Falta de cuidado com a saúde mental leva médicos à depressão, dependência química e ao suicídio
Especialistas se reúnem em Nova Lima para I Jornada Brasileira de Saúde Mental dos Médicos, nos dias 28 e 30 de março
Valéria Mendes - Saúde Plena
Publicação:27/03/2014 09:00Atualização: 27/03/2014 10:05
Autossuficiência é a palavra que pode sintetizar a dificuldade que o médico tem de procurar ajuda quando adoece. No livro, ‘Médico como Paciente’, a autora e doutora em psiquiatria Alexandrina Meleiro cita o benefício da ignorância como um fator que protege a pessoa leiga de compreender o que vai lhe acontecendo e permite que esse paciente acredite na palavra do médico. Nesse contexto, sentimentos como onipotência e vergonha fazem com que muitos profissionais assumam a automedicação. As consequências são variadas, mas quando o assunto é saúde mental, vemos a categoria amargar incidência alta de dependência química, depressão e taxa de suicídio. No Brasil, essa discussão ainda é tímida, mas os profissionais da saúde terão a oportunidade de trocar experiências na ‘I Jornada Brasileira de Saúde Mental dos Médicos’, promovida pela Academia Mineira de Medicina nos dias 28 a 30 de março, no auditório do Instituto Biocor, em Nova Lima.
Psiquiatra, coordenador da Comissão de Atenção à Saúde Mental dos Médicos, membro emérito da Academia Mineira de Medicina e idealizador da I Jornada Brasileira de Saúde Mental dos Médicos, José Raimundo da Silva Lippi lembra que as pessoas podem alcançar um nível intelectual muito grande, mas mesmo assim ser emocionalmente frágil. “A saúde mental é um estado que vai sendo alcançado através da capacidade que o ser humano tem de tolerar níveis cada vez maiores de tensões e de frustrações. O homem saudável não é aquele que vence as frustrações, porque elas não são elimináveis, mas sim o que tolera bem os níveis de decepção”, explica.
Para ele, os médicos são motivados pelo desejo de salvar vidas e a Jornada quer chamar a atenção não só da classe médica, mas também da população para a peculiaridade da profissão e os riscos que envolvem esse lavor. “Falta de condições de trabalho, excesso de carga horária, a tensão da relação médico-paciente são alguns fatores que aumentam a vulnerabilidade do médico em relação a outras profissões. É alguém que precisa conviver com a frustração de não ter salvado uma vida. Às vezes, por imaturidade ou por se considerar um ‘semideus’ sofre mais que os outros”, enfatiza. Lippi acredita que os profissionais precisam se livrar das amarras da onipotência de acharem que sabem de tudo, de deixar a vergonha de lado e procurar ajuda. “Nenhum médico é obrigado a saber toda a medicina, os colegas estão aí para isso”, diz.
Lippi afirma que a depressão é a doença mental mais comum entre os médicos, inclusive entre os psiquiatras. “Todos são suscetíveis a patologias de ordem mental, principalmente aqueles que não se cuidam. É importante lembrar que o remédio cuida do sintoma, mas as causas precisam de atenção na psicoterapia. O médico pode ser um bom ‘receitador’, mas se não souber o que o cliente tem, não vai resolver o problema”, explica. Por isso, a automedicação não deve ser vista como solução.
Suicídio
“Os médicos se suicidam cinco vezes mais que a população geral”, afirma a psiquiatra Alexandrina Meleiro, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), coordenadora da Comissão de Estudos e Prevenção de Suicídio da ABP e membro do Grupo de Atenção da Saúde Mental do Médico. Apesar de ser uma atitude drástica, a Organização Mundial de Saúde (OMS) vem alertado para o aumento da incidência na taxa de suicídio: um milhão de pessoas se mata no mundo anualmente ou uma morte a cada 40 segundos. No Brasil, observa-se um crescimento de 30% no suicídio entre jovens do sexo masculino nas últimas décadas. Entre os médicos, segundo Alexandrina, os mais vulneráveis estão na faixa etária de 35 a 50 anos.
