Pesquisa defende contato com a poeira para evitar a asma

A lógica inusitada é defendida por cientistas de universidade belga. Segundo eles, a exposição precoce ao pó doméstico condiciona o sistema imunológico de crianças a reagirem de forma mais equilibrada aos causadores de alergias

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Paloma Oliveto - Correio Brazilienze Publicação:16/09/2015 15:00Atualização:10/09/2015 10:48
A intenção é das melhores: evitar que agentes externos invadam o organismo. Mas, na tentativa de fechar o corpo para partículas de poeira, pelos de animais e esporos de fungos, por exemplo, o sistema imunológico pode superestimar o inimigo e desencadear os sintomas que caracterizam uma crise asmática. Em crianças, as inflamações costumam ser mais graves e constantes, pois a imunidade ainda está em construção. Mas expô-las a agentes alérgenos antes que a doença se instale pode protegê-las de futuras inflamações dos brônquios, sustenta um artigo publicado na edição desta semana da revista Science.

'A extrema obsessão com limpeza dos povos ocidentais acabou levando a um aumento de alergia e asma em crianças. Isso é prejudicial para o desenvolvimento do sistema imunitário'- Bart Lambrecht, pesquisador da Universidade de Ghent (Divulgação)
"A extrema obsessão com limpeza dos povos ocidentais acabou levando a um aumento de alergia e asma em crianças. Isso é prejudicial para o desenvolvimento do sistema imunitário"- Bart Lambrecht, pesquisador da Universidade de Ghent
A lógica é a mesma de muitos pais que deixam os filhos andarem descalços e botarem a mão suja na boca, na expectativa de que criem defesas naturais. A chamada “hipótese da higiene”, proposta em 1989 por um epidemiologista inglês, conduziu o trabalho dos pesquisadores da Universidade de Ghent, na Bélgica. Em um estudo com modelos animais e replicado em pacientes humanos, eles demonstraram que o contato precoce com pó de terra e poeira doméstica ensina o sistema imunológico a não exagerar nas reações, controlando a resposta inflamatória pulmonar.

“A asma e as alergias são algo tipicamente dos últimos 50 anos. Elas aumentaram muito devido à erradicação bem-sucedida no mundo ocidental de uma série de doenças infecciosas, como a tuberculose e a malária”, defende o pneumologista e especialista em asma Bart Lambrecht, do Instituto de Biotecnologia Flanders, da Universidade de Ghent. “Graças a antibióticos, vacinas e melhores práticas de higiene, conseguimos controlar essas enfermidades. Mas há um outro lado da moeda. A extrema obsessão com limpeza dos povos ocidentais acabou levando a um aumento de alergia e asma em crianças. Isso é prejudicial para o desenvolvimento do sistema imunitário”, observa Lambrecht, que liderou a pesquisa.

O especialista afirma que, nos últimos anos, ao menos 20 estudos europeus constataram que crianças que vivem em fazendas têm incidência mais baixa de alergia e asma. A suspeita dos autores desses trabalhos é de que elas estariam protegidas porque o ar que respiram está cheio de partículas de uma bactéria encontrada no esterco e na forragem. A chamada endotoxina, presentes na parede celular da bactéria gram-negativa, causaria temporariamente um processo inflamatório suave, condicionando a resposta imunológica aos alergênicos. Lambrecht explica que, da mesma forma, os pequenos que moram em áreas urbanas e têm contato, desde cedo, com animais e poeira doméstica são menos propensos a desenvolverem alergias respiratórias.

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Sem consenso
A professora de pediatria da Universidade Católica de Brasília (UCB) e médica da Secretaria de Saúde do DF Alessandra Ribeiro Ventura Oliveira lembra que não há conformidade entre especialistas a respeito da questão da exposição precoce aos alergênicos. No Brasil, as sociedades médicas não têm consenso sobre o tema, mas falam sobre imunologia — o documento mais recente são as diretrizes da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia para o Manejo da Asma de 2012. “A imunologia é, justamente, utilizar os anticorpos com o objetivo de diminuir a resposta inflamatória. Se eu me expuser em pequenas doses, vou conseguir uma resposta que não vai me prejudicar”, explica a pediatra.

