Só a camisinha não é suficiente para prevenção contra Aids
Para fechar o cerco à Aids, especialistas defendem a ampliação do uso do coquetel preventivo e se debruçam sobre diversas pesquisas. Brasileiros testarão vacina anti-HIV em primatas até julho
Bruna Sensêve - Correio Braziliense
Publicação:31/12/2013 08:00Atualização: 31/12/2013 08:09
A redução na incidência de infecção pelo HIV tem sido uma prioridade para o controle da Aids em todo o mundo com uma estratégia inicial de prevenção baseada na mudança de comportamento, como a fidelidade a um único parceiro, o uso de preservativo e o acesso a equipamento de injeção esterilizado. Os especialistas, porém, defendem novas abordagens para frear o número de novos casos. “Chamamos a atenção para métodos que possam ir além da camisinha. Ela continua extremamente importante, mas deve haver alternativas”, frisa Dulce Ferraz, coordenadora do Núcleo de Apoio a Gestão de Projetos da Fiocruz Brasília (NUGP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids (Nepaids/USP).
Segundo a também analista de gestão em saúde, mais de 80% das brasileiras infectadas por ano tiveram contato com o vírus por meio de relação heterossexual. “Precisamos encontrar maneiras de combinar esse método de barreira com outros. A camisinha é segura e sem riscos de reações adversas, mas, eventualmente, pode ser mais viável na vida de algumas pessoas usar outra forma de prevenção que negociar o uso do preservativo com o parceiro”, analisa.
Entre as opções citadas pela especialista, está a profilaxia pós-exposição (PEP). No caso, os medicamentos antirretrovirais são usados de forma emergencial para evitar a infecção quando há uma exposição acidental, voltada para pessoas que correm algum risco direto por ter um parceiro sorodiscordante ou com sorologia desconhecida, por exemplo. “Corro para o serviço de saúde e tenho a possibilidade de usar durante 28 dias a combinação de antirretrovirais que pode evitar a instalação de uma infecção pelo vírus circulante. É mais ou menos a lógica da pílula do dia seguinte”, explica.
A estratégia está implantada no Brasil e é usada, há décadas, no mundo para evitar a transmissão da mãe para o bebê durante a gestação, o parto e a amamentação, além da exposição ao vírus por profissionais de saúde. Um desdobramento desse método é a profilaxia pré-exposição (PrPE). Pessoas em condição de exposição ou vulnerabilidade, como homens que fazem sexo com outros homens, travestis, transexuais, usuários de drogas e indivíduos em situação de rua, tomariam a combinação de antirretrovirais previamente. “É a lógica do outro contraceptivo, a pílula hormonal oral. Eu tomo porque eu sei que vivo situações de exposição em que nem sempre consigo usar camisinha. Então, opto por ter essa proteção medicamentosa.”
Ferraz cita estudos que também mostram a eficácia da circuncisão para a proteção dos homens, mas considera distante da realidade brasileira, já que recomendada para situações epidemiológicas muito diferentes. “E não existe evidência segura de que a circuncisão seja protetora nesse tipo de relação.”
Interferindo na replicação
No início, achava-se que os princípios de proteção para o HIV seriam semelhantes aos de proteção contra outras doenças virais, como a hepatite B e a poliomielite. Bastaria estimular a formação de anticorpos que o problema estaria resolvido. Diversos estudos, desde o começo da infecção, mostraram que os cientistas subestimavam o inimigo. O HIV tem habilidades extraordinárias para escapar das defesas do corpo muito além do imaginado. Dois grupos de pesquisa brasileiros estão debruçados sobre a tarefa de impedir a replicação do vírus em humanos, desenvolvendo estratégias promissoras.
Neste ano, foi anunciado o início dos testes em macacos rhesus de uma das frentes brasileiras para a imunização contra o HIV. A abordagem, desenvolvida pela equipe liderada por Edecio Cunha-Neto, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Instituto de Investigação em Imunologia, difere-se de tudo que foi feito no exterior. O projeto foi patenteado como HIVBr18 e reúne outros dois pesquisadores, Jorge Kalil e Simone Fonseca. Tem como principal diferencial o enfoque nas regiões do vírus que são comuns às variações sofridas por ele.
Cunha-Neto explica que o HIV tem uma alta taxa de mutação, fazendo com que cada soropositivo carregue micro-organismos diferentes. Segundo o cientista, esse fator é um dos principais entraves para o desenvolvimento de uma vacina universal contra o micro-organismo. Por isso, o interesse por pesquisá-lo. O imunizante desenvolvido por Cunha-Neto mira as células do paciente e busca desencadear respostas imunes com o estímulo dos linfócitos T CD4 — células do sistema imune que são alvo do HIV. Já foram feitos testes bem-sucedidos em camundongos e, no primeiro semestre de 2014, quatro primatas do Instituto Butantan passarão pelas primeiras verificações que levarão ao vetor que disparará a melhor resposta imune.
Já Myrna Bonaldo, chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), participa, com mais quatro brasileiros, do trabalho do pesquisador norte-americano David Watkins, da Universidade de Miami. A equipe internacional usa como foco as células T CD8, associadas ao processo de controle da carga viral que se dá nos chamados “controladores de elite”. Esse grupo é formado por indivíduos que naturalmente conseguem limitar a replicação do HIV no organismo.
Com essa restrição, a infecção não evolui para a Aids, mesmo com a presença do vírus. As células T CD8, no processo imunológico, matam as T CD4 infectadas para prevenir que as últimas repliquem o HIV. Myrna suspeita que esse é o mecanismo encontrado nos controladores de elite, e o desafio está em entender como essas células citotóxicas podem impedir o desenvolvimento da doença.
Esperança renovada
Os resultados divulgados em 2009 do maior teste de vacina contra o HIV apresentaram nível de eficácia de 31% em uma combinação de duas vacinas. O experimento, chamado RV144, foi realizado com mais de 16 mil participantes na Tailândia. Ainda com dados animadores, o trabalho não atingiu a eficácia necessária para garantir seu uso fora de testes clínicos.
Saiba mais...
O americano Timothy Brown pode ser visto como um homem de muito azar e de muita sorte. Conhecido como o paciente de Berlim, ele protagonizou o primeiro relato de cura total do HIV. Soropositivo, tomava o coquetel contra o vírus quando foi diagnosticado com uma leucemia não relacionada à primeira doença. Brown foi submetido a dois transplantes experimentais de células-tronco, em que o doador foi escolhido pela compatibilidade genética e por apresentar uma mutação que faz com que as células não exprimam o conector CCR5, usado pelo HIV para se infiltrar e se propagar no organismo. Depois da cirurgia, realizada na capital alemã, o vírus não voltou a se replicar em Brown. A história tornou-se o primeiro sinal de uma possível cura. Desde então, centenas de estratégias são testadas em centros de pesquisa, onde é cada vez mais forte a máxima de que a erradicação desse mal passa primeiramente pela interrupção da transmissão.- Tratamento contra o HIV é mais eficiente quando o uso de remédios começa cedo
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A redução na incidência de infecção pelo HIV tem sido uma prioridade para o controle da Aids em todo o mundo com uma estratégia inicial de prevenção baseada na mudança de comportamento, como a fidelidade a um único parceiro, o uso de preservativo e o acesso a equipamento de injeção esterilizado. Os especialistas, porém, defendem novas abordagens para frear o número de novos casos. “Chamamos a atenção para métodos que possam ir além da camisinha. Ela continua extremamente importante, mas deve haver alternativas”, frisa Dulce Ferraz, coordenadora do Núcleo de Apoio a Gestão de Projetos da Fiocruz Brasília (NUGP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids (Nepaids/USP).
'Chamamos a atenção para métodos que possam ir além da camisinha. Ela continua extremamente importante, mas deve haver alternativas', frisa Dulce Ferraz, coordenadora do Núcleo de Apoio a Gestão de Projetos da Fiocruz Brasília
Segundo a também analista de gestão em saúde, mais de 80% das brasileiras infectadas por ano tiveram contato com o vírus por meio de relação heterossexual. “Precisamos encontrar maneiras de combinar esse método de barreira com outros. A camisinha é segura e sem riscos de reações adversas, mas, eventualmente, pode ser mais viável na vida de algumas pessoas usar outra forma de prevenção que negociar o uso do preservativo com o parceiro”, analisa.
Entre as opções citadas pela especialista, está a profilaxia pós-exposição (PEP). No caso, os medicamentos antirretrovirais são usados de forma emergencial para evitar a infecção quando há uma exposição acidental, voltada para pessoas que correm algum risco direto por ter um parceiro sorodiscordante ou com sorologia desconhecida, por exemplo. “Corro para o serviço de saúde e tenho a possibilidade de usar durante 28 dias a combinação de antirretrovirais que pode evitar a instalação de uma infecção pelo vírus circulante. É mais ou menos a lógica da pílula do dia seguinte”, explica.
A estratégia está implantada no Brasil e é usada, há décadas, no mundo para evitar a transmissão da mãe para o bebê durante a gestação, o parto e a amamentação, além da exposição ao vírus por profissionais de saúde. Um desdobramento desse método é a profilaxia pré-exposição (PrPE). Pessoas em condição de exposição ou vulnerabilidade, como homens que fazem sexo com outros homens, travestis, transexuais, usuários de drogas e indivíduos em situação de rua, tomariam a combinação de antirretrovirais previamente. “É a lógica do outro contraceptivo, a pílula hormonal oral. Eu tomo porque eu sei que vivo situações de exposição em que nem sempre consigo usar camisinha. Então, opto por ter essa proteção medicamentosa.”
Ferraz cita estudos que também mostram a eficácia da circuncisão para a proteção dos homens, mas considera distante da realidade brasileira, já que recomendada para situações epidemiológicas muito diferentes. “E não existe evidência segura de que a circuncisão seja protetora nesse tipo de relação.”
Interferindo na replicação
No início, achava-se que os princípios de proteção para o HIV seriam semelhantes aos de proteção contra outras doenças virais, como a hepatite B e a poliomielite. Bastaria estimular a formação de anticorpos que o problema estaria resolvido. Diversos estudos, desde o começo da infecção, mostraram que os cientistas subestimavam o inimigo. O HIV tem habilidades extraordinárias para escapar das defesas do corpo muito além do imaginado. Dois grupos de pesquisa brasileiros estão debruçados sobre a tarefa de impedir a replicação do vírus em humanos, desenvolvendo estratégias promissoras.
Neste ano, foi anunciado o início dos testes em macacos rhesus de uma das frentes brasileiras para a imunização contra o HIV. A abordagem, desenvolvida pela equipe liderada por Edecio Cunha-Neto, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Instituto de Investigação em Imunologia, difere-se de tudo que foi feito no exterior. O projeto foi patenteado como HIVBr18 e reúne outros dois pesquisadores, Jorge Kalil e Simone Fonseca. Tem como principal diferencial o enfoque nas regiões do vírus que são comuns às variações sofridas por ele.
Cunha-Neto explica que o HIV tem uma alta taxa de mutação, fazendo com que cada soropositivo carregue micro-organismos diferentes. Segundo o cientista, esse fator é um dos principais entraves para o desenvolvimento de uma vacina universal contra o micro-organismo. Por isso, o interesse por pesquisá-lo. O imunizante desenvolvido por Cunha-Neto mira as células do paciente e busca desencadear respostas imunes com o estímulo dos linfócitos T CD4 — células do sistema imune que são alvo do HIV. Já foram feitos testes bem-sucedidos em camundongos e, no primeiro semestre de 2014, quatro primatas do Instituto Butantan passarão pelas primeiras verificações que levarão ao vetor que disparará a melhor resposta imune.
Já Myrna Bonaldo, chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), participa, com mais quatro brasileiros, do trabalho do pesquisador norte-americano David Watkins, da Universidade de Miami. A equipe internacional usa como foco as células T CD8, associadas ao processo de controle da carga viral que se dá nos chamados “controladores de elite”. Esse grupo é formado por indivíduos que naturalmente conseguem limitar a replicação do HIV no organismo.
Com essa restrição, a infecção não evolui para a Aids, mesmo com a presença do vírus. As células T CD8, no processo imunológico, matam as T CD4 infectadas para prevenir que as últimas repliquem o HIV. Myrna suspeita que esse é o mecanismo encontrado nos controladores de elite, e o desafio está em entender como essas células citotóxicas podem impedir o desenvolvimento da doença.
Esperança renovada
Os resultados divulgados em 2009 do maior teste de vacina contra o HIV apresentaram nível de eficácia de 31% em uma combinação de duas vacinas. O experimento, chamado RV144, foi realizado com mais de 16 mil participantes na Tailândia. Ainda com dados animadores, o trabalho não atingiu a eficácia necessária para garantir seu uso fora de testes clínicos.