'Psiquiatria e teologia se completam'; leia entrevista com Dan Blazer

Autor de vários livros que tratam da relação entre a religião e os mistérios da mente, o psiquiatra e cristão norte-americano convive nos dois mundos e analisa os transtornos psiquiátricos sob essa ótica

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Gláucia Chaves - Revista do CB Publicação:23/10/2014 15:00Atualização:23/10/2014 10:46
A busca por amparo é algo intrínseco ao ser humano. A procura é, também, um caminho pessoal: enquanto alguns encontram aconchego emocional na religião, outros preferem apostar nos conhecimentos da ciência para aplacar angústias, resolver conflitos e entender a si mesmo e o mundo. Uma terceira opção, talvez não tão popular, também é possível. Unir teologia e psicologia é o campo de estudo de Dan Blazer, psiquiatra autor de diversos livros e artigos sobre o assunto, como Freud versus Deus: Como a psiquiatria perdeu a alma e o cristianismo perdeu a cabeça (Editora Ultimato). O psiquiatra americano esteve em Brasília como convidado especial do 32º Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Antes, concedeu, por e-mail, entrevista à Revista para falar sobre a relação entre religião e psiquiatria.

Professor na Duke University School of Medicine, é autor de 19 livros, entre eles, The age of melancholy: major depression and its social origins (sem tradução para o português) — obra que deu a ele o Oscar Pfister Award, pela integração entre religião e psiquiatria. Blazer fala com a propriedade de quem convive nos dois mundos. Além de psiquiatra, é cristão.


Qual seria o papel da religião e da espiritualidade no tratamento de transtornos psiquiátricos?
Sofrimento emocional e transtornos psiquiátricos vão ao cerne do que somos como pessoas. Seja qual for a causa, tal como sofrimento, comportamento desordenado ou pensamentos que surgem a partir de um transtorno psiquiátrico, vão impactar o núcleo espiritual de cada um de nós. Não podemos entender a dor infligida por um distúrbio como depressão crônica se não entendermos como a dor é sentida, espiritual, psicológica e fisicamente. Uma vez que entendemos o componente espiritual da dor, podemos recorrer aos recursos espirituais da pessoa que sofre, bem como os recursos da comunidade de fé a que pertence a pessoa, se ela pertencer a alguma (e a maioria tem um relacionamento com uma comunidade de fé) .

'Eu acredito que ambos, psiquiatras e teólogos, devem abrir suas mentes para as opiniões dos outros e não descartá-las' Dan Blazer, psiquiatra (Divulgação)
"Eu acredito que ambos, psiquiatras e teólogos, devem abrir suas mentes para as opiniões dos outros e não descartá-las" Dan Blazer, psiquiatra
É possível que uma “religiosidade excessiva” ocasione transtornos mentais?
Sim, especialmente entre pessoas que se ligam a um movimento de culto e transferem todo o controle de suas vidas para outra pessoa, sob o pretexto de desenvolver uma vida espiritual mais profunda. Muito dano pode ser feito a pessoas suscetíveis a transtornos mentais pelos chamados líderes espirituais, que não reconhecem isso e prejudicam o bem-estar psicológico das pessoas que colocaram sua fé em tais líderes. No entanto, devemos reconhecer que os transtornos mentais por si só podem (sem qualquer coerção externa) se manifestar através da espiritualidade excessiva. Durante a era puritana nos EUA, encontramos casos bem documentados de indivíduos com depressão grave (geralmente mulheres) que se tornaram excessivamente religiosas e, posteriormente, se comprometeram com exercícios espirituais extremos, como o jejum prolongado.

Estamos nos tornando mais melancólicos e depressivos ou o problema sempre existiu, mas só agora está sendo discutido?
O problema da depressão severa (ou o que nós geralmente pensamos como sendo melancolia) tem estado presente, tanto quanto sabemos, desde os primórdios da civilização. No entanto, existem características da sociedade moderna que nos colocam em risco especial para a depressão. Nossa sociedade é muito complexa. Isso aumenta nosso estresse percebido, um estresse que não diminui ao longo de grandes períodos de tempo. O estresse e a ansiedade resultante que sentimos, eventualmente, podem causar depressão grave ou melancolia. Além disso, em muitos lugares, as pessoas não se sentem seguras. O constante estado de vigilância, tentando evitar a violência, certamente pode aumentar a frequência de depressão. A ameaça de violência é sentida não só por aqueles em perigo imediato, mas também pela maioria de nós por meio das imagens que vemos quase que instantaneamente na mídia.

Psiquiatria e teologia são dois conceitos opostos? Por quê?
Prefiro vê-los como complementares. Só quando nos recolhemos em um único modo de olhar o mundo, com pouco respeito por outros pontos de vista, os dois campos entram em conflito. Quando a psiquiatria tem uma visão totalmente materialista da humanidade, quando se descarta a importância da natureza espiritual das pessoas, ela certamente será contrária à teologia. Quando a teologia não reconhece que Deus dá as ferramentas que a psiquiatria usa para curar o sofrimento emocional, quando a teologia não considera as realidades do sofrimento humano através das doenças psiquiátricas, então ela certamente vai se opor à psiquiatria. Eu acredito que ambos, psiquiatras e teólogos, devem abrir suas mentes para as opiniões dos outros e não descartá-las. Freud, psiquiatra e ávido ateu, não descartou a teologia. Ao contrário, ficou intrigado com a teologia e, talvez, a levou consigo em sua amizade que mais durou, com um ministro presbiteriano que estava interessado em psicanálise, Oscar Pfister. Precisamos continuar essas relações entre líderes espirituais, como Pfister, e psiquiatras, como Freud. Eles podem não concordar, podem até parecer estar em extremos opostos, mas, se conversarem, se compartilham ideias, se fizerem um esforço para entender um ao outro, então eu acredito que muito do conflito desaparecerá.

