#NãoÉSóPorCabelo: transição capilar é tema de piquenique que acontece em BH neste domingo

Além de dicas para quem quer assumir os fios naturais, evento que acontece no Parque Municipal vai abordar o enfrentamento ao padrão de beleza e racismo e a conquista da autoestima e direito ao próprio corpo

Diminuir Fonte Aumentar Fonte Imprimir Corrigir Notícia Enviar
Valéria Mendes - Saúde Plena Publicação:02/03/2016 09:30Atualização:02/03/2016 14:33
Não é raro que muitas mulheres passem a se reconhecer como negras a partir da transição capilar e da redescoberta de um traço importante da estética negra: o cabelo crespo. Na foto, a modelo Wise Marques (Minervino Junior/CB/D.A Press.)
Não é raro que muitas mulheres passem a se reconhecer como negras a partir da transição capilar e da redescoberta de um traço importante da estética negra: o cabelo crespo. Na foto, a modelo Wise Marques
Neste domingo (06/03) acontece no Parque Municipal, em Belo Horizonte, um ‘bate-papo-piquenique’ sobre transição capilar a partir das 9h30. O evento é organizado pelas blogueiras do Cacheia e vai reunir mulheres de cabelos ondulados, cacheados e crespos [homens interessados são bem-vindos] que terão a oportunidade de esclarecer suas dúvidas sobre o assunto que cada vez mais desperta o interesse das mulheres.

O objetivo do encontro é compartilhar histórias e trocar receitas com quem assumiu o cabelo natural. “A transição capilar pode assumir significados muito diferentes de pessoa para pessoa. Para algumas mulheres, representa uma mudança no modo com elas percebem o próprio cabelo e a si mesmas e é por meio dessa transição que muitas delas vão reconstruir a própria autoestima e encontrar modos de enfrentar o preconceito”, afirma Maressa de Souza, uma das escritoras do site que tem mais de meio milhão de visitas mensais e já ultrapassa, no Facebook, 80 mil seguidoras.

Segundo ela, não é raro que muitas mulheres passem a se reconhecer como negras a partir da transição capilar e da redescoberta de um traço importante da estética negra: o cabelo crespo. “Falando por mim, posso dizer que eu já me reconhecia como negra com o cabelo alisado, mas voltar ao cabelo natural me colocou em situações em que o racismo das pessoas apareceu de forma muito mais escancarada e mais violenta. Assim, passei a enxergar meu corpo também como resistência e comecei a participar de atividades voltadas para o enfrentamento do racismo”, conta a blogueira.

O piquenique será o primeiro encontro do Cacheia em Belo Horizonte. “Queremos conversar bastante sobre transição capilar, cuidados com cabelos e, claro, falaremos sobre o processo de aceitação do cabelo natural”, afirma Maressa Souza. Junto com ela, estarão presentes também no encontro a Ana Catarina e a Raysa França. “A Mariana Boaretto é de São Paulo e não poderá vir porque está no último trimestre de gravidez e viajar seria um pouco complicado pra ela nesse momento”, explica ela.

Da esquerda para direita: Ana Catarina, Maressa Souza, Mariana Boaretto e Raysa França escrevem no 'Cacheia' (Divulgação )
Da esquerda para direita: Ana Catarina, Maressa Souza, Mariana Boaretto e Raysa França escrevem no 'Cacheia'


A trajetória de cada mulher que passa pelo processo de assumir o cabelo natural é única, mas é difícil escapar das questões comportamentais que tangenciam a transição capilar: o corpo como lugar de política, padrão de beleza, empoderamento, feminismo, racismo. “De um modo ou de outro, as mulheres relatam o enfrentamento que travam em suas próprias casas, na escola e no trabalho em vários níveis. Assumir esse cabelo crespo diante de uma sociedade cujo padrão de beleza tende a valorizar os cabelos lisos é um ato político. Esse movimento de volta ao cabelo natural também se liga ao debate crescente em torno das questões raciais”, avalia Maressa.

