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Problema digestivo ou de gênero?

As mulheres representam mais de 70% dos afetados pela prisão de ventre, que pode ser sintoma de outros distúrbios. Além das questões fisiológicas, a relação social com o banheiro interfere na questão

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Revista do CB - Correio Braziliense Publicação:14/07/2016 13:00Atualização:12/07/2016 17:42
Princesas vão ao banheiro: O desenhista e designer americano Paul Westover, ciente da dificuldade em aceitar com naturalidade o cocô feminino, aproveitou a moda de releituras das princesas da Disney e lançou uma série especial para o site College Humor. As ilustrações mostram as personagens em situações relacionadas ao hábito de ir ao banheiro dentro dos contextos das narrativas. Mulan, por exemplo, teve que usar mictórios após ir para o campo de batalha fingindo ser um homem, ou a Bela Adormecida que usa uma bolsa de colostomia, já que não se levantava da cama nem para fazer suas as necessidades. (Paul Westover)
Princesas vão ao banheiro: O desenhista e designer americano Paul Westover, ciente da dificuldade em aceitar com naturalidade o cocô feminino, aproveitou a moda de releituras das princesas da Disney e lançou uma série especial para o site College Humor. As ilustrações mostram as personagens em situações relacionadas ao hábito de ir ao banheiro dentro dos contextos das narrativas. Mulan, por exemplo, teve que usar mictórios após ir para o campo de batalha fingindo ser um homem, ou a Bela Adormecida que usa uma bolsa de colostomia, já que não se levantava da cama nem para fazer suas as necessidades.
Ligar o chuveiro, acender um fósforo ou abafar o barulho com a descarga. Qualquer técnica vale para impedir que percebam quando uma mulher está fazendo uma das atividades mais naturais do ser humano: a de ir ao banheiro. Em março, uma canadense chamada Makela virou sucesso na internet após contar no Twitter sua saga para defecar durante um primeiro encontro. A descarga não funcionou e a vergonha em pedir ajuda foi tanta que ela enrolou o cocô em papel higiênico. Guardou tudo na bolsa e continuou na casa do rapaz por mais algumas horas.

Acredite, relatos como esse não são incomuns. Uma brasiliense confessou recentemente em um grupo do Facebook que ficou internada porque não conseguia ir ao banheiro na própria casa durante o início do casamento: teve hemorroidas e chegou a desenvolver trombose. O coloproctologista Edson Lustosa, do Instituto Cuidar, conta que a incidência de mulheres afetadas pela prisão de ventre é de quase quatro vezes maior do que em homens. Apesar de as possíveis causas serem múltiplas, ele não tem dúvidas de que a construção social da imagem da mulher interfere negativamente no processo. “Ela tem muito mais pudor, tem mais restrição e não gosta de ir ao banheiro fora de casa”, afirma. 

A pesquisa SIM (Saúde Intestinal da Mulher), realizada pela Federação Brasileira de Gastroenterologia, corrobora com o palpite do médico sobre o pudor generalizado. Segundo o estudo, os problemas digestivos da mulher envolvem o desconforto de usar o banheiro fora de casa, mas outro fator comportamental interfere nesses casos: a dificuldade em reconhecer a importância de ouvir o organismo.

As mulheres, além de negligenciarem a alimentação adequada devido à falta de tempo, adiam o chamado da natureza para o momento em que estejam com a agenda livre ou quando estiverem em lugar que considerem mais apropriado. Edson Lustosa explica que o organismo é originalmente preparado para evacuar nas primeiras horas da manhã, o que acaba não acontecendo sempre. “Quinze minutos ou meia hora após a alimentação matinal, a maioria dos indivíduos evacua. Mas quem levanta rápido para ir ao trabalho ou para a escola perde esse momento”, observa.

Por isso, os estudos sugerem que a prisão de ventre é amenizada aos fins de semana, quando a rotina de trabalho e os afazeres diminuem. Segundo Paulo Gonçalves de Oliveira, professor da Faculdade de Medicina da UnB e especialista em coloproctologia e cirurgia colorretal, as brasileiras não têm exclusividade no distúrbio. “No mundo inteiro, a maioria das mulheres não gosta de ir ao banheiro fora de casa e não responde ao estímulo. Daí, o cérebro se acostuma ao ritmo diferente e fica desregulado”, alerta. Segundo o coloproctologista Luís Felipe Lobato, a prisão de ventre, frequentemente, está associada a abusos. Ele afirma que cerca de 80% das pacientes com constipação crônica grave têm algum trauma, seja moral, físico, seja sexual. Nesses casos, o tratamento indicado exige uma equipe médica multidisciplinar, com psicólogo e gastroenterologista para tratar a origem do distúrbio. “Se você não perguntar ativamente se ocorreu abuso, a paciente não responde. Até mesmo, porque alguns acontecem quando ela é muito nova e ela não percebe o que houve. O tratamento disso é fundamental.”

Uma das hipóteses mais usadas para explicar a delicada relação feminina com o intestino é a diferença hormonal entre homens e mulheres. Mas, mesmo após a menopausa, as mulheres continuam a ter problemas com o banheiro e, portanto, as alterações hormonais não seriam suficientes para desvendar o mistério. A natureza biológica delas abarca algumas outras explicações: “Especula-se que a mulher tenha concentrações menores de serotonina do que os homens e, como esse é o mediador químico que faz a contração do músculo, os movimentos peristálticos ficam prejudicados”, explica Lustosa. A serotonina também é conhecida como o hormônio do bem-estar, e pode estar aí o segredo da saúde psicológica e intestinal. “A vida agitada e a falta de capacidade de conviver com isso contribuem para que o intestino se torne preso”, completa. 

A frequência com que se vai ao banheiro não é fator determinante para definir a saúde intestinal, mas apenas um dos aspectos analisados. A aparência das fezes e o conforto durante o ato também são avaliados. O indivíduo pode ter até evacuação diária, mas, se for com esforço ou tiver sensação de incompletude, já é considerado constipação intestinal. O coloproctologista Paulo Gonçalves sugere a fórmula da “regrinha três e três” para saber se está tudo bem. Assim, consideradas normais as condições de evacuação, a frequência máxima de três vezes ao dia, e mínima de três vezes por semana, é suficiente. 

Para soltar-se
Apesar das dificuldades, os especialistas são otimistas e garantem que ter uma vida mais saudável, apesar de difícil, é suficiente para solucionar a maioria dos distúrbios alimentares. “Nós sabemos que, felizmente, a maioria das constipações intestinais são funcionais, não de natureza orgânica. Ou seja, a maioria delas está relacionada com maus hábitos alimentares e estilo de vida”, finaliza Edson Lustosa. Além disso, uma das opções utilizadas nos consultórios para aliviar os sintomas é o uso de laxantes. Apesar do uso do medicamento ser polêmico, há fórmulas variadas, com mecanismos de funcionamento diferentes. 

Um cuidado necessário seria com os tratamentos caseiros, porém. Paulo Gonçalves afirma desconhecer indicações ou benefícios para lavagens da parede do intestino feitas com jatos de água, conhecidas, como colonterapia. “A gente faz lavagens quando tem doença de Chagas no intestino ou quando uma criança tem algum problema neurológico que interfira no intestino, causando constipações graves, de 10 ou 15 dias”, esclarece. A doença de Chagas intestinal não está dentre as mais comuns do Distrito Federal, mas, em diferentes estados ou mesmo na região do Entorno, esses tratamentos já são empregados pelos médicos. Quando não restam dúvidas que a causa da prisão de ventre não tem a ver com travas impostas pela mente, existem, em geral, duas possibilidades originárias: abdominal ou pélvica. No primeiro caso, o órgão responsável pelo problema é o próprio intestino, que age devagar e não faz os movimentos peristálticos como deveria. Além do inchaço, um sintoma é a ausência de vontade de ir ao banheiro. Já na constipação pélvica, o desejo de evacuar até vem, mas o mecanismo de saída anal está prejudicado. Uma das alternativas é o uso do banquinho sanitário, que eleva os pés e forma o ângulo ideal para a evacuação, deixando o reto mais bem alinhado. Outra possibilidade é o reflexo de alterações na glândula tireoide, como o hipotireoidismo. Com a diminuição do metabolismo, todos os órgãos são afetados. Influenciam ainda remédios de uso controlado, como antidepressivos, ansiolíticos e relaxantes musculares contínuos.

A principal recomendação de especialistas é quanto ao modo de encarar a prisão de ventre: muitas vezes, ela é um sintoma de mal maior. A maioria absoluta dos pacientes com diverticulite, que atinge pessoas principalmente acima dos 50 anos de idade, apresenta dores e constipação antes do diagnóstico. O mesmo se aplica ao câncer colorretal, cujo principal sinal de alerta é a dificuldade de ir ao banheiro. O médico Luís Felipe Lobato conta que, recentemente, recebeu uma paciente que passou por diversos médicos tentando acabar com uma constipação que já durava dias. Ela tinha, na verdade, um tumor em proporções graves, e a lavagem intestinal foi substituída por uma cirurgia de emergência. “Às vezes, a pessoa tem um tumor, mas está achando que é intestino preso e não dá bola”, lamenta o médico.

Os prejuízos para quem sofre com as evacuações são difíceis de mensurar. Além da clara impaciência e do humor irritado — a palavra enfezado significa “com raiva”—, toda a rotina é alterada. Segundo a pequisa SIM, 79% das entrevistadas sentem prejuízo na vida sexual e 88% sofrem com a falta de concentração. Viagens, por exemplo, podem se tornar um pesadelo. As consequências físicas envolvem as conhecidas hemorroidas, fissuras anais e uma curiosa condição em que a constipação causa incontinência: com o acúmulo de fezes, o reto sofre uma pequena dilatação que causa transbordamento. 


As enfezadas

89% 
das entrevistas ficam mais irritadiças durante a prisão de ventre;

73% 
sentem frequentemente que a evacuação não foi completa;

72% 
relatam que o problema some nos fins de semana; 

45% 
culpam o cansaço ou a falta de tempo por adiar a atividade; 

20% 
acham que o problema se soluciona sozinho e

18% 
se automedicam.

Fonte: Dados da pesquisa Saúde Intestinal da Mulher.

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