transformou sua história e a de milhares de pessoas que hoje se beneficiam de sua luta pela valorização da vida no trânsito. Em fevereiro daquele ano, voltando de um passeio com a família no litoral paulista, sua mãe, Rosa, hoje com 76 anos, foi vítima da imprudência, que a deixou tetraplégica e dependente de uma cadeira de rodas.
Rosana assumiu os cuidados da mãe e começou a luta que a acompanha desde então. Coautora do Código de Trânsito Brasileiro, tornou-se militante e especialista na causa. Sua trajetória da dor à superação, e da superação ao bem ao próximo, não é diferente da experiência do médico que, depois de ter leucemia na adolescência, quis cuidar de pacientes como ele. Ou da irmã de um ex-presidiário que hoje promove a profissionalização de detentos. Histórias de gente que fez do limão uma limonada.
TECENDO ESPERANÇA
Projeto Fred transformou a dor da perda em novas perspectivas de vida para presidiários. A cada três dias trabalhados, eles reduzem um dia da pena
Andrea Ambrósio, de 48 anos, era uma criança e já se sensibilizava com a questão dos presidiários. Chorava quando via na TV entrevistas na cadeia. Chorava só de saber que alguém estava preso. Não podia imaginar, naquela época, que seu irmão viveria a mesma situação. Frederico Ambrósio se envolveu muito cedo com as drogas – aos 12, 13 anos. Aos 22, assaltou um posto de gasolina em busca de dinheiro para o vício. Sua prisão foi o fundo do poço para Andrea. “Não contava com a falta de estrutura de uma cadeia. Achava que o sistema dava chances de a pessoa se recuperar”, lembra.
A vida de Andrea mudou naquele exato momento. Toda semana ela levava macarrão, enlatados, biscoitos, tudo o que podia entrar. Para o irmão e para os outros freds – como chama os presidiários – que lá estavam como ele. Tudo de ônibus, fizesse sol ou chuva. Ela também levava linhas e outros materiais para artesanato que Fred pedia. “De certa forma, tudo começou ali. Fred ficou 10 anos preso, e todo esse tempo eu ajudei meu irmão e seus colegas. Era minha família que estava ali. O apoio é uma das coisas mais fundamentais para a recuperação de um interno”, acredita Andrea.
Mas a dedicação à profissionalização de presidiários nasceu da dor de perder o irmão, assassinado, já livre, depois de ter cumprido sua pena. Quando Fred morreu, Andrea ficou seis meses na cama, com depressão, até que viu o artista plástico Ivan Volpi na primeira página do Estado de Minas. Ele tinha acabado de desenvolver uma nova técnica de tapeçaria, a trama sem nó, e ela viu na arte dele um modo de mudar a perspectiva dos internos, de permitir a eles um resgate da esperança. Queria levar a trama sem nó para dentro dos presídios.
“Não sei o que houve. Simplesmente acordei com a ideia de ensinar um ofício aos internos, para que pudessem se sustentar. Acho que foi um chamado. Minha missão é essa: ajudar outros freds”, lembra. Andrea procurou a Penitenciária Nelson Hungria. Queria uma instituição totalmente fechada. Queria ajudar os presos que passavam todo o tempo trancados. Naquela época, apenas 10 internos tinham autorização para sair da cela e costurar bolas. Tudo mudou depois do Projeto Fred. Em 16 anos, 30 mil pessoas aprenderam a fazer a trama sem nó e dela tirar seu sustento. Metade delas, presidiários.
Os cursos de tapeçaria, de seis meses de duração, são ministrados dentro dos presídios de todo o estado, duas vezes por semana. Para participar só é preciso boa vontade e bom comportamento. As aulas são dadas por artistas plásticos e monitores. Durante o curso, os alunos têm que produzir três peças – uma pequena, uma média ou uma grande – que podem ou não vender. Depois, o que produzem vai sendo vendido em exposições itinerantes. Cem porcento da renda fica para o artesão, sendo parte dela destinada a um tipo de poupança para quando saírem do presídio. A cada três dias trabalhados, eles reduzem um dia na pena.
DIGNIDADE
Ver a recuperação dos internos é gratificante para Andrea. “Mostramos que existem outros caminhos a serem seguidos. O resgate da dignidade, das provas de amor e respeito ao próximo é o ponto de partida para que essas pessoas tomem um novo rumo. A mudança é radical, aquilo que parecia impossível aos nossos olhos se torna possível com palavras-chaves, como cidadania, dignidade e amor”, acredita Andrea, que se emociona com as histórias que acompanhou todos esses anos. Como a do interno que pagou a faculdade da namorada com o dinheiro dos tapetes. Como a de um ex-colega de cela de Fred, beneficiado.
