Aceitar e aproveitar cada etapa da vida pode ser a chave para tornar leve e feliz a passagem do tempo
Encarar a vida de forma leve e recusar a ideia de se aposentar de si mesmo. Essa é a fórmula usada por homens e mulheres
Flávia Duarte - Revista do CB
Publicação:02/03/2015 15:00Atualização: 23/02/2015 11:56
“Quando sua juventude se esvair, sua beleza irá com ela e você subitamente descobrirá que não há muitos triunfos que lhe restarão ou terá de se contentar com aqueles medíocres triunfos que a memória de seu passado tornará mais amargo do que as derrotas. Cada mês que míngua lhe trará mais próximo de algo terrível. O tempo tem ciúmes de você e luta contra seus lírios e suas rosas. Você sofrerá horrivelmente. Compreenda sua juventude enquanto a tem. (…) Mas nós nunca recuperamos nossa juventude. O pulso da alegria que reverbera em nós aos 20 anos se torna letárgico. Nossos membros falham, nossos sentidos apodrecem. Degeneramo-nos em marionetes horrendas, assombradas pela memória das paixões das quais tivemos tanto medo e as intensas tentações às quais não ousamos ceder. Juventude! Juventude! Não há absolutamente nada no mundo além da juventude!”
O medo de ter as feições transformadas pelo tempo pode parecer exagerado no relato de Wilde, mas seguramente é motivo de preocupação há incalculáveis anos. Tanto que hoje esse pavor ganhou um nome alcunhado pela psicologia de gerontofobia. Na tradução acadêmica e clínica, nada mais é do que o pavor de envelhecer. A terminologia pode ser novidade, a angústia, porém, não o é. “O conceito é novo, mas o sentimento é tão antigo quanto a história da humanidade”, avisa o médico Alexandre Kalache, presidente da Aliança Global de Centros Internacionais de Longevidade (ILC) e ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da Organização Mundial da Saúde.
Para Kalache, a sensação de inadequação surge quando a sociedade estigmatiza o velho como incapaz e inadequado. A partir de uma visão equivocada, surgem o preconceito e o temor de ser vítima da reprovação. “Muitos idosos que sentem a gerontofobia têm medo da discriminação e, por isso, não aceitam que estão envelhecendo. A sociedade usa ‘velho’ no sentido pejorativo, como se ele estivesse tirando o lugar do mais novo. São medos que se alimentam”, afirma o especialista.
A fobia, no entanto, não é resultado apenas do olhar temeroso do outro. É também insatisfação com o que se vê diante do espelho. Para a psicoterapeuta Maura de Albanesi, a gerontofobia pode ser considerada um distúrbio de ansiedade e com chance de surgir em qualquer idade, desde que o sinônimo de felicidade seja a beleza e a juventude, não importa quanto anos se tenha. “São pessoas que não conseguem imaginar a vida depois dos 50 anos”, considera a terapeuta. “Ela pode entrar em melancolia ou em depressão. O futuro passa a ser algo aterrador”, acrescenta.
Há outros substantivos para nomear o mesmo estado de ânimo. O gerontólogo Vicente Alves, coordenador do mestrado de gerontologia da Universidade Católica de
Brasília, chama de idosismo o conceito que surge a partir do preconceito e da discriminação. Para ele, esse temor surge com as incertezas trazidas pelo passar do tempo e pelas limitações decorrentes do uso da máquina chamada corpo humano. “Envelhecer provoca nas pessoas um temor de se reconhecerem no velho; de estarem no lugar dele daqui a uns anos; de não serem estimados pelos parentes ou pela sociedade; de não serem mais produtivo”, avalia o professor.
Se os mais jovens ainda encaram os idosos com desprezo, inclusive porque eles são o reflexo mais real do que serão com o passar dos anos, Kalache sugere que é preciso uma mudança imediata de mentalidade. De ambas as partes, ressalta. Os que viveram muito também precisam reconhecer o valor da experiência e o privilégio de ainda usufruírem da vida. O resultado seria o que chama de “geratividade”, que, na prática, é a frutífera e prazerosa troca de conhecimentos e experiências de gerações diferentes.
Aceitar os idosos é uma demanda ainda mais imediata porque a expectativa é de que o Brasil se torne um país ancião muito em breve. “Você olha para a expectativa de vida do brasileiro na década de 1940 e conclui que pulou de 43 para 76 anos. São 33 anos a mais de vida e não de velhice”, afirma Kalache. “Em 2050, passaremos a ter 30% da população com mais de 60 anos. Na década de 1940, esse número era de 5%. Isso abre oportunidades para as pessoas viverem mais de 70, 80 anos”, acrescenta.
Pelas estatísticas, seremos então o primeiro país não desenvolvido a envelhecer. Isso porque a longevidade é resultado de qualidade de vida, acesso à saúde e à infraestrutura, prerrogativas inacessíveis em sociedades mais carentes. No contexto de tantos cabelos brancos, melhor mudar a forma de encarar essa etapa. “O importante é encontrar beleza em cada fase da vida e entender que não somos mais os mesmos. O medo faz com que a pessoa deixe de aproveitar o que tem de bom no momento. É preciso resignificar a própria vida”, sugere Maura de Albanesi.
E os que passaram dos 60 estão cada vez mais produtivos e participativos na sociedade. “Hoje, falamos muito em envelhecimento ativo e também em funcionalidade, que tem a ver com as funções que a pessoa desempenha de acordo com a idade, buscando sempre a independência”, comenta Vicente. “É preciso encarar o envelhecimento não como um término, mas como um coroamento da vida”, defende o gerontólogo.
