Consumo de álcool no Brasil é 40% maior que a média mundial
Em 1965, 'O Cruzeiro' alertava os leitores sobre o efeito corrosivo do álcool. Meio século depois, Brasil amarga um índice assustador
Zulmira Furbino
Publicação:28/09/2015 13:00
Meio século atrás, em 1965, nas bancas de jornal a revista O Cruzeiro chamava a atenção dos leitores para uma reportagem sobre causas e efeitos do alcoolismo, considerado, à época, “o mais corrosivo veneno ‘atual’ do corpo e da alma e “o maior problema enfrentado pela psiquiatria” na medicina.
De lá pra cá, o que mudou? Embora não haja números que possibilitem a comparação do consumo de álcool no país no período, em 1965 a doença não atingia “índices alarmantes de outros países”, mas crescia de forma preocupante no Brasil. Hoje, a situação é outra e o país passou a consumir mais álcool que a média mundial. É o que mostra o último Relatório Global sobre Álcool e Saúde, da Organização Mundial de Saúde (OMS), publicado em maio de 2014. Segundo o estudo, estima-se que no mundo indivíduos com 15 anos ou mais consumiram cerca de 6,2 litros de álcool puro em 2010, o equivalente a 13,5g por dia. No Brasil, porém, o consumo total estimado equivale a 8,7 litros por pessoa, 40% maior do que a média mundial. A OMS diz ainda que, em 2003, o consumo no Brasil era bem maior – 9,8 litros por pessoa.
PROJEÇÕES
Em que pese a diminuição do consumo de álcool em território brasileiro na comparação entre 2003 e 2010, retratada no estudo, as projeções para a próxima década indicam que ele voltará a aumentar, ultrapassando a linha de 10 litros por pessoa. O abuso no consumo é outro dado que põe o Brasil negativamente à frente do ranking mundial. Segundo a OMS, no país, a parcela da população que experimentou consumo excessivo de álcool pelo menos uma vez durante o ano foi de 12,5%. A média mundial é de 7,5%. Para piorar a situação, por causa do amplo acesso, cada vez mais a dependência do álcool é cruzada com outras drogas. Na reunião de um grupo de Alcoólicos Anônimos (AA) em Belo Horizonte, descrita no início da reportagem, a maioria dos participantes aliava o uso de álcool à cocaína, medicamentos benzodiazepínicos (ansiolíticos usados como sedativos) e, em certos casos, ao crack.
Durante a sessão, uma mulher alta, de 40 anos, mãe de uma filha, começa a falar. Trata-se de F., uma típica representante da classe média alta belo-horizontina. Antes de começar, ela ajeita a bolsa no colo e cruza as pernas. Esta é sua segunda temporada no AA. Na primeira, F. ainda negava a doença. “Cheguei aqui muito arrogante, achando que ainda dava, depois de seis meses internada em uma clínica em São Paulo”, conta. Nessa época, mesmo frequentando as reuniões, ela tinha recaídas constantes. “É muito difícil assumir a palavra ‘alcoólatra’ na vida da gente. Isso funciona com o filho do vizinho, com o amigo do meu pai, mas não funcionava para mim. A ficha só caiu depois que eu quase morri”, reconhece F., que foi internada pela segunda vez há dois anos e chegou a pesar 44 quilos. Detalhe: ela mede 1,73m.
Seu precipício particular começou com o álcool, mas depois foi associado à cocaína e aos benzodiazepínicos. “Cheirava para acordar, bebia para passar o dia e, à noite, tomava remédios para dormir”, resume F., sóbria há dois anos, depois de passar dois meses em coma. Ela foi resgatada pelo pai – que contou com a ajuda de um médico e uma ambulância do Samu – num hotel da Região Centro-Sul da capital mineira depois de ligar para a família para se despedir porque percebeu que estava sofrendo uma overdose.
De acordo com a OMS, o uso nocivo do álcool é um dos fatores de risco de maior impacto para a morbidade, mortalidade e incapacidades em todo o mundo e está relacionado a 3,3 milhões de mortes por ano, o que significa que quase 6% das mortes em todo o planeta são atribuídas total ou parcialmente ao álcool. A organização não governamental Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa) diz que em 2012, 5,6 % dos brasileiros – 3% mulheres e 8% homens – abusavam ou dependiam de álcool. No mesmo período, a substância esteve associada a 61,5% dos índices de cirrose hepática e a 11,5% dos acidentes de trânsito no país, sendo 18% entre homens e 5% entre mulheres. Em todo o mundo, aponta a OMS, as faixas etárias mais jovens (20-49 anos) são as principais afetadas pelas mortes associadas ao uso do álcool.
Amplo acesso à bebida contribui
Nos últimos 50 anos, a ampliação do acesso ao álcool e outras drogas vem sendo decisiva para a multiplicação em escala de uma trajetória definida por muitos que sofrem com o problema como “crescimento rabo de cavalo”, que leva a pessoa a “crescer” sempre para baixo e na qual, cada indivíduo, tem uma história particular que, no fim das contas, acaba sendo sempre a variação sobre um mesmo tema, quase sempre trágico.