Suicídio tem prevenção. Isso por que a quase totalidade dos casos – 99% - está associada a um transtorno psiquiátrico. A saúde mental é negligenciada por motivos que vão desde a falta de uma rede de apoio organizada para atender o paciente, no caso do Brasil, até não ser reconhecida socialmente como doença em muitos casos. No senso comum, por exemplo, a depressão é confundida com episódios de tristeza e desventuras da vida. Todo esse contexto de preconceito, falta de informação e tabu agrava a busca por ajuda quando o doente é o médico. Problemas de ordem mental ainda são vistos como motivo de vergonha e assunto para – se for para conversar – que seja baixo para ninguém ouvir. Enquanto isso, pessoas têm suas vidas desestruturadas, muitas tentam se matar para amenizar o sofrimento e outras tantas conseguem.
O suicídio é um tema tão complicado que é estimado um número de vítimas duas ou três vezes maior em razão da subnotificação ao registrar a causa da morte. Curiosamente, no caso de médicos, a psiquiatra Alexandrina Meleiro aponta em artigo intitulado ‘Suicídio na população médica: qual a realidade?’, publicada na edição deste mês da Revista Brasileira de Medicina, uma situação contrária. “Na população geral, existe uma tendência de o médico não registrar que a causa da morte foi por suicídio. Geralmente, registra-se a causa externa da internação, como, por exemplo, queda de altura, envenenamento, intoxicação exógena (excesso de remédio). Um levantamento de atestados de óbitos feito pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) mostrou que, quando a profissão da vítima era a medicina, a palavra suicídio aparecia. Uma das hipóteses é que, por se tratar de um colega, o rigor da notificação é maior. E aí fica a pergunta: será que, de fato, os médicos se suicidam mais ou houve um zelo maior quando se tratava de médico? A resposta eu não sei”, problematiza a psiquiatra.
Alexandrina Meleiro afirma que outra razão para a subnotificação na população geral é que os seguros de saúde e seguros de vida geralmente não cobrem situações de ato voluntário contra a própria vida. “É comum na prática médica registrar a causa externa para proteger a família da vítima”, explica.
O levantamento do CREMESP publicado em 2012 mostra também que, entre as causas externas de morte de médicos em São Paulo, o suicídio aparece em segundo lugar: 21% no caso das mulheres e 18% em homens (veja gráfico). Em primeiro, está o acidente automobilístico, mas para Alexandrina Meleiro, paira uma dúvida: “Foi um acidente de fato ou a vítima usou o carro como meio de suicídio?”, questiona. “Temos um alto índice de mortes por acidentes automobilísticos entre os médicos jovens e não há diferença entre os gêneros. Há um quadro autodestrutivo em que indivíduo teria alguma intenção suicida, são os chamados ‘autocídios’”, explica.
1. Manifestam especial vulnerabilidade ou experiências de eventos circunstanciais diferentes (recente perda profissional ou pessoal, problemas financeiros ou de licença) em relação aos outros médicos;
2. Tendem a trabalhar mais horas que os outros colegas;
3. Tendem a abusar de álcool e outras substâncias;
4. Estão mais insatisfeitos com suas carreiras médicas que outros médicos;
5. Dão sinais de aviso da intenção de suicidar-se a outros;
6. Têm transtorno mental e emocional com mais frequência;
7. Tiveram dificuldades na infância e seus problemas familiares são comuns;
8. Automedicam-se mais frequentemente que os outros colegas
Dependência química
Trabalho realizado em 2004 na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) intitulado ‘Perfil Clínico e Demográfico de Médicos com Dependência Química’ mostra que os médicos apresentam taxas similares de uso nocivo e dependência de substâncias em relação à população geral. A incidência varia entre 8% e 14%. O estudo coletou dados de 198 médicos em tratamento ambulatorial por uso nocivo e dependência química.