Se os sinais e as mudanças do passar do tempo são inexoráveis, o caminho que cada um vai trilhar para chegar e para desfrutar aquilo que ficou definido como terceira idade é extremamente idiossincrático. Envelhecer bem é mais do que uma lista de regras para manter a saúde e preservar a funcionalidade do corpo. Quem já passou da sexta década da vida e alcançou a oitava, por exemplo, garante que o segredo maior é o estado de espírito e o desejo de viver.
Em seu livro A bela velhice, a antropóloga Mirian Goldenberg descreve o resultado da pesquisa que desenvolveu desde 2007 com 5 mil pessoas, homens e mulheres, entre 18 e 90 anos. O objetivo era compreender como eles e elas encaravam a passagem do tempo, especialmente em uma cultura como a brasileira, em que o corpo tem valor de capital e obviamente o envelhecimento desvaloriza tal bem.
O resultado apontou diferenças entre os gêneros. Antes de completarem 60 anos, elas são as mais incomodadas com a mudanças físicas e as transformações do corpo. Ao mesmo tempo, as mulheres são muito generosas com o envelhecimento masculino, atribuindo inclusive, uma dose de charme ao volume abdominal dos homens; aos cabelos grisalhos e até a falta deles. De acordo com o estudo, até 59 anos, cerca de 38% das mulheres temem envelhecer, enquanto 25% dos homens compartilham a mesma aflição.
Depois dos 60, as preocupações, especialmente com o físico, amenizam. Após essa idade, cerca de 19% delas e 10% deles afirmam que têm medo de envelhecer. Os fantasmas são os mesmos para ambos: a possibilidade de ter limitações físicas, de depender dos outros, de serem abandonados, de perderem a memória, de ficarem sem dinheiro. Os homens, especificamente, mencionaram a preocupação de ficarem inúteis, chatos, deprimidos e sem atividades. Eles acham que a velhice é tempo de estar com a família, já que passaram boa parte da vida trabalhando.
Por sua vez, elas se reavaliam depois dos 60. Acham, se comparadas a seus pares, que envelheceram melhor. Cuidam-se mais e os efeitos do tempo são menos pesados. Também afirmam que passado o medo inicial, as mulheres definem a velhice como “o melhor momento da vida.” “Elas dizem que, pela primeira vez, se sentem livres, despreocupadas com a opinião dos outros e que lamentam terem descoberto isso tão tarde”, diz a pesquisadora.
A leitura de conclusão tão libertadora explica-se pelo fato de que a maioria das mulheres se vê pela primeira vez sem as obrigações de mãe, de esposa ou de trabalhadora. É o momento em que se redescobrem, fazem o que não tiveram tempo de fazer antes. Elas têm as amigas como melhores companheiras e as risadas como o melhor remédio. “Dizem que aprenderam a viver intensamente o presente; a dizer ‘não’; a respeitar as próprias vontades; a vencer os medos e a aceitar a idade”, esclarece Mirian.
Somente assim se poderia alcançar a dita bela velhice. E cada qual deve encontrar o segredo para conquistá-la. Mas entre todos esses belos velhos têm algo em comum: um projeto de vida que não passe pelo corpo ou pela aparência. “Eles não se aposentaram de si mesmos, recusaram as regras que os obrigariam a se comportar como velhos. Não se tornaram insensíveis, apagados, infelizes , doentes, deprimidos. Estão criando possibilidades e significados para o envelhecimento”, garante a antropóloga.
E a Revista foi conhecer a beleza desses que já viveram mais de meio século. Com experiência, sabedoria e muita lucidez falam do momento da vida tão temido e, ao mesmo tempo, tão desejado pela espécie humana.
"Velhos interessantes"
Eles são amigos, escritores, conhecidos em todo o território nacional pelo humor, pela inteligência e pela personalidade tão singular. Zuenir Ventura, Ziraldo e Luis Fernando Verissimo foram convidados a falar da própria idade. Sem regras. Sem roteiros preestabelecidos. A proposta era discutir os prós e os contras de viver mais de oito décadas. Aceitaram o desafio e o resultado virou um musical que estreia em São Paulo no próximo mês, com o nome de Barbaridades.
Nenhum deles sabe qual o resultado da compilação de episódios de tanta vida interessante junta. “Confesso que não sei bem. Cada um fez a sua parte, um redator deu a forma final ao espetáculo. Também estou curioso para saber no que vai dar”, diz Luis Fernando Verissimo, que completa 79 anos este ano.
Mas não será nada menos do que boas e engraçadas histórias, dado o perfil dos três inspiradores da obra. São velhos ativos, admirados por uma plateia de qualquer idade. Zuenir, por exemplo, educadamente declinou o convite para dar entrevista e falar sobre a experiência de ter vivido, até agora, 83 anos. Ele está ocupado em demasia. Precisa ler “toda a obra de Ariano Suassuna”. Não justifica o porquê. E nem precisa. Gente como ele trabalha e ponto. Precisa de tempo e tem prioridades.
Veríssimo nos concede algumas linhas virtuais. Declara que não se considera velho, “não importa o que diga o espelho”. Continua ativo e interessado pela vida. E ser jovem é isso. Ser velho é justamente o contrário. Se essa é sua definição particular, então, ele não é velho.
