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Cada vez mais animais de estimação são tratados como gente e recebem cuidados especiais; isso é um problema?

Bichos de estimação fazem cada vez mais parte do contexto familiar brasileiro. Especialistas tentam entender as transformações que permeiam a relação entre animais e seus donos

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Zulmira Furbino Publicação:07/10/2014 14:00Atualização:07/10/2014 11:31
Letícia Martinez Matos curte a companhia de seus dois gatos, Xaxá e Babi, que a ajudaram a sair de uma depressão (Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
Letícia Martinez Matos curte a companhia de seus dois gatos, Xaxá e Babi, que a ajudaram a sair de uma depressão
Lá se foi o tempo em que cães e gatos, os animais domésticos mais próximos do convívio humano, viviam somente no quintal das casas e morriam de velhice. Hoje, eles dormem na cama dos seus donos e sofrem de doenças que acometem o ser humano, como colesterol, diabetes, pressão alta, problemas renais e câncer. Há os que são levados a psicólogos e usam psicotrópicos para combater o estresse e a depressão. Muitos são tratados como bebês, alguns se vestem de Papai Noel no Natal, usam joias caras, ganham festas de aniversário, entre outros mimos.

O tratamento dispensado aos bichos de estimação no Brasil nunca foi tão humanizado. Por isso mesmo, nem tão polêmico. Professor de antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Jean Segata estuda a depressão canina e explica que, até chegarem ao posto de bebezinhos, lindinhos da mamãe e do papai, fiéis companheiros e de viverem nos lares das pessoas, tornando-se foco da atenção de gestos médicos e estéticos, houve um longo caminho percorrido pelos animais de estimação.

Na visão dele, desde a década de 90 essa delicada e controversa convivência vem reconfigurando as relações humanas e familiares, chegando inclusive ao campo do direito. Com isso, de lá para cá, o elo cada vez mais forte entre as pessoas e seus animais domésticos deixou de ser uma discussão exclusiva de veterinários, passando a frequentar as rodas de estudos de antropólogos, filósofos, sociólogos e psicólogos, que buscam entender as transformações sociais, culturais e biológicas causadas pelo fenômeno. A discussão passa pela ciência, pelos visíveis excessos na maneira como as pessoas humanizam os bichinhos e, claro, pelos incontestáveis benefícios que essa convivência traz para o ser humano.

Foi que ocorreu com a funcionária pública Letícia Martinez Matos, que há pouco tempo passou por depressão causada por uma grande decepção e enfrentou suas dificuldades com a ajuda de Xaxá e sua irmã Babi, dois gatinhos meio persas, meio vira-latas. “Em 2012, estava passando por uma fase muito difícil e, como não queria tomar remédios, uma amiga sugeriu que eu adotasse o Xaxá, porque achou que ele poderia ajudar a melhorar o meu astral. Foi tiro e queda. Gostei tanto que peguei a Babi também”, diz Letícia. Ela dorme com os bichanos e, às vezes, até evita se mexer na cama para não acordá-los.

Xaxá e Babi passaram o Natal do ano passado fantasiados de Papai Noel. “Às vezes, eles dão um feedback que assusta. Converso com eles e os dois entendem tudo”, diz Letícia. Ela garante que quando dá bom-dia aos dois, cada um responde com um “miau”. “Outro dia pela manhã, sem querer, pisei no rabinho da Babi. Ela ficou magoada. Saí para o trabalho e quando voltei à noite ela continuava aborrecida. Aí, perguntei se ela achava que a mamãe iria fazer isso por querer. Ela respondeu com um ‘miaaaau’ e eu disse pra ela: ‘Então…’. Aí ficou tudo bem.”

Celencina Novaes com a filha Anna Beatriz e o cão Scott: ela trata o filhote de shitsu como o que de fato ele é, um cachorro (Jair Amaral/EM/D.A Press)
Celencina Novaes com a filha Anna Beatriz e o cão Scott: ela trata o filhote de shitsu como o que de fato ele é, um cachorro
A humanização dos animais domésticos é um assunto que pode ser observado de vários pontos de vista, como um caleidoscópio de sentimentos, necessários cuidados com os bichinhos, interesses comerciais e mudanças de comportamento na sociedade brasileira. A ponte que levou os bichos de estimação da existência regrada no quintal ao reinado quase absoluto dentro da casa dos donos foi construída com uma série de iniciativas e investimentos que acalmaram as pulsões naturais do animal, explica Jean Segata, professor de antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ela está pavimentada pela necessidade cada vez maior de companhia dos seres humanos, muitos deles desacreditados em gente – e em amor de gente. Por trás disso – e sustentando tudo isso –, esconde-se a indústria pet, que percebeu na humanização dos animais domésticos uma ótima oportunidade de crescimento.

A administradora Cláudia Lauria, de 31 anos, está grávida pela primeira vez e há 11 anos tem uma cadelinha poodle chamada Aretha, com “h”, como ela mesma faz questão de frisar. “Ela é o meu bebê, a minha filha. Converso com Aretha como se ela fosse criança, ela fica no colo, tem no mínimo cinco vestidinhos, além de capa de chuva, colar, bota, sapato, chapéu, perfumes e uma coleção de laços”, explica. Segundo Cláudia, a cachorrinha adora usar esses apetrechos. “Toda vez que a gente coloca ela muda o comportamento, fica muito mais feliz”, garante. A mamãe de Aretha admite, no entanto, que exagerou na dose quando pintou a cadela de verde e a manteve assim por duas semanas. “Ela se olhava no espelho e parece que não gostou, assim como não gosta de ser tosada. Toda vez que isso ocorre, Aretha volta para casa amuada e a gente precisa ficar falando que ela está linda.”

Mas a sensibilidade da cadelinha vai além da aparência física. Sempre que a dona sai de casa precisa explicar a ela que vai voltar. Quando Cláudia se esquece disso, Aretha inexoravelmente vomita no sofá. “Percebi isso porque sempre que eu saía e não dava ideia, Aretha aprontava. Já quando eu me despedia, ela ficava de boa. Vi que essa era uma forma de ela chamar a atenção”, explica. Segundo a administradora, as pessoas, entre elas o próprio pai, acham que a relação tão humanizada com a cachorra é um exagero. Agora, ela anda preocupada com a reação de Aretha quando o bebê nascer. “Ela é muito apegada a mim e acho que vai ter ciúmes. Não sei como vai ficar quando o neném nascer, mas pretendo continuar tratando Aretha da mesma forma, porque tenho medo de que ela entre em depressão.”

EXCESSOS
Para Christina Malm, professora da Faculdade de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais, quando os especialistas falam de humanização da relação com animais estão se referindo aos excessos nos cuidados. “Posso tratar meu animal com todo o carinho, mas não devo esperar que ele se comporte como um ser humano”, observa. De acordo com ela, animais se comportam segundo sua própria espécie, mas atualmente o apego e a proximidade emocional com os donos é muito grande. “Há muitas pessoas sozinhas, sem família, ou longe dela, que estão carentes de afeto. Elas se apegam. Esse assunto é tema de seminários na universidade, uma vez que os bichos de estimação, tratados como se fossem gente, passam a sofrer de estresse e a ter comportamentos considerados fora do padrão”, explica.

Na opinião da psicoterapeuta de família Claúdia Prates, a grande vantagem do amor animal é que os bichos não desapontam as pessoas. “Depois que um animal escolhe seu dono ele é absolutamente leal e estável, características impossíveis de ser encontradas nas relações humanas. O animal nos acompanha sem cobranças. Eles cada vez mais substituem namorados, filhos e amigos. A permanência de um animal de estimação na vida das pessoas é até a morte. O risco de abandono é zero”, analisa.

A comerciante Vanessa Martins de Abreu sofre quando tem que viajar e precisa deixar os cães Chiquinho e Manu em hotelzinho (Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
A comerciante Vanessa Martins de Abreu sofre quando tem que viajar e precisa deixar os cães Chiquinho e Manu em hotelzinho
"Os meus filhinhos"
A comerciante Vanessa Martins de Abreu, de 42 anos, é casada, não tem filhos, mas tem dois enteados. Desde criança foi acostumada aos bichos de estimação, mas há uma década ganhou de presente um lhasa apso chamado Chiquinho. Pouco tempo depois, comprou Manu, uma cadelinha da raça shitsu, para fazer companhia a ele. Em sua casa, os dois são tratados como se fossem gente. Sua preocupação com os bichinhos vai da vacinação à alimentação, o que inclui alimentos naturais como frutas, legumes cozidos e fígado de galinha, além de uma ração de boa qualidade. Tudo devidamente conversado com o veterinário. Outra preocupação é com o bem-estar dos bichinhos. Chiquinho e Manu vivem no colo dos donos e dormem cada uma na própria cama, com direito a colchão, travesseiro e cobertor, bem ao lado da cama do casal.

Vanessa chama Chiquinho e Manu de “meus filhinhos”. E admite que tem muita dificuldade de viajar sem eles. Quando sai do trabalho e é chamada a participar de uma confraternização com os colegas, a comerciante aceita, mas vai embora depressa. “Volto rápido porque eles já ficaram o dia inteiro sozinhos. Se viajo para a casa da minha sogra, que fica a duas horas e meia daqui, tem que ir todo mundo (ela, os filhos do marido e os dois cães) no carro. Do contrário, não vou.” Até recentemente, não permitia que os dois sequer pernoitassem num hotelzinho. No fim das contas, para conseguir fazer uma viagem de férias de seis dias, Vanessa realizou uma pesquisa de hospedagem para cachorros.

“Procurei com a preocupação que eu teria se estivesse escolhendo uma escola para um filho meu”, explica. Aprovado o local, ela viajou, mas sentiu-se extremamente insegura. “A gente sofre mais do que eles. Os dois se distraem porque lá são oferecidas atividades e convivência com outros cachorros, mas mesmo assim a gente se preocupa. Durante a viagem, liguei todos os dias para saber como estavam indo as coisas. Optei por um lugar onde os dois não ficassem presos em gaiolas para não voltarem estressados para casa. Penso que, se eu tenho conforto, eles também devem ter”, explica. Como os bichanos Xaxá e Babi, que aparecem na matéria de capa deste caderno, Chiquinho e Manu são legítimos representantes do mais novo membro da família brasileira: os bichos de estimação, cada vez mais considerados partes do clã.

Junto com animais exóticos como chinchilas e calopsitas, os quatro fazem parte de um batalhão de 106,2 milhões de animais de estimação no Brasil, país que ocupa o segundo lugar mundial em faturamento e em população de cães e gatos (37,1 milhões e 21,3 milhões, respectivamente). São ainda 26,5 milhões de peixes, 19,1 milhões de aves e 2,17 milhões de outros animais (répteis e pequenos mamíferos). Os dados são da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet). Enquanto a economia brasileira tem dificuldades para decolar, a entidade estima que em 2014 o faturamento do setor deverá crescer 8,2% sobre o ano passado, chegando a R$ 16,47 bilhões. