Um outro lado da tatuagem: técnica devolve gosto pela própria aparência
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O presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, Luciano Chaves, explica que há dois tipos de cicatrizes: as estéticas e as inestéticas. As primeiras são finas, claras e baixas. As segundas destoam muito do tom de pele da pessoa e, normalmente, formam queloides, resultado de um processo de cicatrização muito intenso, com produção excessiva de colágeno. Ele conta, no entanto, que não são só as inestéticas que costumam incomodar os pacientes. Alguns preferem esconder até boas cicatrizes com tatuagens. Ele alerta, no entanto: “É uma decisão muito importante, para que o desenho não vire uma marca inestética”, pondera.
No caso de cicatrizes queloidianas, os médicos propõem a revisão cicatricial, em que se retira cirurgicamente o excesso de pele no local e depois é feito um trabalho com pomadas, lasers, corticoide, para minimizar a possibilidade de formação de uma nova queloide. Mas tudo isso seria uma ação preventiva, apenas. “São procedimentos profiláticos”, ressalta Chaves.
Para aqueles que associam queloides e tatuagens, Chaves desmistifica a questão. Mesmo quem é suscetível a cicatrizes inestéticas pode ser tatuado. “A cicatriz só surge com ferida, com corte. A tatuagem é só a pigmentação de uma pele saudável, portanto, ela não formaria uma queloide”, esclarece.
Fazer um desenho em cima de uma queloide nem sempre é fácil, mas há quem tenha habilidade. O tatuador Rogélio Santiago tatua há 38 anos, o que lhe deu experiência na questão. Ele não generaliza: “Às vezes, precisa ser um desenho maior; às vezes, é mais fácil ou mais difícil, depende muito de cada cicatriz.”
Quanto à autoestima das pessoas, ele garante: “Tem gente que chega aqui insegura e sai chorando de felicidade. É muito legal”, relata. Ele acredita que a necessidade e a prática fazem o mestre. Ele já tatuou cabelo em falhas na cabeça de vários homens. “Um deles tinha passado em um concurso da Polícia Militar e estava com medo de não o deixarem entrar por causa da calvície”, exemplifica. Lembra ainda quando chegou a tatuar cerca de cinco mamilos por mês em mulheres que retiraram as mamas por conta de câncer.
"Quase todos os meus amigos têm tatuagem e eu brinco com eles que a minha nem doeu” - Taliane Moraes
Prótese estampada
Um vírus durante a gravidez da mãe causou uma má-formação em Taliane Moraes, 22, estudante, que nasceu sem uma das pernas. Ela sempre usou próteses simples, cor de pele. Quando passou da fase de crescimento, a família decidiu que era hora de ter uma prótese com identidade própria. Um dia, conversando com a mãe, revelou o sonho de andar de salto. “Imagina, a gente vai ficando mocinha, vê as amigas, a mãe, todas usando salto”, explica a moça vaidosa.
Quando Taliane menos esperava, a mãe já tinha encontrado uma empresa que fazia próteses com a altura regulável, própria para quem quer usar sapato alto. Rapidamente, há quase três anos, os pais acertaram tudo para viajarem a Sorocaba (SP). Ao chegar lá, a decepção: ela teria que passar três meses usando a prótese sem o acabamento, o que faz com que ela se pareça com uma perna de verdade. “Fiquei revoltada, mas explicaram que era necessário, porque esses três meses seriam para checar se não precisaria de nenhum ajuste. Se colocassem o acabamento e depois fosse preciso ajustar, seria muito mais difícil e mais caro”, conta, a jovem.
A prótese sem acabamento tem um ferro na parte inferior e um cartucho na parte superior. A empresa fabrica o cartucho com diferentes estampas. Quando perguntaram a Taliane se ela não gostaria de escolher uma, ela ficou indignada: “Eu respondi que queria cor de pele, como eu queria toda a prótese, na verdade. E respondi brava. Estava revoltada, chorei muito”, admite. Como seria apenas por três meses, o vendedor e o pai de Taliane a convenceram a escolher uma estampa e, em três meses, toda a prótese seria coberta pelo acabamento que lhe daria a aparência de uma perna de real, em tom de bege. “O vendedor brincou que só velho escolhia cor de pele”, relembra.