O passar dos anos não mudou tanto a rotina do escritor. “Não tive que abandonar coisas que fazia na juventude porque, na verdade, não as fazia quando jovem. Coisas como esportes, por exemplo. De certa forma, eu já era velho, só não cronologicamente”, considera. Veríssimo não deixa de trabalhar e menos ainda de fazer planos. Quer viajar, afinal, “ainda há muito no mundo para se conhecer”. A memória, no entanto, pode ser uma problema, para um cérebro que armazenou tantas informações. “É um paradoxo: o que se acumula na vida são memórias e o que se perde mais rapidamente na velhice são as memórias. Sacanagem!”
Tão bem-humorado, mas um tanto mais, digamos, despachado, Ziraldo compartilha o prazer pela vida ativa aos 83 anos. Sente-se um privilegiado de ter acompanhado tantas mudanças no mundo no último século que, segundo ele, nunca poderão ser comparadas a quaisquer outras que venham acontecer nos próximos anos. E sobre a velhice, ele faz piada: “Terceira idade é o c… Dizer que é a melhor idade é hipocrisia”. É um pouco de deboche, porém. Ele até acha que o passar do tempo tem seu charme. “Se você tem saúde — e isso eu tenho —, se você não tem uma doença que te impeça de rir, de conversar, a velhice é absolutamente interessante. Se você bebeu nos bares certos e foi amado pelas mulher certas, a velhice é absolutamente suportável e isso não é ruim.”
Ziraldo não nega que os anos trazem limitações físicas. O corpo perdeu parte da força. Não é inconsequente de subir ou descer escadas correndo, “como fazia aos 10 anos”; tampouco se aventura a “subir em árvores”, mas a cabeça anda a mil. A piada está sempre pronta. E a agenda cheia de trabalho. “O que mata o velho é a aposentadoria. É um grande engano dizerem que você tem que descansar enquanto está vivo.” Por isso, ele produz todos os dias, inclusive assina o espetáculo Barbaridades com seus contemporâneos. “Eles nos
convidaram porque somos velhos interessantes”, define sem desnecessária modéstia.
E quanto ao fim? Dá medo? “Acho que a gente começa a pensar seriamente na morte lá pelos 30 anos e, com o passar do tempo, essa preocupação só aumenta. Depois dos 60, crescem as possibilidades de você simplesmente cair morto e isso influi muito na sua maneira de ser e de pensar”, avalia Verissimo. Mas vale o risco. “Eu entendo o medo de ser atacado por um leão na rua, uma coisa apavorante, mas difícil de acontecer. Já a velhice é uma coisa normal, que todo o mundo sabe que virá e ninguém pode dizer que não esperava. Agora, se desse para escolher, eu escolheria o leão.”
Ziraldo também afasta os pensamentos mórbidos, mas não ousa fazer planos a longo prazo ou “jogar com o futuro”, como define. “Só velho neurótico e que não conheceu a felicidade tem medo da morte. Todo dia morre um contemporâneo, mas nem penso nisso. Contra o inexorável, não há luta possível. Essa foi uma das descobertas que fiz nessa fase”, afirma o cartunista.
Envelhecimento com tranquilidade
Edylcéa Tavares Nogueira de Paula. A subprocuradora-geral da República aposentada não procura esconder os 76 anos. A idade se nota pela dificuldade de caminhar. “A artrose está me comendo por dentro.” Mas o problema ela resolve com a ajuda de uma bengala. Sem dispensar os saltos altíssimos, porém. A justificativa é que a panturrilha foi encurtada pelo hábito. Assim, dói manter o pé no chão. Melhor então manter a elegância.
A carioca é vaidosa toda a vida. Desde mocinha, guardava os trocados que ganhava para comprar doces e tecidos com os quais ela mesmo fazia roupas novas. Cresceu gostando de estar bem diante do espelho e, até hoje, mantém o hábito de se vestir de forma elegante e maquiar-se quando precisa colocar o pé para fora de casa. Não dispensa os chapéus. Há tempos, começou a colecioná-los e hoje tem mais de uma centena.
No seu espaçoso apartamento, um dos quartos é ocupado pelos sapatos e pelos chapéus. Por ali, sobra espaço. Edylcéa nunca se casou. Namorou muito, mas o amor que escolheu como marido não deu certo. Diferença de gênios, esclarece. Os outros, não quis. Preferiu a liberdade. “Foi uma opção de vida. Na época em que nasci, em 1938, a gente só tinha uma opção: ser professora ou se casar. Então, escolhi ser professora. O namorado que eu tinha na época quis casar, mas exigiu que eu não trabalhasse. Disse adeus e prazer em conhecê-lo. Nesse momento, fiz a escolha: sou eu ou a vida de casada. Mãe nunca quis ser e nunca me arrependi. Pelo contrário. Acho que se tivesse me casado, teria me arrependido porque jamais poderia ter feito o que fiz nesses anos todos na minha profissão. Pude ir para onde quis”, conclui.
Ao contrário do que muitos pensam, ela não teme a solidão. Prefere fazer as coisas como manda seu temperamento. Difícil por sinal, ela considera. “Sou muito intolerante. Gosto das coisas muito certas. Se não andam no meu jeito, acabo sendo muito intolerante. Já fui muito agressiva, mas, com a idade, melhorei. Agora, sou mais calma, mais tranquila”, conclui. Por isso, gosta de fazer as coisas sozinha. Sem solidão. Viaja sem companhia. Sempre foi assim, quando pelo menos saia de férias duas vezes por ano: uma para a América do Sul, outra para os Estados Unidos onde ia assistir a óperas. Conheceu quase a metade do mundo.