Você acha difícil equilibrar psiquiatria e religião? A psiquiatria afetou sua fé?
A psiquiatria em nenhum momento me fez duvidar da minha fé. Na verdade, minha fé tem evoluído ao longo das décadas em que venho praticando a psiquiatria. Quando entrei na psiquiatria, prometi a mim mesmo que não permitiria que meu crescimento espiritual como cristão ficasse atrás do meu crescimento como psiquiatra acadêmico. Eu começo todas as manhãs com uma hora de oração e estudo religioso. Ao longo das décadas de minha vida como cristão que pratica psiquiatria, muitas perguntas sobre sofrimento emocional e seu tratamento têm sido respondidas, mas muitas continuam sem resposta. No entanto, eu não me preocupo em não ter encontrado todas as respostas. Como um psiquiatra acadêmico, eu sei que nunca encontrarei todas as respostas e, na verdade, minha carreira seria muito chata se não houvesse perguntas restantes no horizonte para perseguir. Como cristão, eu acredito que Deus está acima de tudo e em todos. Não posso “cavar” as profundezas de sua sabedoria e poder. Em vez disso, fico maravilhado com sua criação. Por isso, em muitos aspectos, acho que minha vida como psiquiatra acadêmico e cristão não está em conflito; é uma vida significativa de admiração e louvor. Minha fé só fez crescer nesses anos de psiquiatria. E espero e confio que me tornei um psiquiatra cada vez mais competente e solidário por causa da minha fé.

Muitos acham na religião uma forma de aliviar o sofrimento. Outros preferem ver um psiquiatra. Qual é a diferença entre os dois métodos?
Mais uma vez, acredito que a distinção “esse ou aquele” não é válida. Tomemos, por exemplo, alguém sofrendo de depressão grave. Se a pessoa recusar a assistência que um psiquiatria pode fornecer, essa pessoa está ignorando dons que Deus tem proporcionado para a cura. Por outro lado, a depressão grave pode desafiar a fé e o senso de sentido da vida até mesmo dos cristãos mais dedicados. O tratamento psiquiátrico não pode por si só responder a esse desafio. Pelo contrário, a comunidade da fé deve ajudar a pessoa a passar por esse período de sofrimento e ajudá-la a restabelecer a sua fé e o sentido da sua vida.

Thomas Keating fez uma ligação entre pecado original e a sensação de nunca estar satisfeito. O pecado original, então, seria a perda da inocência, o momento em que percebemos que precisamos de algo mais. Há estudos em psiquiatria nesse sentido?
Infelizmente, a psiquiatria tem ignorado tais questões nos últimos anos, especialmente com o surgimento da psiquiatria biológica. Esse tipo de investigação é exatamente em que psiquiatras e teólogos poderiam trabalhar juntos para entender melhor a profundidade da condição humana. Gostaria de acrescentar uma nota de cautela, no entanto. Nem a psiquiatria nem o cristianismo está livre de uma perspectiva particular sobre o mundo. A psiquiatria hoje é muito impulsionada por uma visão determinista, materialista da existência humana, embora eu suspeite que a maioria dos psiquiatras não está plenamente consciente das implicações dessa dominação biológica dentro de nosso campo. No entanto, a psiquiatria no passado (e, suspeito, no futuro) abraçou outras perspectivas holísticas, que reconhecem o escopo completo do florescimento humano. Os cristãos são cristãos, não judeus, hindus, muçulmanos etc. Não devemos supor que a nossa perspectiva cristã é a única sobre a interseção da fé e da psiquiatria.

Se você tivesse que escolher, escolheria Darwin ou Gênesis?
Sou grato de não precisar ter que escolher (embora alguns insistam que a escolha deve ser feita). Em minha opinião, a mensagem fundamental do Gênesis é que Deus criou o mundo, criou o homem à sua imagem, e continua a sustentar a sua criação, eventualmente, para resgatá-la. O Gênesis não é um tratado científico, mas é interessante notar que o surgimento da “teoria do big bang” sobre a origem do universo coincide com a ordem de Deus para que haja luz, nos primeiros versículos de Gênesis. Acredito que aprendemos muito sobre como a vida na Terra mudou ao longo do tempo, mas ainda sabemos pouco sobre como a vida surgiu, especialmente a existência humana. E eu acredito que a teoria da evolução nos proporcionou uma estrutura para entender muito dessa mudança ao longo do tempo. Podemos ver a evolução como um processo ainda hoje, quando vemos como mutações e/ou variações genéticas de organismos podem ser adaptáveis a determinados ambientes. No entanto, estamos diante de uma tarefa muito mais difícil quando tentamos olhar para trás, para as origens. Deus é o criador, eu sou a criatura. Não estou preocupado de não conseguir explicar em detalhes os mecanismos das minhas próprias origens ou as do universo. As escrituras dizem que “a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não veem”. Eu posso viver com o mistério.

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