A frequência de uso nocivo e dependência de opióides (anestésicos derivados da morfina) e BZD ou benzodiazepínicos (popularmente conhecidos como tranquilizantes de tarja preta) é aproximadamente cinco vezes maior entre os médicos que na população geral. Alexandrina Meleiro aponta que o uso de opióides é motivo de suicídio principalmente entre anestesistas.
José Raimundo Lippi alerta ainda que a facilidade de acesso a esses opiácios é uma porta de entrada para a dependência química entre médicos. “Drogas medicinais que só são encontradas em hospitais, principalmente as medicações usadas em anestesia, aparecem como solução para o alívio de tensão”, afirma. Gráficos abaixo mostram alguns resultados do estudo da Unifesp:
Drogas mais consumidas entre os médicos acompanhados:
Especialidades médica mais envolvidas em dependência química:
O estudo mostrou também os diagnósticos mais encontrados. Em primeiro apareceu a depressão, seguida de transtorno afetivo bipolar e transtornos de personalidade. Na sequência, esquizofrenia e transtorno de ansiedade generalizada. Os pesquisadores apontaram ainda as situações facilitadoras para dependência de drogas. Veja:
DEPOIMENTO:
Super-herói de carne e osso
Uma médica e professora universitária de Belo Horizonte que não quer ser identificada conversou com o Saúde Plena. Ela será chamada de Márcia e conta que já se envolveu emocionalmente em histórias não apenas de colegas de profissão, mas de amigos e nomes de referências na medicina que se perderam em jornadas exorbitantes de trabalho que, segundo ela, variam entre 80 a 100 horas semanais. “O médico tem adoecido por um excesso de cobrança, falta de descanso, de sono reparador, uma dieta inadequada, falta de tempo com a família e de uma atividade física, um quadro que leva a uma sobrecarga mental. A carga de responsabilidade é tão grande que muitas vezes conduz a um estado de exaustão”, afirma ela.
Nas três histórias que Márcia acompanhou de perto os profissionais não procuraram ajuda. “A fiscalização não é rígida a esse ponto. O médico pode, por exemplo, prescrever o remédio para esposa, mas para ele usar. Eu mesma já prescrevi para mim. Às vezes é uma questão de praticidade e pode começar com um medicamento para ajudar a dormir. No meu caso, nunca me tratei sozinha e nunca fui dependente de nada, mas tenho várias histórias para contar de ex-professores e amigos. Eles precisaram ser afastados e, em alguns casos, se envolveram até em problemas judiciais”, relata.
O primeiro foi de uma professora referência em trauma com atuação no setor de urgência e emergências de hospitais na cidade. “Era uma pessoa extremamente capacitada, mas tinha uma jornada de trabalho de quase 100 horas semanais. Ela amava o trabalho que fazia e não era casada. Não cuidava quase nada da vida pessoal. Foi quando começou a injetar no próprio corpo um medicamento chamado fentanil que traz uma sensação de alívio, mas é perigosíssimo porque causa várias alterações no organismo e pode até provocar a morte das pessoas. Ela entrou num ciclo de vício tão grande que começou a roubar o remédio do hospital para sustentar o vício. Lembro de um dia ela chegar na sala de aula com a marca do garrote no braço. Foi um choque muito grande por ela ser uma referência para inúmeros profissionais e parou, inclusive, de exercer a medicina”, conta.
Márcia também se recorda de uma história que, infelizmente acabou em morte. “Ele era um padrinho na medicina para mim. Além da graduação em medicina, tinha também a de farmácia. É um exemplo de um profissional que trabalhava muito e começou a oscilar entre buscar uma vida mais equilibrada e entrar na destruição total. Nesse período, os colegas mais próximos costumavam brincar que ele tinha a época do zig, em que comia bem, dormia bem, não bebia e fazia exercício físico; e a época do zag, em que bebia todos os dias e, por compulsão alimentar, comia tudo que viesse na cabeça. Teve um dia em que ele foi buscar umas daquelas fitinhas de exame para detecção de glicose na urina e foi ao banheiro. Como ficou um pouco de urina na mão dele e ele segurou as fitinhas, fez o exame e acabou descobrindo que estava diabético. A pressão arterial dele também era desequilibrada e, aos 53 anos, faleceu de infarto agudo do miocárdio”, recorda-se.