O próximo roteiro é Dubai. Talvez no ano que vem. Mesmo que sinta um pouco de dificuldade de andar, continua a dispensar companhia. “Nem que eu leve a minha cadeira de rodas”, brinca. Os amigos, gosta de encontrar em eventos, solenidades ou para tomar um vinho ou espumante. Nada de lugares com algazarra ou correria de menino. “Sou muito seletiva. Não vou ao teatro nem cinema aqui. Meu ouvido é muito sensível. Não aguento barulho de vagabundagem ou de criança.”
Vaidosa, nunca teve problemas com a idade. “Vejo o envelhecimento com muito tranquilidade, não escondo a minha idade, isso é uma coisa normal, consequência da vida.” Ela exibe a pele com pouquíssimas rugas. Já fez plástica para se livrar do queixo duplo, depois levantou as pálpebras, e também fez uma lipo. Hoje, nem pensa em entrar em uma sala de cirurgia com esse fim.
Planos ela tem de dançar. Tristeza por não ter netos ou filhos? Nenhuma. “Nunca pensei em filhos. Eu não teria paciência. Perdi a paciência com criança quando fui professora na escola primária. Sou neurótica. E não quero deixar de ser neurótica por causa disso, já passou muito tempo e não tenho mais idade de consertar isso não”, diz e dá uma boa risada.
Membro da Academia de Letras de Brasília, Edylcéa foi convida a escrever uma autobiografia. Gostou da ideia de transformar em livro sua história. Não que tenha saudade ou arrependimento de alguma coisa passada. Ao contrário, essa doutora é muito enfática em todas as respostas. Não titubeia. Com ela não há dúvidas. “Nada me faz falta. Vivi a minha adolescência muito bem, a minha juventude, a minha idade adulta, e continuo vivendo muito bem comigo mesmo. É assim: a gente nasce, amadurece e morre. Você tem que ver as fases da sua vida como uma coisa natural e aproveitar o melhor de cada uma delas.” De fato, temor de morrer ela não tem. Nem pensa nisso. “Não tenho medo do futuro. Não penso nisso. O que vier eu traço.”
A idade sem garantias
“O problema é envelhecer mal. Você fica cheio de ziquezira, tem que aguentar encheção de saco dos outros. Ficar velho é isso: você perde o pique da vida e se torna um sujeito chato, queixoso. E olha que estou cheio das mazelas — estou na cadeira de rodas não é por charme —, mas a gente não pode se abater. Tenho uma família que está comigo o tempo todo, tenho minha mulher, meus filhos, meus netos. E isso deixa a gente muito vivo”, define o arquiteto e fotógrafo Luis Humberto Miranda Martins Pereira.
Uma semana após completar 80 anos, no ano passado, ele teve um AVC. Percalços da idade. Muito tempo deitado para se recuperar, as pernas de músculos nada jovens enfraqueceram. Hoje, precisa da cadeira para se locomover. Os movimentos, recupera aos poucos com sessões diárias de fisioterapia, mas reconhece que o caminhar da juventude e a força física são coisas do passado. “Os meus amigos idosos, volta e meia, têm um piripaque. A essa altura do campeonato, você não tem mais garantia, então, a velhice tem uma série de inconvenientes. Você sabe a estatística de sobrevida de uma cara de 80 anos? É baixíssima. Claro que tem que ser. Essa é a lei natural das coisas”, brinca, ao falar a verdade.
Pai de cinco filhos e avô de nove netos, Luis é conhecido no meio acadêmico por suas ideias. Elas continuam brilhantes. Aliás, perder a lucidez é seu maior medo. Essa ele ainda mantém. O resto, vai lidando. “Você tem que aprender a viver dentro do limite que a idade traz. Eu, por exemplo, estou com a intenção de correr a São Silvestre no ano que vem, mas acho que não vai dar não, vou ter que fazer mais fisioterapia”, ri de si mesmo.
Ele se diz atrevido. Apesar de a contagem do tempo mudar com o passar da idade, ainda quer publicar mais um livro de fotografia. Talvez um de poesia, algo que faz desde 1973, mas nunca se arriscou a tornar público. Orgulha-se dos amigos que conquistou, da família que construiu e do período intelectualmente mais produtivo da sua vida, que foi aos 50 anos. Além disso, envelhecer lhe trouxe “mais sabedoria e mais capacidade de julgamento”, observa o hoje professor aposentado da Universidade de Brasília.
Mas quando questionado se aceita bem a velhice, pensa antes de responder. “É cinismo, é mentiroso dizer que, inicialmente, você aceite as perdas que vêm com a idade. Se você estiver lúcido e com a cabeça boa, dá para viver bem até os 80 anos. O ser humano é uma figura que nasce com uma profunda vocação para a eternidade, mas há a impossibilidade biológica para a realização desse projeto. A natureza não faz graça para você, ela te cobra”, conclui.
De sua parte, a vida cobrou de Luis um pouco da saúde. É diabético e o leve tremor das mãos denuncia o parkinsonismo. A perda dos amigos também é um mal sentido com mais frequência. “No começo, é inaceitável a morte dessas pessoas. É um inferno. A gente entra na fila, é da natureza. Claro que falo assim para não impressionar, mas é de amargar. Se dá medo? Mas o que adianta? Claro que dá medo, você não sabe o que vai encontrar pela frente”, comenta.
Por isso, melhor não pensar em despedidas. O temor de ficar velho começou aos 40 anos. Foi quando descobriu “que não era eterno”. Depois da constatação, viveu o dobro da idade que tinha naquela época. O futuro, a ele certamente não pertence. “Viver decentemente já é um grande projeto. Claro que o fim está muito mais próximo do que em 1934, quando nasci. Mas você ignora. Não tem que pensar nisso e viver. Quero viver o que for possível.”