Passado o período de teste, Taliane chorou mais uma vez. Agora, o motivo era diferente. Estava apaixonada pela prótese sem acabamento e “tatuada”. A solução foi, então, manter a peça com acabamento como estepe. As coisas mudaram na cabeça de Taliane e hoje ela usa mais a prótese tatuada com flores e uma caveira.
Antes, Taliane queria ficar o mais discreta possível e disfarçar a perna falsa. Hoje, não liga e faz questão de deixar claro que a prótese nunca a limitou em nada. Pelo contrário, ela permitiu que fizesse absolutamente tudo. “A prótese sem acabamento e com estampa reflete muito mais a minha personalidade e meus gostos. Ela é despojada e alegre igual a mim. Quase todos os meus amigos têm tatuagem e eu brinco com eles que a minha nem doeu.” Aliás, Taliane está à procura de uma desenho que se pareça mais com uma tatuagem. Ela gosta tanto do colorido que, se pudesse, trocaria a estampa todo dia, como se fosse uma peça de roupa.
Thiago Teixeira, do marketing da Conforpés, que produz essas próteses, explica que a ideia da empresa é justamente não camuflar o acessório. “Nós incentivamos que exibam o ferro para mostrar à sociedade que se trata de um trauma superado”, explica. O cartucho customizado é feito a partir de um tecido com estampa. Uma resina por cima dele gruda a malha na prótese”, explica.
Feminilidade renovada
Janaína Machado, 43 anos, servidora pública, é uma das que tiveram o seio tatuado. O câncer de mama dela era diferente do da maioria: se desenvolveu antes dos 40. Chegou aos 38 e era impossível de ser detectado pelo autoexame já que não havia nódulo. Estava espalhado como areia por toda a mama e não era hereditário. Retirando a mama por inteiro, os médicos garantiram 99% de chance de cura, além de terem descartado a necessidade de fazer a radioterapia. Ela, então, não pensou duas vezes e retirou o seio, reconstruído com silicone.
Mas o tratamento de radiação não foi dispensado como previsto e, três anos depois, finalizado o processo, ela trocou a prótese, danificada pela agressividade do tratamento. Foi aí que os médicos começaram a lhe recomendar a tatuagem no mamilo. Os cirurgiões que lidam com esses casos costumam ter em sua agenda uma pequena lista de tatuadores em quem confiam para recomendar às pacientes. Só depois de quatro meses, porém, Janaína criou coragem para fazer o desenho que lhe devolveria as formas do corpo.
Os traços definitivos não são a única opção para desenhar a aréola. Em alguns casos, é retirada a borda do mamilo intacto, reduzindo seu diâmetro, e é colocada, em espiral, no outro seio. Esse, porém, não é o procedimento mais comum. Um pouco mais frequente é retirar pele do início da coxa, da área de dobra com a virilha, que tem uma coloração semelhante à da aréola, para colocar no seio reconstruído. Muitas mulheres, porém, ainda preferem os novos contornos feitos a tinta.
Há três semanas, Janaína fez a primeira sessão da tatuagem no seio. “Os médicos tinham razão em falar para eu fazer”, admite. O desenho da aréola foi feito em 3D, para imitar um mamilo de verdade. A diferença de um seio para o outro é quase imperceptível. Chegando em casa, Janaína, que confessa nunca ter sido tímida, estava tão feliz, que exibiu a novidade para todos. Mesmo assim, o tatuador, perfeccionista, pretende deixar a cor ainda mais correta com mais algumas sessões.