A médica cita também o caso de uma colega casada e com filhos que pegava muitos plantões por semana para, segundo Márcia, pagar as contas. “Ela não descansava. Uma noite, saindo de um desses plantões, foi convidada para tomar cerveja e aceitou. Alguém ofereceu para ela um cigarro que tinha crack. Ela fumou sem saber e começou a se viciar. Tenho amigos que chegaram a buscá-la em cracolândia completamente fora de si. Já faz três anos que ela está em fase de recuperação”, narra. Para ela, a colega descobriu no crack um mecanismo de fuga para aliviar a tensão e tirá-la da rotina maçante.
Márcia acredita que a sensação de uma suposta autossuficiência dificulta que o médico procure ajuda. “Sou médico, sei me tratar. É como se o médico não pudesse fracassar e não pudesse mostrar esse lado humano. E a sociedade ainda acha que o médico sempre tem que dar conta, mas somos um super-herói de carne e osso, tão carne e osso quanto o paciente”, pondera. Para ela, é importante refletir: “até que ponto vale a pena trabalhar tanto parar sustentar um padrão de vida?”.
A médica, que se inscreveu para participar da I Jornada de Saúde Mental dos Médicos, diz que gostaria de convidar os colegas a refletir sobre os seguintes pontos: tempo de jornada de trabalho, tempo para praticar exercício físico, tempo para estar com os filhos e com a família, cuidado com a alimentação. Ela cita o modelo ‘Dahlgren & Whitehead’ de qualidade de vida para nortear a atenção que as pessoas devem dar aos fatores que estão relacionados à saúde. Veja:
Psiquiatra, coordenador da Comissão de Atenção à Saúde Mental dos Médicos, membro emérito da Academia Mineira de Medicina e idealizador da I Jornada Brasileira de Saúde Mental dos Médicos, José Raimundo da Silva Lippi lembra que as pessoas podem alcançar um nível intelectual muito grande, mas mesmo assim ser emocionalmente frágil. “A saúde mental é um estado que vai sendo alcançado através da capacidade que o ser humano tem de tolerar níveis cada vez maiores de tensões e de frustrações. O homem saudável não é aquele que vence as frustrações, porque elas não são elimináveis, mas sim o que tolera bem os níveis de decepção”, explica.
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O médico afirma que quando o estresse está acima do suportável para a pessoa, se ela não procurar ajuda, os descaminhos podem ir da ansiedade ao suicídio. “Quando esse estresse supera o nível que o organismo resiste, os sinais começam a aparecer. Pode redundar em não dormir bem, perder o apetite ou ter apetite exagerado, diarreia, dores que são suportáveis para outras pessoas, mas são muito grandes para os que estão com equilíbrio emocional desorganizado”, salienta. - Especialista diz que transtorno bipolar é a doença que mais causa suicídios
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Para ele, os médicos são motivados pelo desejo de salvar vidas e a Jornada quer chamar a atenção não só da classe médica, mas também da população para a peculiaridade da profissão e os riscos que envolvem esse lavor. “Falta de condições de trabalho, excesso de carga horária, a tensão da relação médico-paciente são alguns fatores que aumentam a vulnerabilidade do médico em relação a outras profissões. É alguém que precisa conviver com a frustração de não ter salvado uma vida. Às vezes, por imaturidade ou por se considerar um ‘semideus’ sofre mais que os outros”, enfatiza. Lippi acredita que os profissionais precisam se livrar das amarras da onipotência de acharem que sabem de tudo, de deixar a vergonha de lado e procurar ajuda. “Nenhum médico é obrigado a saber toda a medicina, os colegas estão aí para isso”, diz.