Aos 76 anos, Vilma ainda dirige e não descuida da aparência: "Você faz a sua idade"
"Muitos idosos que sentem a gerontofobia têm medo da discriminação e, por isso, não aceitam que estão envelhecendo. A sociedade usa ‘velho’ no sentido pejorativo, como se ele estivesse tirando o lugar do mais novo. São medos que se alimentam” - Alexandre Kalache, presidente da Aliança Global de Centros Internacionais de Longevidade (ILC)
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O trecho reproduzido no início desta reportagem pode até ser digno de apreciação como parte de uma grande obra literária, mas interpretar seu significado e adotá-lo como verdade pode parecer um tanto aterrorizador. Trata-se de um parágrafo do livro O retrato de Dorian Gray, escrito em 1891, pelo poeta inglês Oscar Wilde. Em sua obra-prima, ele conta a história de um belo jovem que temia de forma tão patológica o envelhecimento que encontrou uma forma de fazer com que mudanças em seu físico acontecessem em um quadro, onde estava pintado o seu retrato. A pintura, assim, envelheceria. Já ele, se manteria para sempre jovem.O medo de ter as feições transformadas pelo tempo pode parecer exagerado no relato de Wilde, mas seguramente é motivo de preocupação há incalculáveis anos. Tanto que hoje esse pavor ganhou um nome alcunhado pela psicologia de gerontofobia. Na tradução acadêmica e clínica, nada mais é do que o pavor de envelhecer. A terminologia pode ser novidade, a angústia, porém, não o é. “O conceito é novo, mas o sentimento é tão antigo quanto a história da humanidade”, avisa o médico Alexandre Kalache, presidente da Aliança Global de Centros Internacionais de Longevidade (ILC) e ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da Organização Mundial da Saúde.
Para Kalache, a sensação de inadequação surge quando a sociedade estigmatiza o velho como incapaz e inadequado. A partir de uma visão equivocada, surgem o preconceito e o temor de ser vítima da reprovação. “Muitos idosos que sentem a gerontofobia têm medo da discriminação e, por isso, não aceitam que estão envelhecendo. A sociedade usa ‘velho’ no sentido pejorativo, como se ele estivesse tirando o lugar do mais novo. São medos que se alimentam”, afirma o especialista.
Edylcéa gosta de viajar, faz planos para o futuro e não se arrepende de não ter sido mãe: "Nada me faz falta"
Há outros substantivos para nomear o mesmo estado de ânimo. O gerontólogo Vicente Alves, coordenador do mestrado de gerontologia da Universidade Católica de
Brasília, chama de idosismo o conceito que surge a partir do preconceito e da discriminação. Para ele, esse temor surge com as incertezas trazidas pelo passar do tempo e pelas limitações decorrentes do uso da máquina chamada corpo humano. “Envelhecer provoca nas pessoas um temor de se reconhecerem no velho; de estarem no lugar dele daqui a uns anos; de não serem estimados pelos parentes ou pela sociedade; de não serem mais produtivo”, avalia o professor.
Se os mais jovens ainda encaram os idosos com desprezo, inclusive porque eles são o reflexo mais real do que serão com o passar dos anos, Kalache sugere que é preciso uma mudança imediata de mentalidade. De ambas as partes, ressalta. Os que viveram muito também precisam reconhecer o valor da experiência e o privilégio de ainda usufruírem da vida. O resultado seria o que chama de “geratividade”, que, na prática, é a frutífera e prazerosa troca de conhecimentos e experiências de gerações diferentes.
Aceitar os idosos é uma demanda ainda mais imediata porque a expectativa é de que o Brasil se torne um país ancião muito em breve. “Você olha para a expectativa de vida do brasileiro na década de 1940 e conclui que pulou de 43 para 76 anos. São 33 anos a mais de vida e não de velhice”, afirma Kalache. “Em 2050, passaremos a ter 30% da população com mais de 60 anos. Na década de 1940, esse número era de 5%. Isso abre oportunidades para as pessoas viverem mais de 70, 80 anos”, acrescenta.
O cartunista Ziraldo se mantém ativo e bem- humorado aos 83 anos: "Com saúde, a vida é abolutamento interessante"
E os que passaram dos 60 estão cada vez mais produtivos e participativos na sociedade. “Hoje, falamos muito em envelhecimento ativo e também em funcionalidade, que tem a ver com as funções que a pessoa desempenha de acordo com a idade, buscando sempre a independência”, comenta Vicente. “É preciso encarar o envelhecimento não como um término, mas como um coroamento da vida”, defende o gerontólogo.
Se os sinais e as mudanças do passar do tempo são inexoráveis, o caminho que cada um vai trilhar para chegar e para desfrutar aquilo que ficou definido como terceira idade é extremamente idiossincrático. Envelhecer bem é mais do que uma lista de regras para manter a saúde e preservar a funcionalidade do corpo. Quem já passou da sexta década da vida e alcançou a oitava, por exemplo, garante que o segredo maior é o estado de espírito e o desejo de viver.
Em seu livro A bela velhice, a antropóloga Mirian Goldenberg descreve o resultado da pesquisa que desenvolveu desde 2007 com 5 mil pessoas, homens e mulheres, entre 18 e 90 anos. O objetivo era compreender como eles e elas encaravam a passagem do tempo, especialmente em uma cultura como a brasileira, em que o corpo tem valor de capital e obviamente o envelhecimento desvaloriza tal bem.