“Desde o início, quando ia às penitenciárias, ficava feliz em ver os internos como meu irmão foi um dia. Eles me contavam histórias, agradeciam, revelavam tudo que o trabalho com os tapetes lhes permitia. Diziam, por exemplo, não terem a liberdade para pegar um peixe, mas poderem tocar o peixe que faziam nos tapetes. Via essa alegria no olhar deles, eles estavam realmente sorrindo, e eu chegava em casa feliz por ter começado tudo isso. Estou em paz em saber que meu irmão sofreu, mas que foi em benefício de outros. Minha dor foi transformada em amor.”
UM CHAMADO DE DEUS
Pesquisa mostra que pessoas com religiosidade superam obstáculos mais facilmente que outras sem religião. O ideal é buscar a superação
As reações a um trauma são diversas, mas são dois os caminhos possíveis: cultivar o sofrimento ou buscar a superação. Experiências de dor levam a uma condição de fragilidade e incapacidade, mas superá-las traz confiança. E a crença em uma força maior ajuda. Estudos comprovaram que pessoas com uma religiosidade intrínseca são capazes de superar adversidades mais facilmente que pessoas sem qualquer religião. Para Júlio Peres, doutor em neurociências e comportamento, a religiosidade promove uma atribuição de significados que facilitam a recuperação. Ela pode dar ordem e compreensão aos eventos dolorosos e imprevisíveis. Pode, nessas situações de vulnerabilidade, dar um significado maior ao trauma.
Vinte e três anos depois da imprudência do motorista que deixou sua mãe tetraplégica, a especialista em projetos de redução de acidentes de trânsito Rosana Antunes, de 52 anos, ainda se impressiona com a resignação, serenidade e força de vida de Rosa, de 76 anos. “Nunca a vi chorando por causa disso. Nunca a ouvi proferir qualquer palavra de revolta”, conta. Rosana lembra que os médicos que cuidaram da mãe na época a alertaram que era comum uma mudança de personalidade quando alguém passava por uma vivência de dor como a de Rosa. Mas isso não oorreu. “Ela não mudou em nada sua essência. Continuou amorosa e doce e aceitou ser cuidada como já tinha cuidado de tantos outros antes”, diz.
Rosana também entendeu a decisão de deixar seu negócio para se dedicar aos cuidados com a mãe, e a militância na causa do trânsito, como um chamado de Deus. “Foi uma convocação, como se ele me dissesse: ‘Faz isso! Entendi que essa era minha missão. Era mais importante tentar salvar vidas e evitar que outras pessoas tivessem sequelas graves, o que também diminuía meu sofrimento. Aceitei como um desígnio de Deus. Fui um instrumento para salvar outras vidas”, acredita. Rosa passou três anos em um hospital de reabilitação. Rosana se mudou para o lugar para cuidar dela. Foi nesse momento que viu outras histórias parecidas e quis lutar.
O sofrimento de mães que tinham os filhos vitimados levou Rosana à luta por um novo olhar para a vida e para o trânsito. Uma longa pesquisa revelou o despreparo para o socorro de acidentados e a falta de itens de segurança obrigatórios nos carros. Ela preparou um dossiê e encaminhou para o presidente de cada fabricante de veículos, procurou órgãos ligados ao trânsito e até o Presidente da República. Rosana se formou em comunicação e se especializou em gestão de projetos de trânsito. Fundou o primeiro núcleo universitário do país para a humanização do trânsito, no Centro Universitário Newton Paiva, apresentou um programa sobre o tema na TV Alterosa e participou até de uma conferência da ONU sobre o assunto.
DESCASO
Há mais de duas décadas é porta-voz da causa e confessa que o descaso dos governantes com um assunto tão grave a fez dar um tempo, período no qual se dedicou a um novo projeto, não mais de trânsito, mas outro movimento que vai levar esperança às pessoas. E depois de duas décadas lutando por uma causa, viu o trânsito fazer mais uma vítima em sua família. No fim de março, Rosana perdeu o irmão em um acidente de moto na estrada. “Se eu tivesse só cuidado de minha mãe e não entrado nessa luta, teria sido tudo diferente. Mas minhas virtudes cristãs foram mais fortes. Tentei, todo esse tempo, mantê-las e praticá-las. É preciso ter compaixão e pensar no outro para termos um mundo mais alegre.”