Lippi afirma que a depressão é a doença mental mais comum entre os médicos, inclusive entre os psiquiatras. “Todos são suscetíveis a patologias de ordem mental, principalmente aqueles que não se cuidam. É importante lembrar que o remédio cuida do sintoma, mas as causas precisam de atenção na psicoterapia. O médico pode ser um bom ‘receitador’, mas se não souber o que o cliente tem, não vai resolver o problema”, explica. Por isso, a automedicação não deve ser vista como solução.
Suicídio
“Os médicos se suicidam cinco vezes mais que a população geral”, afirma a psiquiatra Alexandrina Meleiro, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), coordenadora da Comissão de Estudos e Prevenção de Suicídio da ABP e membro do Grupo de Atenção da Saúde Mental do Médico. Apesar de ser uma atitude drástica, a Organização Mundial de Saúde (OMS) vem alertado para o aumento da incidência na taxa de suicídio: um milhão de pessoas se mata no mundo anualmente ou uma morte a cada 40 segundos. No Brasil, observa-se um crescimento de 30% no suicídio entre jovens do sexo masculino nas últimas décadas. Entre os médicos, segundo Alexandrina, os mais vulneráveis estão na faixa etária de 35 a 50 anos.
Suicídio tem prevenção. Isso por que a quase totalidade dos casos – 99% - está associada a um transtorno psiquiátrico. A saúde mental é negligenciada por motivos que vão desde a falta de uma rede de apoio organizada para atender o paciente, no caso do Brasil, até não ser reconhecida socialmente como doença em muitos casos. No senso comum, por exemplo, a depressão é confundida com episódios de tristeza e desventuras da vida. Todo esse contexto de preconceito, falta de informação e tabu agrava a busca por ajuda quando o doente é o médico. Problemas de ordem mental ainda são vistos como motivo de vergonha e assunto para – se for para conversar – que seja baixo para ninguém ouvir. Enquanto isso, pessoas têm suas vidas desestruturadas, muitas tentam se matar para amenizar o sofrimento e outras tantas conseguem.
O suicídio é um tema tão complicado que é estimado um número de vítimas duas ou três vezes maior em razão da subnotificação ao registrar a causa da morte. Curiosamente, no caso de médicos, a psiquiatra Alexandrina Meleiro aponta em artigo intitulado ‘Suicídio na população médica: qual a realidade?’, publicada na edição deste mês da Revista Brasileira de Medicina, uma situação contrária. “Na população geral, existe uma tendência de o médico não registrar que a causa da morte foi por suicídio. Geralmente, registra-se a causa externa da internação, como, por exemplo, queda de altura, envenenamento, intoxicação exógena (excesso de remédio). Um levantamento de atestados de óbitos feito pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) mostrou que, quando a profissão da vítima era a medicina, a palavra suicídio aparecia. Uma das hipóteses é que, por se tratar de um colega, o rigor da notificação é maior. E aí fica a pergunta: será que, de fato, os médicos se suicidam mais ou houve um zelo maior quando se tratava de médico? A resposta eu não sei”, problematiza a psiquiatra.
Alexandrina Meleiro afirma que outra razão para a subnotificação na população geral é que os seguros de saúde e seguros de vida geralmente não cobrem situações de ato voluntário contra a própria vida. “É comum na prática médica registrar a causa externa para proteger a família da vítima”, explica.
O levantamento do CREMESP publicado em 2012 mostra também que, entre as causas externas de morte de médicos em São Paulo, o suicídio aparece em segundo lugar: 21% no caso das mulheres e 18% em homens (veja gráfico). Em primeiro, está o acidente automobilístico, mas para Alexandrina Meleiro, paira uma dúvida: “Foi um acidente de fato ou a vítima usou o carro como meio de suicídio?”, questiona. “Temos um alto índice de mortes por acidentes automobilísticos entre os médicos jovens e não há diferença entre os gêneros. Há um quadro autodestrutivo em que indivíduo teria alguma intenção suicida, são os chamados ‘autocídios’”, explica.
Tipo de morte por causas externas descritas como causa básica de morte de médicos no Estado de São Paulo entre os anos de 2000 e 2009, de acordo com o gênero (Dados sobre mortalidade dos médicos no Estado de São Paulo, CREMESP, 2012)
Meleiro aponta algumas hipóteses em relação ao comportamento dos médicos que cometem suicídio:
1. Manifestam especial vulnerabilidade ou experiências de eventos circunstanciais diferentes (recente perda profissional ou pessoal, problemas financeiros ou de licença) em relação aos outros médicos;
2. Tendem a trabalhar mais horas que os outros colegas;
3. Tendem a abusar de álcool e outras substâncias;
4. Estão mais insatisfeitos com suas carreiras médicas que outros médicos;
5. Dão sinais de aviso da intenção de suicidar-se a outros;
6. Têm transtorno mental e emocional com mais frequência;
7. Tiveram dificuldades na infância e seus problemas familiares são comuns;
8. Automedicam-se mais frequentemente que os outros colegas
Dependência química
Trabalho realizado em 2004 na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) intitulado ‘Perfil Clínico e Demográfico de Médicos com Dependência Química’ mostra que os médicos apresentam taxas similares de uso nocivo e dependência de substâncias em relação à população geral. A incidência varia entre 8% e 14%. O estudo coletou dados de 198 médicos em tratamento ambulatorial por uso nocivo e dependência química.
A frequência de uso nocivo e dependência de opióides (anestésicos derivados da morfina) e BZD ou benzodiazepínicos (popularmente conhecidos como tranquilizantes de tarja preta) é aproximadamente cinco vezes maior entre os médicos que na população geral. Alexandrina Meleiro aponta que o uso de opióides é motivo de suicídio principalmente entre anestesistas.
José Raimundo Lippi alerta ainda que a facilidade de acesso a esses opiácios é uma porta de entrada para a dependência química entre médicos. “Drogas medicinais que só são encontradas em hospitais, principalmente as medicações usadas em anestesia, aparecem como solução para o alívio de tensão”, afirma. Gráficos abaixo mostram alguns resultados do estudo da Unifesp:
Drogas mais consumidas entre os médicos acompanhados:
Especialidades médica mais envolvidas em dependência química:
'Perfil Clínico e Demográfico de Médicos com Dependência Química', trabalho realizado em 2004 na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Escola Paulista de Medicina (Unifesp)
O estudo mostrou também os diagnósticos mais encontrados. Em primeiro apareceu a depressão, seguida de transtorno afetivo bipolar e transtornos de personalidade. Na sequência, esquizofrenia e transtorno de ansiedade generalizada. Os pesquisadores apontaram ainda as situações facilitadoras para dependência de drogas. Veja:
1) acesso fácil aos medicamentos
2) perda do tabu em relação a injeções
3)história familiar de dependência
4) problemas emocionais
5) estresse no trabalho e em casa
6) busca de emoções fortes
7) auto-administração no tratamento para dor e para o humor
8) fadiga crônica
9) onipotência e padrão de prescrição exagerada
10) os de especialidade de alto risco (Anestesiologia, Emergência e Psiquiatria)
DEPOIMENTO:
Super-herói de carne e osso
Uma médica e professora universitária de Belo Horizonte que não quer ser identificada conversou com o Saúde Plena. Ela será chamada de Márcia e conta que já se envolveu emocionalmente em histórias não apenas de colegas de profissão, mas de amigos e nomes de referências na medicina que se perderam em jornadas exorbitantes de trabalho que, segundo ela, variam entre 80 a 100 horas semanais. “O médico tem adoecido por um excesso de cobrança, falta de descanso, de sono reparador, uma dieta inadequada, falta de tempo com a família e de uma atividade física, um quadro que leva a uma sobrecarga mental. A carga de responsabilidade é tão grande que muitas vezes conduz a um estado de exaustão”, afirma ela.