O resultado apontou diferenças entre os gêneros. Antes de completarem 60 anos, elas são as mais incomodadas com a mudanças físicas e as transformações do corpo. Ao mesmo tempo, as mulheres são muito generosas com o envelhecimento masculino, atribuindo inclusive, uma dose de charme ao volume abdominal dos homens; aos cabelos grisalhos e até a falta deles. De acordo com o estudo, até 59 anos, cerca de 38% das mulheres temem envelhecer, enquanto 25% dos homens compartilham a mesma aflição.
Depois dos 60, as preocupações, especialmente com o físico, amenizam. Após essa idade, cerca de 19% delas e 10% deles afirmam que têm medo de envelhecer. Os fantasmas são os mesmos para ambos: a possibilidade de ter limitações físicas, de depender dos outros, de serem abandonados, de perderem a memória, de ficarem sem dinheiro. Os homens, especificamente, mencionaram a preocupação de ficarem inúteis, chatos, deprimidos e sem atividades. Eles acham que a velhice é tempo de estar com a família, já que passaram boa parte da vida trabalhando.
Por sua vez, elas se reavaliam depois dos 60. Acham, se comparadas a seus pares, que envelheceram melhor. Cuidam-se mais e os efeitos do tempo são menos pesados. Também afirmam que passado o medo inicial, as mulheres definem a velhice como “o melhor momento da vida.” “Elas dizem que, pela primeira vez, se sentem livres, despreocupadas com a opinião dos outros e que lamentam terem descoberto isso tão tarde”, diz a pesquisadora.
A leitura de conclusão tão libertadora explica-se pelo fato de que a maioria das mulheres se vê pela primeira vez sem as obrigações de mãe, de esposa ou de trabalhadora. É o momento em que se redescobrem, fazem o que não tiveram tempo de fazer antes. Elas têm as amigas como melhores companheiras e as risadas como o melhor remédio. “Dizem que aprenderam a viver intensamente o presente; a dizer ‘não’; a respeitar as próprias vontades; a vencer os medos e a aceitar a idade”, esclarece Mirian.
Somente assim se poderia alcançar a dita bela velhice. E cada qual deve encontrar o segredo para conquistá-la. Mas entre todos esses belos velhos têm algo em comum: um projeto de vida que não passe pelo corpo ou pela aparência. “Eles não se aposentaram de si mesmos, recusaram as regras que os obrigariam a se comportar como velhos. Não se tornaram insensíveis, apagados, infelizes , doentes, deprimidos. Estão criando possibilidades e significados para o envelhecimento”, garante a antropóloga.
E a Revista foi conhecer a beleza desses que já viveram mais de meio século. Com experiência, sabedoria e muita lucidez falam do momento da vida tão temido e, ao mesmo tempo, tão desejado pela espécie humana.
Temor
38%
das mulheres até 59 anos dizem ter medo de envelhecer
Entre os homens, a taxa cai para
25%
* Dados da pesquisa desenvolvida pela antropóloga Mirian Goldenberg
38%
das mulheres até 59 anos dizem ter medo de envelhecer
Entre os homens, a taxa cai para
25%
* Dados da pesquisa desenvolvida pela antropóloga Mirian Goldenberg
O escritor Luis Fernando Verissimo acredita que a velhice influencia a maneira de a pessoa ser e pensar
"Velhos interessantes"
Eles são amigos, escritores, conhecidos em todo o território nacional pelo humor, pela inteligência e pela personalidade tão singular. Zuenir Ventura, Ziraldo e Luis Fernando Verissimo foram convidados a falar da própria idade. Sem regras. Sem roteiros preestabelecidos. A proposta era discutir os prós e os contras de viver mais de oito décadas. Aceitaram o desafio e o resultado virou um musical que estreia em São Paulo no próximo mês, com o nome de Barbaridades.
Nenhum deles sabe qual o resultado da compilação de episódios de tanta vida interessante junta. “Confesso que não sei bem. Cada um fez a sua parte, um redator deu a forma final ao espetáculo. Também estou curioso para saber no que vai dar”, diz Luis Fernando Verissimo, que completa 79 anos este ano.
Mas não será nada menos do que boas e engraçadas histórias, dado o perfil dos três inspiradores da obra. São velhos ativos, admirados por uma plateia de qualquer idade. Zuenir, por exemplo, educadamente declinou o convite para dar entrevista e falar sobre a experiência de ter vivido, até agora, 83 anos. Ele está ocupado em demasia. Precisa ler “toda a obra de Ariano Suassuna”. Não justifica o porquê. E nem precisa. Gente como ele trabalha e ponto. Precisa de tempo e tem prioridades.
Veríssimo nos concede algumas linhas virtuais. Declara que não se considera velho, “não importa o que diga o espelho”. Continua ativo e interessado pela vida. E ser jovem é isso. Ser velho é justamente o contrário. Se essa é sua definição particular, então, ele não é velho.
O passar dos anos não mudou tanto a rotina do escritor. “Não tive que abandonar coisas que fazia na juventude porque, na verdade, não as fazia quando jovem. Coisas como esportes, por exemplo. De certa forma, eu já era velho, só não cronologicamente”, considera. Veríssimo não deixa de trabalhar e menos ainda de fazer planos. Quer viajar, afinal, “ainda há muito no mundo para se conhecer”. A memória, no entanto, pode ser uma problema, para um cérebro que armazenou tantas informações. “É um paradoxo: o que se acumula na vida são memórias e o que se perde mais rapidamente na velhice são as memórias. Sacanagem!”