De acordo com a professora da UCB, o segredo é a quantidade de alergênicos. “A exposição precoce a pequenas dosagens vai facilitar a melhor resposta inflamatória. Mas, se for uma quantidade alta, a resposta será pior”, alerta. A médica também destaca que isso só vale para alergias respiratórias. No caso das alimentares, a recomendação é manter as crianças longe das iguarias às quais são alérgicas, principalmente as mais novinhas. “Quanto menor a idade, maior é a manifestação”, observa Alessandra.

Testes
Para verificar o que poderia estar por trás da proteção oferecida pelas endotoxinas, os pesquisadores da Universidade de Ghent desenvolveram um estudo, feito primeiramente com ratos. Eles injetaram moléculas da substância presente na bactéria gram-negativa no nariz de cobaias com seis a 12 semanas de vida todos os dias, ao longo de duas semanas. Nesses animais, as células que recobrem os pulmões produziram níveis mais baixos de citocinas — moléculas que desencadeiam o processo inflamatório — quando, posteriormente, elas entraram em contato com poeira repleta de ácaros. Também havia menos células dendríticas no organismo dos roedores. Essas estruturas fazem parte do sistema imunológicos e desempenham um importante papel na resposta alérgica.

Os pesquisadores, então, estudaram o tecido dos pulmões das cobaias e constataram o papel de uma enzima, a A20, na redução das inflamações que caracterizam as crises de alergia e asma. A proteína, produzida em contato com a poeira, faz com que a membrana da mucosa do trato respiratório reaja com menos severidade aos alérgenos. Nos ratos em que a A20 foi desativada, a endotoxina presente no pó não conseguiu reduzir a reação.

Na fase seguinte, os cientistas usaram células humanas, retiradas do epitélio dos pulmões de alérgicos e de pessoas saudáveis. No laboratório, descobriram que, quando expostas à endotoxina, as células de indivíduos que não sofrem de asma produzem mais A20 e, consequentemente, menos substâncias associadas à resposta inflamatória. Já o tecido dos alérgicos tem níveis mais baixos da enzima, evidenciando o papel da molécula na proteção contra as doenças respiratórias. Por fim, a equipe testou o DNA de 2 mil crianças que vivem na área rural. “A maior parte delas está protegida. Aquelas que desenvolvem alergia mesmo expostas à endotoxina têm uma variante genética que provoca o mau funcionamento da A20”, diz Bart Lambrecht.

Futura vacina

A descoberta belga abre caminho para o desenvolvimento de uma terapia imunológica que previna a asma. Para isso, os pesquisadores investigam quais  substâncias ativas na poeira das zonas rurais são responsáveis pela proteção, além da A20. “Provavelmente, há outras substâncias que contribuam. Descobrir como a poeira rural fornece esse tipo de proteção nos colocou, com certeza, na rota certa para desenvolver uma vacina contra asma, assim como outras terapias antialérgicas. Contudo, muitos anos de pesquisa são necessários antes que estejam disponíveis aos pacientes”, disse, em nota, Hamida Hammad, cientista da Universidade de Ghent e coautora do estudo.

Enquanto os especialistas não chegam à fórmula, Bart Lambrecht, líder do estudo, aconselha os pais a estimularem naturalmente o sistema imunológico dos filhos. “Não exagere nas medidas de higiene. As crianças não morrem por rastejar num chão sujo ou por enfiar a mão na boca antes de lavá-la”, diz. A pediatra Alessandra Ribeiro Ventura Oliveira concorda. “A poeira é inevitável. Não adianta a mãe criar a criança na redoma. O que as pesquisas mostram é que você precisa estar exposto aos alergênicos porque não tem como eliminá-los do mundo.”

Mais casos
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que existem 300 milhões de pessoas afetadas pela asma no mundo e que a frequência da doença tem aumentado. Há hipótese, inclusive, de que os casos se tornaram mais graves, pois aumentaram tanto a internação de pacientes quanto a mortalidade ligada ao problema respiratório. No Brasil, entre janeiro e novembro de 2014, foram realizadas 105,5 mil internações na rede pública pela doença. O Ministério da Saúde estima que a enfermidade crônica afete vias respiratórias e pulmões de 6,4 milhões de pessoas.

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