Nas três histórias que Márcia acompanhou de perto os profissionais não procuraram ajuda. “A fiscalização não é rígida a esse ponto. O médico pode, por exemplo, prescrever o remédio para esposa, mas para ele usar. Eu mesma já prescrevi para mim. Às vezes é uma questão de praticidade e pode começar com um medicamento para ajudar a dormir. No meu caso, nunca me tratei sozinha e nunca fui dependente de nada, mas tenho várias histórias para contar de ex-professores e amigos. Eles precisaram ser afastados e, em alguns casos, se envolveram até em problemas judiciais”, relata.
O primeiro foi de uma professora referência em trauma com atuação no setor de urgência e emergências de hospitais na cidade. “Era uma pessoa extremamente capacitada, mas tinha uma jornada de trabalho de quase 100 horas semanais. Ela amava o trabalho que fazia e não era casada. Não cuidava quase nada da vida pessoal. Foi quando começou a injetar no próprio corpo um medicamento chamado fentanil que traz uma sensação de alívio, mas é perigosíssimo porque causa várias alterações no organismo e pode até provocar a morte das pessoas. Ela entrou num ciclo de vício tão grande que começou a roubar o remédio do hospital para sustentar o vício. Lembro de um dia ela chegar na sala de aula com a marca do garrote no braço. Foi um choque muito grande por ela ser uma referência para inúmeros profissionais e parou, inclusive, de exercer a medicina”, conta.
Márcia também se recorda de uma história que, infelizmente acabou em morte. “Ele era um padrinho na medicina para mim. Além da graduação em medicina, tinha também a de farmácia. É um exemplo de um profissional que trabalhava muito e começou a oscilar entre buscar uma vida mais equilibrada e entrar na destruição total. Nesse período, os colegas mais próximos costumavam brincar que ele tinha a época do zig, em que comia bem, dormia bem, não bebia e fazia exercício físico; e a época do zag, em que bebia todos os dias e, por compulsão alimentar, comia tudo que viesse na cabeça. Teve um dia em que ele foi buscar umas daquelas fitinhas de exame para detecção de glicose na urina e foi ao banheiro. Como ficou um pouco de urina na mão dele e ele segurou as fitinhas, fez o exame e acabou descobrindo que estava diabético. A pressão arterial dele também era desequilibrada e, aos 53 anos, faleceu de infarto agudo do miocárdio”, recorda-se.
A médica cita também o caso de uma colega casada e com filhos que pegava muitos plantões por semana para, segundo Márcia, pagar as contas. “Ela não descansava. Uma noite, saindo de um desses plantões, foi convidada para tomar cerveja e aceitou. Alguém ofereceu para ela um cigarro que tinha crack. Ela fumou sem saber e começou a se viciar. Tenho amigos que chegaram a buscá-la em cracolândia completamente fora de si. Já faz três anos que ela está em fase de recuperação”, narra. Para ela, a colega descobriu no crack um mecanismo de fuga para aliviar a tensão e tirá-la da rotina maçante.
Márcia acredita que a sensação de uma suposta autossuficiência dificulta que o médico procure ajuda. “Sou médico, sei me tratar. É como se o médico não pudesse fracassar e não pudesse mostrar esse lado humano. E a sociedade ainda acha que o médico sempre tem que dar conta, mas somos um super-herói de carne e osso, tão carne e osso quanto o paciente”, pondera. Para ela, é importante refletir: “até que ponto vale a pena trabalhar tanto parar sustentar um padrão de vida?”.
A médica, que se inscreveu para participar da I Jornada de Saúde Mental dos Médicos, diz que gostaria de convidar os colegas a refletir sobre os seguintes pontos: tempo de jornada de trabalho, tempo para praticar exercício físico, tempo para estar com os filhos e com a família, cuidado com a alimentação. Ela cita o modelo ‘Dahlgren & Whitehead’ de qualidade de vida para nortear a atenção que as pessoas devem dar aos fatores que estão relacionados à saúde. Veja:
Modelo 'Dahlgren & Whitehead' de qualidade de vida