Tão bem-humorado, mas um tanto mais, digamos, despachado, Ziraldo compartilha o prazer pela vida ativa aos 83 anos. Sente-se um privilegiado de ter acompanhado tantas mudanças no mundo no último século que, segundo ele, nunca poderão ser comparadas a quaisquer outras que venham acontecer nos próximos anos. E sobre a velhice, ele faz piada: “Terceira idade é o c… Dizer que é a melhor idade é hipocrisia”. É um pouco de deboche, porém. Ele até acha que o passar do tempo tem seu charme. “Se você tem saúde — e isso eu tenho —, se você não tem uma doença que te impeça de rir, de conversar, a velhice é absolutamente interessante. Se você bebeu nos bares certos e foi amado pelas mulher certas, a velhice é absolutamente suportável e isso não é ruim.”
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Ziraldo não nega que os anos trazem limitações físicas. O corpo perdeu parte da força. Não é inconsequente de subir ou descer escadas correndo, “como fazia aos 10 anos”; tampouco se aventura a “subir em árvores”, mas a cabeça anda a mil. A piada está sempre pronta. E a agenda cheia de trabalho. “O que mata o velho é a aposentadoria. É um grande engano dizerem que você tem que descansar enquanto está vivo.” Por isso, ele produz todos os dias, inclusive assina o espetáculo Barbaridades com seus contemporâneos. “Eles nos
convidaram porque somos velhos interessantes”, define sem desnecessária modéstia.
E quanto ao fim? Dá medo? “Acho que a gente começa a pensar seriamente na morte lá pelos 30 anos e, com o passar do tempo, essa preocupação só aumenta. Depois dos 60, crescem as possibilidades de você simplesmente cair morto e isso influi muito na sua maneira de ser e de pensar”, avalia Verissimo. Mas vale o risco. “Eu entendo o medo de ser atacado por um leão na rua, uma coisa apavorante, mas difícil de acontecer. Já a velhice é uma coisa normal, que todo o mundo sabe que virá e ninguém pode dizer que não esperava. Agora, se desse para escolher, eu escolheria o leão.”
Ziraldo também afasta os pensamentos mórbidos, mas não ousa fazer planos a longo prazo ou “jogar com o futuro”, como define. “Só velho neurótico e que não conheceu a felicidade tem medo da morte. Todo dia morre um contemporâneo, mas nem penso nisso. Contra o inexorável, não há luta possível. Essa foi uma das descobertas que fiz nessa fase”, afirma o cartunista.
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Envelhecimento com tranquilidade
Edylcéa Tavares Nogueira de Paula. A subprocuradora-geral da República aposentada não procura esconder os 76 anos. A idade se nota pela dificuldade de caminhar. “A artrose está me comendo por dentro.” Mas o problema ela resolve com a ajuda de uma bengala. Sem dispensar os saltos altíssimos, porém. A justificativa é que a panturrilha foi encurtada pelo hábito. Assim, dói manter o pé no chão. Melhor então manter a elegância.
A carioca é vaidosa toda a vida. Desde mocinha, guardava os trocados que ganhava para comprar doces e tecidos com os quais ela mesmo fazia roupas novas. Cresceu gostando de estar bem diante do espelho e, até hoje, mantém o hábito de se vestir de forma elegante e maquiar-se quando precisa colocar o pé para fora de casa. Não dispensa os chapéus. Há tempos, começou a colecioná-los e hoje tem mais de uma centena.
No seu espaçoso apartamento, um dos quartos é ocupado pelos sapatos e pelos chapéus. Por ali, sobra espaço. Edylcéa nunca se casou. Namorou muito, mas o amor que escolheu como marido não deu certo. Diferença de gênios, esclarece. Os outros, não quis. Preferiu a liberdade. “Foi uma opção de vida. Na época em que nasci, em 1938, a gente só tinha uma opção: ser professora ou se casar. Então, escolhi ser professora. O namorado que eu tinha na época quis casar, mas exigiu que eu não trabalhasse. Disse adeus e prazer em conhecê-lo. Nesse momento, fiz a escolha: sou eu ou a vida de casada. Mãe nunca quis ser e nunca me arrependi. Pelo contrário. Acho que se tivesse me casado, teria me arrependido porque jamais poderia ter feito o que fiz nesses anos todos na minha profissão. Pude ir para onde quis”, conclui.
Ao contrário do que muitos pensam, ela não teme a solidão. Prefere fazer as coisas como manda seu temperamento. Difícil por sinal, ela considera. “Sou muito intolerante. Gosto das coisas muito certas. Se não andam no meu jeito, acabo sendo muito intolerante. Já fui muito agressiva, mas, com a idade, melhorei. Agora, sou mais calma, mais tranquila”, conclui. Por isso, gosta de fazer as coisas sozinha. Sem solidão. Viaja sem companhia. Sempre foi assim, quando pelo menos saia de férias duas vezes por ano: uma para a América do Sul, outra para os Estados Unidos onde ia assistir a óperas. Conheceu quase a metade do mundo.
O próximo roteiro é Dubai. Talvez no ano que vem. Mesmo que sinta um pouco de dificuldade de andar, continua a dispensar companhia. “Nem que eu leve a minha cadeira de rodas”, brinca. Os amigos, gosta de encontrar em eventos, solenidades ou para tomar um vinho ou espumante. Nada de lugares com algazarra ou correria de menino. “Sou muito seletiva. Não vou ao teatro nem cinema aqui. Meu ouvido é muito sensível. Não aguento barulho de vagabundagem ou de criança.”
Vaidosa, nunca teve problemas com a idade. “Vejo o envelhecimento com muito tranquilidade, não escondo a minha idade, isso é uma coisa normal, consequência da vida.” Ela exibe a pele com pouquíssimas rugas. Já fez plástica para se livrar do queixo duplo, depois levantou as pálpebras, e também fez uma lipo. Hoje, nem pensa em entrar em uma sala de cirurgia com esse fim.
Planos ela tem de dançar. Tristeza por não ter netos ou filhos? Nenhuma. “Nunca pensei em filhos. Eu não teria paciência. Perdi a paciência com criança quando fui professora na escola primária. Sou neurótica. E não quero deixar de ser neurótica por causa disso, já passou muito tempo e não tenho mais idade de consertar isso não”, diz e dá uma boa risada.
Membro da Academia de Letras de Brasília, Edylcéa foi convida a escrever uma autobiografia. Gostou da ideia de transformar em livro sua história. Não que tenha saudade ou arrependimento de alguma coisa passada. Ao contrário, essa doutora é muito enfática em todas as respostas. Não titubeia. Com ela não há dúvidas. “Nada me faz falta. Vivi a minha adolescência muito bem, a minha juventude, a minha idade adulta, e continuo vivendo muito bem comigo mesmo. É assim: a gente nasce, amadurece e morre. Você tem que ver as fases da sua vida como uma coisa natural e aproveitar o melhor de cada uma delas.” De fato, temor de morrer ela não tem. Nem pensa nisso. “Não tenho medo do futuro. Não penso nisso. O que vier eu traço.”
Para Luis Humberto, é fundamental envelhecer bem: "A gente não pode deixar se abater"
A idade sem garantias
“O problema é envelhecer mal. Você fica cheio de ziquezira, tem que aguentar encheção de saco dos outros. Ficar velho é isso: você perde o pique da vida e se torna um sujeito chato, queixoso. E olha que estou cheio das mazelas — estou na cadeira de rodas não é por charme —, mas a gente não pode se abater. Tenho uma família que está comigo o tempo todo, tenho minha mulher, meus filhos, meus netos. E isso deixa a gente muito vivo”, define o arquiteto e fotógrafo Luis Humberto Miranda Martins Pereira.
Uma semana após completar 80 anos, no ano passado, ele teve um AVC. Percalços da idade. Muito tempo deitado para se recuperar, as pernas de músculos nada jovens enfraqueceram. Hoje, precisa da cadeira para se locomover. Os movimentos, recupera aos poucos com sessões diárias de fisioterapia, mas reconhece que o caminhar da juventude e a força física são coisas do passado. “Os meus amigos idosos, volta e meia, têm um piripaque. A essa altura do campeonato, você não tem mais garantia, então, a velhice tem uma série de inconvenientes. Você sabe a estatística de sobrevida de uma cara de 80 anos? É baixíssima. Claro que tem que ser. Essa é a lei natural das coisas”, brinca, ao falar a verdade.
Pai de cinco filhos e avô de nove netos, Luis é conhecido no meio acadêmico por suas ideias. Elas continuam brilhantes. Aliás, perder a lucidez é seu maior medo. Essa ele ainda mantém. O resto, vai lidando. “Você tem que aprender a viver dentro do limite que a idade traz. Eu, por exemplo, estou com a intenção de correr a São Silvestre no ano que vem, mas acho que não vai dar não, vou ter que fazer mais fisioterapia”, ri de si mesmo.
Ele se diz atrevido. Apesar de a contagem do tempo mudar com o passar da idade, ainda quer publicar mais um livro de fotografia. Talvez um de poesia, algo que faz desde 1973, mas nunca se arriscou a tornar público. Orgulha-se dos amigos que conquistou, da família que construiu e do período intelectualmente mais produtivo da sua vida, que foi aos 50 anos. Além disso, envelhecer lhe trouxe “mais sabedoria e mais capacidade de julgamento”, observa o hoje professor aposentado da Universidade de Brasília.
Mas quando questionado se aceita bem a velhice, pensa antes de responder. “É cinismo, é mentiroso dizer que, inicialmente, você aceite as perdas que vêm com a idade. Se você estiver lúcido e com a cabeça boa, dá para viver bem até os 80 anos. O ser humano é uma figura que nasce com uma profunda vocação para a eternidade, mas há a impossibilidade biológica para a realização desse projeto. A natureza não faz graça para você, ela te cobra”, conclui.
De sua parte, a vida cobrou de Luis um pouco da saúde. É diabético e o leve tremor das mãos denuncia o parkinsonismo. A perda dos amigos também é um mal sentido com mais frequência. “No começo, é inaceitável a morte dessas pessoas. É um inferno. A gente entra na fila, é da natureza. Claro que falo assim para não impressionar, mas é de amargar. Se dá medo? Mas o que adianta? Claro que dá medo, você não sabe o que vai encontrar pela frente”, comenta.
Por isso, melhor não pensar em despedidas. O temor de ficar velho começou aos 40 anos. Foi quando descobriu “que não era eterno”. Depois da constatação, viveu o dobro da idade que tinha naquela época. O futuro, a ele certamente não pertence. “Viver decentemente já é um grande projeto. Claro que o fim está muito mais próximo do que em 1934, quando nasci. Mas você ignora. Não tem que pensar nisso e viver. Quero viver o que for possível.”