As cirurgias de Janaína também deixaram grandes cicatrizes nas costas. Na primeira vez em que foi à praia, conta que tratou de comprar biquínis com tiras bem largas para escondê-las. Sentia um pouco de vergonha e não queria que ficassem olhando. “Hoje em dia, não ligo. O importante é eu estar viva”, desabafa. Mesmo superada a vergonha, ela ainda estuda a possibilidade de fazer tatuagens em cima das marcas.
Na primeira sessão de tatuagem no seio, o tatuador fez um esboço nas costas de Janaína, em cima das cicatrizes, para dar uma ideia de como ficaria. A primeira impressão da moça foi de que o traço ficou grande demais. Voltou ao estúdio duas semanas depois para que ele visse como estava ficando a pigmentação da aréola desenhada. Ele fez outro desenho nas costas dela: dessa vez, com flores menores. As rosas agradaram bem mais. Mesmo assim, ela diz que ainda tem que pensar melhor se quer apagar com desenhos a marca de sua luta pela vida.
Desde criança, estava fora de cogitação para Marcelo Saraiva, 39, usar short ou bermuda. Para ele, as canelas deviam ficar bem escondidas por baixo de uma calça. Não importava se o tempo estava quente. Após ser vítima de um erro médico que comprometeu, para sempre, a estética da sua perna, as idas e vindas ao hospital foram frequentes. Foram várias fases de gesso, diversas internações e nove cirurgias na infância. Para uma criança e para um adolescente, a situação pode ser traumática.
A experiência deixou marcas de pinos de ferro que lhe acompanharam por toda a vida, e ele preferia escondê-las. Há 10 anos, a prima da atual mulher deu uma ideia: “Se te incomoda tanto, por que não faz uma tatuagem em cima para disfarçar?”. Marcelo, então, resolveu fazer uma brincadeira na praia. Para testar, pagou por uma tatuagem de henna em cima da cicatriz. Gostou do resultado e não demorou até fazer uma de verdade.
Decidido, procurou um tatuador que amigos já tinham recomendado. O profissional ficou receoso, mas estudou bem o caso e aceitou o desafio. Marcelo conta que estava tão animado que queria fazer o desenho de uma só vez, ainda que fosse grande e exigisse várias sessões. Desde então, o bancário se sente confortável com o próprio corpo, que exibe ao usar bermudas e shorts. Não se importa em mostrar a canela ou que vejam alguns sinais, cobertos com o desenho de um sol e o nome do filho em japonês, Hikaru, que significa luz.
A tatuagem mudou a relação que tinha com a autoimagem e o incentivou até a voltar para o esporte. Jogou tênis de mesa até os 20 anos e até competiu no convencional. Depois da tattoo, resolveu entrar no paralímpico, já que tem problema no quadril. Foi aí que disputou pela seleção e conquistou medalha de ouro nas Ilhas Margaridas, no Parapan, em 2009, na Venezuela. “Para mim, o tatuador foi melhor que qualquer psicólogo”, admite.
Ansiedade que deixa marcas
Há mais de um ano, a empresária Solange Cesáreo, 33 anos, percebeu pequenas feridas pelo corpo. Todas coçavam bastante. O dermatologista chegou à conclusão de que os machucados eram fruto de ansiedade. Solange reconhece que é mesmo muito ansiosa, o que tornava mais difícil resistir às coceiras. O tratamento foi feito com corticoide e a maioria das feridas cicatrizou bem. Uma delas, porém, na lateral inferior da barriga, deixou um sinal pequeno, mais fundo e com coloração muito clara para o tom de pele de moça tão vaidosa.
Tal cicatriz era motivo de vergonha. As amigas e a família tentavam convencê-la de que não era nada demais, mas ela não se sentia bem. Como adora praia e tem uma pequena pousada com piscina perto de Brasília, Solange usa muito top e biquíni, o que deixa a barriga seca sempre de fora. Assim, preferia colocar um curativo na marca a deixá-la à vista. Achava que olhariam e ficariam pensando o que poderia ser. “Algumas pessoas até perguntavam se era de lipoaspiração e eu não gostava”, conta.