TRÊS PERGUNTAS PARA...GILDA PAOLIELLO
Psiquiatra e psicanalista
1) Por que algumas pessoas lidam melhor com sofrimentos e traumas?
A noção de sofrimento e trauma é bastante subjetiva. O que é traumático para João pode servir de estímulo para Antônio. Uma pedra no caminho pode ser obstáculo para uns e escada para outros, como nosso poeta Drumond que fez da pedra no meio do caminho um mote para sua vida. Tudo que somos é uma somatória de nossa carga genética, do que recebemos do mundo desde a idade mais precoce e, principalmente, do que fazemos com isso. Responsabilizarmo-nos pelo que fazemos de nossas vidas é fator fundamental. Talvez seja esse o ponto de distinção entre as pessoas: as que se responsabilizam pela própria vida e as que se colocam como vítimas. As primeiras são as que geralmente conseguem fazer de situações de sofrimento um impulso para crescimento. O que define um comportamento positivo diante de um trauma é não nos subjugarmos às contingências, transformando a adversidade em fator de crescimento.
2) A superação é uma experiência possível para qualquer pessoa?
As pessoas enfrentam as dificuldades de formas distintas, de acordo com suas possibilidades subjetivas. Às vezes, presenciar um acidente de trânsito é situação limite para uns, enquanto outras pessoas passam até por campos de concentração e se tornam grandes humanistas, superando as dificuldades vividas (ou para superar essas dificuldades).Esse limite é subjetivo e a postura de cada um vai ser determinada pelos fatores estruturantes do psiquismo da pessoa: sua carga genética e os fatores adquiridos desde a época mais precoce. Na educação infantil, a criança aprenderá a alcançar um limiar amplo para superar dificuldades se introjetar segurança e autoconfiança. Uma educação com superproteção caminhará no sentido oposto. Cada etapa da vida é uma superação, com perdas e novos ganhos. A criança que não aceita essas perdas ou que recua frente às necessidades de novas conquistas permanecerá imatura e terá mais dificuldades com as vicissitudes da vida.
3) Podemos falar em uma recompensa quando uma pessoa consegue transformar o sofrimento em algo bom para ela mesma e para a sociedade?
Transformar o próprio sofrimento em algo bom para si e para a sociedade é se sublimar, é sair da posição de individualidade egoísta e alienante. Esta "saída" permite relativizar a própria dor, permitindo ultrapassá-la.
DA VIVÊNCIA, A PROFISSÃO
Evitar a autovitimização é um bom recurso para lidar com o sofrimento. Afinal, o que se diz para os outros e para si mesmo pode aliviar ou exacerbar o sentimento. Aqueles que acreditam que o futuro trará conforto podem encarar melhor o presente. Depois de uma experiência de dor, é importante descobrir a importância de seguir adiante, ter novos objetivos, assumir um novo projeto. O trauma vai perdendo força. Márcio Antônio Portugal Santana, de 42 anos, fez de sua vivência com a leucemia, na adolescência, sua profissão. Médico hematologista, ele viu na possibilidade de tratar pessoas como ele uma forma de dar aos seus pacientes o que não teve. Mas não é fácil esquecer.
O diagnóstico foi aos 14 anos. Era um tipo de leucemia rara, mais comum em adultos, o que deixava uma única alternativa de tratamento: transplante. Parte da família precisou se mudar para Curitiba (PR), referência no tratamento naquela época, e a irmã mais velha de Márcio foi a doadora. O garoto já sonhava em fazer medicina, mas a doença influenciou totalmente a decisão pela especialidade. “Acho que era uma necessidade que eu tinha. Foi um processo muito sofrido em uma faixa etária importante na vida de um garoto. Era época dos relacionamentos e eu perdi muitos amigos. O tratamento me transformou fisicamente, não me sentia bem para a vida social. A leucemia me marcou muito, de forma negativa.”
Esse mesmo sofrimento estimulou Márcio a atuar com transplantes. A ideia era tentar passar o que tinha vivido aos pacientes para tranquilizá-los. “Queria confortá-los. Os médicos que cuidaram de mim não me entendiam. Fiquei cheio de manchas no corpo, isso me incomodava, mas para eles o importante era o transplante dar certo e a pessoa sobreviver. Queria dar ao procedimento um olhar mais humano.” Mas Márcio reviveu em seus pacientes seu sofrimento e decidiu se afastar dos transplantes e ajudar de forma indireta. “Sinto prazer em conversar com esses pacientes. Eles se animam em me ver bem quase 30 anos após o tratamento. É minha forma de agradecer. Não quero que sofram como eu sofri.”