Segundo a reportagem da revista O Cruzeiro, “antigamente” (tomando como ponto de partida o ano de 1965), o álcool não pesava na balança econômica do país, pois a maior parte da produção de cachaça era clandestina, rendendo pouco para o erário, e o vinho, os licores e até a cerveja eram importados. “Hoje (1965), o Brasil tem uma indústria cervejeira apreciável e a vinícola, desenvolvendo-se a cada dia, cada vez merece mais proteção oficial (...)”. De acordo com dados deste ano da Associação Brasileira da Indústria da Cerveja, o país é o terceiro maior produtor de cerveja do mundo, depois da China e dos EUA.
Graças ao aumento de renda, essa e outras bebidas alcoólicas estão cada vez mais presentes na vida dos brasileiros. “O uso do álcool mudou na sociedade. Há mais disponibilidade e a pressão do marketing para criar demanda é muito maior. Os jovens são pressionados a consumir bebidas por meio da publicidade. Qualquer coisa é acompanhada de uma cerveja”, observa o psiquiatra Frederico Garcia, coordenador do Centro Regional de Referência em Drogas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para ele, o álcool tem um potencial tão lesivo quanto outras drogas.
Dano gradativo Diferentemente de outras substâncias, porém, o álcool leva mais tempo para causar danos físicos e dependência. É só olhar para o entorno. A própria cidade de Belo Horizonte se orgulha de ser a capital mineira dos barzinhos. “No interior, o bar é das poucas alternativas de lazer que as pessoas têm. E, de forma diferente como o belíssimo trabalho feito no Brasil contra o tabaco, o álcool ainda é liberalizado do ponto de vista das políticas públicas e na percepção social”, alerta o psiquiatra.
"É muito difícil assumir a palavra 'alcoólatra' na vida da gente. Isso funciona com o filho do vizinho, com o amigo do meu pai, mas não funcionava para mim. A ficha só caiu depois que eu quase morri", F., na reunião dos Alcoólicos Anônimos
Saiba mais...
O ano é 2015. Na sala azul com chão de cerâmica cinza e vários quadros de avisos na parede, pisca uma luz com os dizeres: “Só por hoje, evite o primeiro gole”. Uma elegante senhora loira chama os novatos a se apresentarem. Os relatos que se seguem são histórias dramáticas que mostram a trajetória de pessoas que perderam tudo – emprego, dinheiro, família e dignidade – para a dependência do álcool. Afora os coordenadores, há 26 pessoas na sala, cinco são mulheres.- Alcoolismo é a principal causa de afastamento do trabalho por transtorno mental
- Pesquisa investiga se obesidade e alcoolismo estão unidos pela mesma compulsão
- Entenda os efeitos do álcool no organismo
- Vídeos que retratam excessos de álcool são motivo de zombaria nas redes sociais e de preocupação para cientistas
- Quase metade dos usuários de álcool começou a beber com menos de 18 anos
- Delírios, ataques de pânico, vômito: caminho para a sobriedade não é fácil, mas autocontrole é a recompensa
- Clínica na Austrália promete curar ressaca em 30 minutos por R$ 400
- Pesquisa brasileira mostra relação entre consumo de álcool por jovens e comportamento de risco
- Depois de caracterizado como doença, existem várias formas de cuidar do alcoólatra
- Alcoolismo mata 3,3 milhões de pessoas por ano no mundo
Meio século atrás, em 1965, nas bancas de jornal a revista O Cruzeiro chamava a atenção dos leitores para uma reportagem sobre causas e efeitos do alcoolismo, considerado, à época, “o mais corrosivo veneno ‘atual’ do corpo e da alma e “o maior problema enfrentado pela psiquiatria” na medicina.
De lá pra cá, o que mudou? Embora não haja números que possibilitem a comparação do consumo de álcool no país no período, em 1965 a doença não atingia “índices alarmantes de outros países”, mas crescia de forma preocupante no Brasil. Hoje, a situação é outra e o país passou a consumir mais álcool que a média mundial. É o que mostra o último Relatório Global sobre Álcool e Saúde, da Organização Mundial de Saúde (OMS), publicado em maio de 2014. Segundo o estudo, estima-se que no mundo indivíduos com 15 anos ou mais consumiram cerca de 6,2 litros de álcool puro em 2010, o equivalente a 13,5g por dia. No Brasil, porém, o consumo total estimado equivale a 8,7 litros por pessoa, 40% maior do que a média mundial. A OMS diz ainda que, em 2003, o consumo no Brasil era bem maior – 9,8 litros por pessoa.
Em que pese a diminuição do consumo de álcool em território brasileiro na comparação entre 2003 e 2010, retratada no estudo, as projeções para a próxima década indicam que ele voltará a aumentar, ultrapassando a linha de 10 litros por pessoa. O abuso no consumo é outro dado que põe o Brasil negativamente à frente do ranking mundial. Segundo a OMS, no país, a parcela da população que experimentou consumo excessivo de álcool pelo menos uma vez durante o ano foi de 12,5%. A média mundial é de 7,5%. Para piorar a situação, por causa do amplo acesso, cada vez mais a dependência do álcool é cruzada com outras drogas. Na reunião de um grupo de Alcoólicos Anônimos (AA) em Belo Horizonte, descrita no início da reportagem, a maioria dos participantes aliava o uso de álcool à cocaína, medicamentos benzodiazepínicos (ansiolíticos usados como sedativos) e, em certos casos, ao crack.
Durante a sessão, uma mulher alta, de 40 anos, mãe de uma filha, começa a falar. Trata-se de F., uma típica representante da classe média alta belo-horizontina. Antes de começar, ela ajeita a bolsa no colo e cruza as pernas. Esta é sua segunda temporada no AA. Na primeira, F. ainda negava a doença. “Cheguei aqui muito arrogante, achando que ainda dava, depois de seis meses internada em uma clínica em São Paulo”, conta. Nessa época, mesmo frequentando as reuniões, ela tinha recaídas constantes. “É muito difícil assumir a palavra ‘alcoólatra’ na vida da gente. Isso funciona com o filho do vizinho, com o amigo do meu pai, mas não funcionava para mim. A ficha só caiu depois que eu quase morri”, reconhece F., que foi internada pela segunda vez há dois anos e chegou a pesar 44 quilos. Detalhe: ela mede 1,73m.
Seu precipício particular começou com o álcool, mas depois foi associado à cocaína e aos benzodiazepínicos. “Cheirava para acordar, bebia para passar o dia e, à noite, tomava remédios para dormir”, resume F., sóbria há dois anos, depois de passar dois meses em coma. Ela foi resgatada pelo pai – que contou com a ajuda de um médico e uma ambulância do Samu – num hotel da Região Centro-Sul da capital mineira depois de ligar para a família para se despedir porque percebeu que estava sofrendo uma overdose.
De acordo com a OMS, o uso nocivo do álcool é um dos fatores de risco de maior impacto para a morbidade, mortalidade e incapacidades em todo o mundo e está relacionado a 3,3 milhões de mortes por ano, o que significa que quase 6% das mortes em todo o planeta são atribuídas total ou parcialmente ao álcool. A organização não governamental Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa) diz que em 2012, 5,6 % dos brasileiros – 3% mulheres e 8% homens – abusavam ou dependiam de álcool. No mesmo período, a substância esteve associada a 61,5% dos índices de cirrose hepática e a 11,5% dos acidentes de trânsito no país, sendo 18% entre homens e 5% entre mulheres. Em todo o mundo, aponta a OMS, as faixas etárias mais jovens (20-49 anos) são as principais afetadas pelas mortes associadas ao uso do álcool.
Amplo acesso à bebida contribui
Nos últimos 50 anos, a ampliação do acesso ao álcool e outras drogas vem sendo decisiva para a multiplicação em escala de uma trajetória definida por muitos que sofrem com o problema como “crescimento rabo de cavalo”, que leva a pessoa a “crescer” sempre para baixo e na qual, cada indivíduo, tem uma história particular que, no fim das contas, acaba sendo sempre a variação sobre um mesmo tema, quase sempre trágico.
Segundo a reportagem da revista O Cruzeiro, “antigamente” (tomando como ponto de partida o ano de 1965), o álcool não pesava na balança econômica do país, pois a maior parte da produção de cachaça era clandestina, rendendo pouco para o erário, e o vinho, os licores e até a cerveja eram importados. “Hoje (1965), o Brasil tem uma indústria cervejeira apreciável e a vinícola, desenvolvendo-se a cada dia, cada vez merece mais proteção oficial (...)”. De acordo com dados deste ano da Associação Brasileira da Indústria da Cerveja, o país é o terceiro maior produtor de cerveja do mundo, depois da China e dos EUA.
Graças ao aumento de renda, essa e outras bebidas alcoólicas estão cada vez mais presentes na vida dos brasileiros. “O uso do álcool mudou na sociedade. Há mais disponibilidade e a pressão do marketing para criar demanda é muito maior. Os jovens são pressionados a consumir bebidas por meio da publicidade. Qualquer coisa é acompanhada de uma cerveja”, observa o psiquiatra Frederico Garcia, coordenador do Centro Regional de Referência em Drogas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para ele, o álcool tem um potencial tão lesivo quanto outras drogas.
Dano gradativo Diferentemente de outras substâncias, porém, o álcool leva mais tempo para causar danos físicos e dependência. É só olhar para o entorno. A própria cidade de Belo Horizonte se orgulha de ser a capital mineira dos barzinhos. “No interior, o bar é das poucas alternativas de lazer que as pessoas têm. E, de forma diferente como o belíssimo trabalho feito no Brasil contra o tabaco, o álcool ainda é liberalizado do ponto de vista das políticas públicas e na percepção social”, alerta o psiquiatra.