Há dois meses, a empresária resolveu tomar uma atitude em relação ao incômodo. Ela se submeteu a uma pequena cirurgia para preencher o pequeno sinal. Tirou um pouco de gordura de uma região escondida da coxa e injetou no buraco. A cicatriz de tom destoante continuou, mas, agora, está plana. Ela não demoraria a tomar a próxima providência a fim de esconder a marca por completo.
Um mês depois do pequeno procedimento cirúrgico, Solange fez uma tatuagem em cima da cicatriz. “Como sou romântica, achei que era o desenho ideal”, conta como definiu o que seria a tatuagem. A pequena borboleta mostra como também era diminuta a mancha que a incomodava tanto. É a primeira tatuagem dela, mas, agora, pensa em fazer outras, inclusive em cima de outras pequenas manchas. “Eu nunca tinha pensado em fazer tatuagem antes, mas comecei a observar as dos outros e a achar interessante”, explica.
Agora, em vez de perguntarem curiosos sobre a cicatriz, perguntam, impressionados, sobre a tatuagem. Ela conta que a param na rua para elogiar a borboleta. “Minha autoestima sempre foi alta, mas agora eu não tenho nada a esconder. Posso colocar short e ninguém pergunta o que é”, afirma.
Há dois anos e meio, uma cliente apareceu no estúdio de Flávia Carvalho, 31, em Curitiba, a fim de fazer uma tatuagem em cima de uma cicatriz. Ela contou à tatuadora que a marca era resultado de uma agressão que sofrera em uma festa. Um homem veio flertar e, diante da recusa dela, perfurou-lhe a barriga com um canivete. A cliente tinha vergonha da ferida. A situação comoveu a profissional. Como a maioria das mulheres, Flávia também já teve um relacionamento abusivo quando mais nova, já foi abordada de forma desrespeitosa em festas e já recebeu cantadas agressivas.
A história foi inspiração para que Flávia criasse o projeto Pele da Flor, com o objetivo de tatuar outras mulheres vítimas de violência — principalmente doméstica — e que guardavam cicatrizes do caso. A princípio, a tatuadora entrou em contato com organizações não governamentais feministas que apoiassem mulheres em situação de risco. Imaginou que gostariam de ajudar e que teriam contato com algumas mulheres interessadas em apagar marcas da violência sofrida, mas não teve uma boa resposta. “Eles achavam que não havia demanda para o serviço que eu pretendia prestar”, conta Flávia.
Estavam errados. Desde 30 de agosto de 2015, quando o projeto começou, Flávia tatua uma mulher vítima de agressão física por semana. Isso porque precisa conciliar a agenda com os trabalhos remunerados e com a família. O apoio veio da Secretaria da Mulher da cidade em que mora. “Eles deixaram bem claro que não tinham a menor experiência com essa coisa de tatuagem, mas que queriam ajudar”, relata. O sucesso veio quando a página da Prefeitura de Curitiba no Facebook divulgou a ideia. Depois disso, apareceu gente interessada do Brasil inteiro: Recife, Salvador, Santa Catarina, São Paulo.
As histórias das mulheres tatuadas por Flávia são fortes. Quase sempre envolvem armas brancas e casos de tentativa de homicídio. “Elas ficam com vergonha de usar vestido, saia. Algumas se sentem culpadas”, conta. Flávia se contenta em perceber que as tatuagens reconstroem a relação delas com o próprio corpo. “É um processo transformador”, afirma.
Flávia já estava acostumada a tatuar em cima de cicatrizes e sabe que é um trabalho que poucos tatuadores querem fazer. “É difícil, tem que ser feita com mão livre. Ou não fazem, ou cobram muito”, explica. Antes de ser tatuada, a mulher deve receber o aval de um dermatologista, que garanta que não há problema. “É preciso tomar cuidado, porque, benfeita, a tatuagem vira um enfeite que substitui algo que era motivo de constrangimento”, explica.