Legislação proíbe, mas escolas cobram taxa por professores auxiliares de crianças com deficiência

Além dos obstáculos pedagógicos, ainda há muitas instituições de ensino pelo país que insistem em cobrar uma taxa extra %u2014 quase uma segunda mensalidade %u2014 para aceitar a matrícula de um aluno com Down ou com qualquer outra deficiência

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Daniela Garcia - Correio Braziliense Ana Pompeu - Correio Braziliense Publicação:21/03/2014 13:31
Não bastasse a dificuldade em conseguir matricular filhos com síndrome de Down, os pais passam também por problemas no próprio relacionamento com as escolas. Além dos obstáculos pedagógicos, ainda há muitas instituições de ensino pelo país que insistem em cobrar uma taxa extra — quase uma segunda mensalidade — para aceitar a matrícula de um aluno com Down ou com qualquer outra deficiência. Entidades de pais e associações de defesa das pessoas com deficiência denunciam que a prática é comum e não significa, necessariamente, melhor qualidade na prestação do serviço.

Em maio de 2012, o Correio mostrou que escolas da rede privada cobravam um adicional para manter um acompanhante de crianças com deficiência. À época, a reportagem mostrou que um professor auxiliar custava, em média, R$ 600, se sugerido pela instituição; e R$ 1 mil, se contratado por fora. Apesar de o Distrito Federal ter se tornado, em março do ano passado, a primeira (e, até hoje, a única) unidade da Federação a ter uma lei específica para proibir a cobrança de taxas extras em mensalidades de crianças com deficiência, pais e ONGs contam que a prática ainda não se extinguiu.

Tatiana Mares Guia, com Augusto e Guilherme: 'Cobrança de taxa extra é ilegal. As escolas têm que lutar contra o sistema, não contra os pais' (Arquivo Pessoal)
Tatiana Mares Guia, com Augusto e Guilherme: "Cobrança de taxa extra é ilegal. As escolas têm que lutar contra o sistema, não contra os pais"
Tatiana Mares Guia, 46 anos, é mãe de duas crianças especiais. Augusto, 13 anos, tem síndrome de Down. O mais novo, Guilherme, 10 anos, não recebeu diagnóstico para a deficiência que provoca dificuldades para andar e falar. Os dois frequentam a mesma escola desde pequenos. Há três anos, ela não banca mais os tutores que acompanham as crianças. “Eu me dispus a pagar metade do salário dos estagiários de pedagogia que ficavam com meus filhos. Agora, a escola arca sozinha pelos mesmos serviços, sem prejuízo para as crianças”, conta. Para ela, é importante que os meninos tenham um professor auxiliar diariamente, principalmente o caçula, que precisa de ajuda para comer e ir ao banheiro. Mas ela é enfática: “Cobrança de taxa extra é ilegal. As escolas têm que lutar contra o sistema, não contra os pais”, diz. Uma alternativa, na visão dela, seria pedir isenção ou redução de impostos, mas jamais cobrar dos pais.

Denunciar é preciso
A escola de Augusto e Guilherme recebe crianças da educação infantil e da primeira fase do ensino fundamental. No próximo ano, Tatiana vai ter que matricular Augusto em outra unidade. “Estou histérica há dois anos. Dos 13 anos em diante é uma selva. Temo ter que pagar para alguém educar os meninos dentro de casa. E aí, o conceito da inclusão vai todo por água abaixo”, se preocupa.

Pelo menos, no que diz respeito à legislação, não há mais brechas. A promotora de Defesa da Educação (Proeduc), Márcia Pereira da Rocha, explica que a recomendação emitida em dezembro do ano passado é bastante esclarecedora. “Agora, é a vez de o cidadão denunciar casos de irregularidades. Um contrato com uma taxa dessas é nulo. Os pais têm a missão de se informar para não se submeterem a esses acertos”, enfatiza a promotora.

O casal Christiane, 37, e Diego Bonomo, 33, apresentou uma notificação ao MP, no ano passado, contra uma escola que propôs cobrar taxa extra para matricular Vito, de 3 anos. “É uma frustração você ver que a escola ainda tem esse tipo de atitude”, lamenta Diego. Segundo ele, o tratamento mudava quando os responsáveis pela instituição ficam sabendo que Vito tem síndrome de Down. “Muitas escolas mudam imediatamente o discurso e colocam uma série de empecilhos: não tem vaga, a lista de espera é muito grande, é um caso especial que deveria ser tratado de outra forma, tudo isso vai contra a lei.”

A promotora Márcia Pereira da Rocha recomenda que os pais procurem o MP em situações polêmicas. Ela diz que a relação entre atendimento adequado e custos mais elevados não é direta. “A preparação da escola exige coordenação pedagógica, uma equipe que dê apoio ao professor, conversas com os pais”, detalha. Em caso de ônus adicional, o MP defende que o valor seja compartilhado na mensalidade de todos os pais. A instituição deve estar preparada para receber qualquer tipo de estudante.

A ausência de queixas formais não significa, no entanto, o fim dos abusos. Coordenadora da ONG Ápice Down, fisioterapeuta do Centro de Referência Interdisciplinar de Síndrome de Down (Crisdown) do Hospital Regional da Asa Norte (Hran), e mãe de Ana Beatriz, 4 anos, Nadja Quadros, recebe, em média, dois relatos de cobrança ilegal por mês. “A forma (de cobrar) é que mudou, mas a prática permanece. As escolas fazem isso de forma mais velada. Dizem que não têm preparo para acolher a criança ou a matriculam e, mais tarde, dizem que, apesar de estarem fazendo o possível, a criança não está acompanhando a turma. E aí, recomendam a contratação de um tutor particular”, relata.

Na opinião do presidente da Associação de Pais de Alunos das Instituições de Ensino (Aspa-DF), Luiz Cláudio Megiorin, as escolas particulares estão em dívida com a educação inclusiva. “A inclusão está sendo deixada toda na conta da rede pública. Isso é fato, é notório. O discurso é que elas são inclusivas, mas não atendem nem os alunos com altas habilidades nem os que tem algum transtorno global de aprendizagem (TGA)”, analisa. Megiorin acredita que essa responsabilidade também deve ser cobrada da rede privada de ensino. “Que façam uma inclusão responsável, e não matriculem alunos e os deixem no canto da sala sem a atenção devida.”

A gafe de Renan e o choro de Romário
Em cerimônia, ontem, no plenário do Senado para comemorar o Dia Internacional da Síndrome de Down, o presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), cometeu uma gafe ao classificar a síndrome de Down como uma doença. Depois, Renan responsabilizou sua assessoria pela informação equivocada. “Queria pedir desculpas a todos, em nome da nossa assessoria, por ter, equivocadamente, chamado Down de doença.” Na mesma sessão, o deputado Romário (PSB-RJ), pai uma menina com a síndrome, chorou ao falar da relação com a filha. “Sou um cara melhor, sou um cara mais humano, sou um cara que aprendeu a respeitar algumas coisas que — não que as desrespeitasse — passavam despercebidas na minha vida.”

NÚMEROS DA INCLUSÃO NO BRASIL
Escolas especiais — 2.062
Públicas — 328
Privadas — 1.734

Alunos nas escolas especiais — 199.656
Escolas especiais públicas — 58.225
Escolas especiais privadas — 141.431

Alunos nas escolas regulares — 620.777
Escolas públicas — 584.119
Escolas privadas — 37.158

Memória - Uma conta salgada
Em março de 2012, o Correio visitou seis escolas e constatou que em três era exigida a contratação de um acompanhante no ato da matrícula para fazer companhia à criança com deficiência. Um serviço que deveria ser pago pelas próprias famílias. A transcrição dos diálogos entre a reportagem e duas das escolas procuradas, e os relatos dos pais e de ONGs levantaram um debate na capital federal. No dia 30 daquele mês, o jornal publicou a primeira de cinco matérias sobre o tema.

As escolas alegavam falta de orientação e de condições para assumir o ônus de um profissional específico, mas especialistas classificaram a cobrança como danosa. Órgãos do governo pediram explicações sobre a cobrança feita pelas escolas. A Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF) mandou um ofício exigindo esclarecimentos para as quatro unidades de ensino mostradas na reportagem. Entidades representativas de pessoas com síndrome de Down procuraram ajuda do Ministério Público.

Um ano mais tarde, em 26 de março do ano passado, uma lei publicada no Diário Oficial do Distrito Federal proibiu a cobrança de valores adicionais. Em dezembro de 2013, as promotorias de Justiça de Defesa da Educação (Proeduc), do Consumidor (Prodecon) e da Pessoa com Deficiência (Proped) expediram recomendação para que as instituições de ensino se abstenham de cobrar qualquer quantia extra para o atendimento de alunos especiais. O documento foi enviado ao secretário de Educação do DF e à presidente do Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do DF (Sinepe).

ARTIGO// Escola boa para todos
Desde sua fundação, em 1961, a Apae de São Paulo desenvolveu diversas ações no sentido de atender às demandas das pessoas com deficiência intelectual. Em 2007, a instituição, em respeito e apoio as novas diretrizes educacionais do Ministério da Educação, decidiu manter a escola especial apenas para os 109 alunos que frequentavam a Apae na ocasião, até que todos fossem inseridos na rede regular de ensino ou em espaços de educação não formal.

Foi realizada uma avaliação dos alunos matriculados na Escola Especial, tentando-se agrupar e classificar as respostas ao instrumento de sondagem pedagógica, que teve como proposta mensurar o desempenho dos alunos nas seguintes áreas: identidade e autonomia; socialização; comunicação e expressão — linguagem receptiva e expressiva; raciocínio lógico matemático; e motricidade.

Os objetivos foram analisar a evolução dos alunos encaminhados à escola regular e comparar os resultados obtidos pelos alunos matriculados em classes comuns da escola regular e de instituições especializadas. O estudo evidenciou melhoras no desenvolvimento integral dos alunos que passaram a frequentar as escolas de ensino regular. Para o sucesso da inclusão, é necessário considerar alguns componentes essenciais: ambiente estruturado e adaptado às necessidades de cada um, abordagem de ensino que facilite seu aprendizado e flexibilização curricular, fatores estes que não devem ser utilizados unicamente para os alunos com deficiência, mas para todos que necessitem de um currículo adequado à sua individualidade.
Por Roseli Olher, pedagoga e coordenadora pedagógica da Apae/SP, e Laura M. F. Ferreira Guilhoto, médica, pedagoga e coordenadora de Pesquisa do Instituto da Apae/SP

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