Cortar ou não?
O ‘big chop’ ou grande corte é assunto garantido no piquenique. Principalmente para mulheres que há anos usam produtos químicos para deixar os fios lisos, a solução “mais prática”, pode ser não economizar na tesoura. Maressa Souza diz que a busca pelo cabelo natural é um processo de aceitação e de empoderamento feminino. “Não temos essa dimensão até entrarmos nessa luta. Muitas vezes somos criticadas, inclusive, por pessoas da família. Há muitos casos de maridos que se opõem ao ‘big chop’ por gostarem de cabelos compridos. Isso é muito sufocante para a mulher e muitas acabam desistindo do processo. A transição por vezes acaba sendo uma busca por autonomia e um exercício de direito sobre o próprio corpo, principalmente no caso das meninas mais jovens”, pondera.

A escritora do Cacheia afirma que a transição capilar precisa vir acompanhada de dicas para fortalecer a autoestima. “São muitos os relatos de resistência de namorados/maridos, proibição dos pais, racismo sofrido na escola, nas ruas, no ambiente de trabalho e depoimentos que narram a dificuldades para encarar o espelho diante de uma aparência nova e da insegurança em relação ao comprimento do cabelo e em relação à textura capilar”, cita.

Maressa diz ainda que o movimento de transição capilar tem contribuído para a valorização dos cabelos naturais, mas que, em diversos espaços, os cabelos crespos ficam de fora. “A ideia de que só são bonitos os cabelos com cachos mais compridos, com ‘volume controlado’ e bem definidos aparece em vários rótulos de produtos de beleza e a mensagem é passada nas entrelinhas de determinadas propagandas e mídias. Seria muito bom se as pessoas pudessem usar o cabelo com volume ou sem volume, mais definido ou menos definido, super comprido ou bem curtinho com tranquilidade, mas não é isso que ocorre na pratica e tudo isso precisa ser discutido”, observa.

Bê-á-bá
Maressa de Souza explica que a transição capilar é um processo de volta ao cabelo natural que começa a partir do momento em que a mulher decide que vai abrir mão de progressivas, alisantes, relaxamentos, permanentes. “Esse processo pode demorar dias, meses ou anos. Algumas pessoas cuidam dos fios e esperam até que eles cresçam bastante para só então realizar o ‘big chop’, que tem o objetivo de retirar todas as partes quimicadas. Outras cortam os fios bem curtinhos e começam do zero. Muitas pessoas passam pela transição capilar sem nem sequer saberem que ela ganhou esse nome. Na verdade o processo não tem muito mistério, não necessita ser feito em salões e não é caro. Nosso cabelo natural está esperando por nós, é só deixar ele crescer. A transição não é feita, ela acontece”, esclarece a blogueira.

Dicas
Para a escritora do Cacheia, a regra mais básica para quem quer entrar em transição capilar é paciência e cuidado. “Paciência porque esse processo pode ser mais longo ou mais curto, dependendo de quem passa por ele, porque é um período de mudanças que pode ser difícil para algumas de nós, já que nem todas querem cortar o cabelo curtinho de cara (e isso é uma luta contra um padrão de beleza da sociedade também). Cuidado porque cada cabelo possui características e necessidades específicas”, diz.

Maressa Souza lembra que os cabelos crespos são diferentes dos cabelos cacheados que são diferentes dos ondulados. “Entender qual é o tipo do seu cabelo e o que esperar dele é muito importante para entrar na transição, aceitar seu cabelo como ele realmente é e não ficar esperando que ele seja igual ao de determinada atriz ou blogueira. Nossos fios são diferentes e precisam ser cuidados de formas diferentes. Ao entrarmos na transição pensando em ter um cabelo que não é o nosso, a chance de se frustrar e cair em uma segunda química é enorme”, salienta.

Para ela, é importante pesquisar bastante e aprender sobre o próprio cabelo.

É importante que crianças com cabelos crespos ou cacheados se vejam representadas em personagens e brinquedos  (FOTO: Quilombo Dos Meninos Crespos / Divulgação) ((FOTO: Quilombo Dos Meninos Crespos / Divulgação))
É importante que crianças com cabelos crespos ou cacheados se vejam representadas em personagens e brinquedos (FOTO: Quilombo Dos Meninos Crespos / Divulgação)


Crianças cacheadas
Outro tema sobre o qual é importante refletir é sobre a pressão que o padrão de beleza exerce já na infância. Para Maressa, é importante que mães e pais tenham em mente que as crianças entram em contato com o racismo muito cedo, principalmente na escola. “O debate sobre representatividade levantado principalmente pelo movimento negro e que trata da importância de nos vermos representados naquilo que consumimos e em diversos espaços como instituições de ensino e postos de trabalho também se estende para as crianças. É interessante que cuidadores apresentem para meninos e meninas personagens cacheadas/crespas e que incentivem filhas e filhos a amarem o próprio cabelo”, pondera.

Mesmo que a mãe ou o pai não use o cabelo natural é possível que os adultos contribuam na construção da autoestima da criança. “Retire certos adjetivos do vocabulário. Frases como ‘seu cabelo é muito difícil de cuidar’, ‘seu cabelo não entra pente’, ‘a família toda tem cabelo bom, só você é assim’. São frases absolutamente prejudiciais e que não devem jamais serem ditas. De fato, para incentivar que meninos e meninas gostem do seu cabelo natural ,os pais precisam refletir também sobre o assunto”, resume Maressa.

A blogueira reforça que a hora de cuidar dos cabelos da criança não deve ser transformada em tortura. “Pesquisar sobre cuidados básicos para cabelos ondulados, cacheados e crespos é essencial para começar a entender as necessidades desses tipos de fio. Se você tem uma filha de cabelos crespos e penteia o cabelo dela seco começando pela raiz e puxando com força estará fazendo todo o processo de modo inadequado e é provável que essa criança vá sentir muita dor e associar o momento de cuidar dos fios como algo penoso, doloroso e difícil. Nossas principais dicas são: buscar por produtos adequados para a idade; brincar com a versatilidade do cabelo natural e sempre que possível fazer penteados diferentes; elogiar os cabelos dos pequenos e se algum caso de racismo ocorrer na escola ou dentro da própria família encarar esse problema de frente”, salienta.

Sem xampu
A técnica ‘no poo’ ou ‘movimento sem xampu’ foi desenvolvida pela fundadora de uma famosa marca de produtos para cabelos ondulados, cacheados e crespos, Lorraine Massey com o objetivo de evitar o ressecamento dos fios causados pelo uso de sulfatos. “Essa rotina capilar não utiliza xampu, mas recorre a outros métodos de limpeza capilar para garantir fios limpos e bem hidratados”, explica Maressa Souza.

Além do ‘No Poo’, a técnica ‘Low Poo’ também tem ganhado espaço. Quem segue o Low Poo utiliza shampoos mais suaves, sem a presença de sulfato.

As mulheres que entram em transição capilar ou quem já usa o cabelo natural não precisa necessariamente seguir o ‘No Poo’ ou o ‘Low Poo’. Apesar disso, segundo Maressa, tem se tornado cada vez mais comum que isso aconteça porque são técnicas que, de modo geral, funcionam bem para cabelos cacheados e crespos já que os fios tendem a ressecar mais. “Além de diminuir o ressecamento, quem segue o ‘Low Poo’ ou o ‘No Poo’ também deixa de utilizar produtos que contém derivados de petróleo na fórmula e busca por produtos com componentes mais naturais como extratos, manteigas e óleos vegetais. O resultado desses cuidados tende a ser cabelos mais saudáveis”, esclarece.

Salões especializados
Maressa Souza diz que os salões de beleza e mulheres de cabelos cacheados ou crespos ainda não falam a mesma língua. “Até pouco tempo essa crítica se aplicava ainda mais sobre a própria indústria da beleza que olhava muito pouco para as demandas dessa parcela de consumidoras. Nos últimos meses, o surgimento de alguns lançamentos começaram a dar indícios de que o mercado vai se preocupar não apenas com o tratamento dos cabelos lisos, mas também com o tratamento de cabelos ondulados, cacheados e crespos”, acredita.

Para ela, o aumento do número de mulheres que decidiram usar o cabelo natural “faz surgir a esperança de que os serviços oferecidos pelos salões sejam ampliados e incluam tratamentos eficientes, especialização em cortes, e não apenas produtos para ‘abaixar o volume’ porque isso não é o que todas as mulheres estão buscando”.

COMENTÁRIOS

Os comentários são de responsabilidade exclusiva dos autores.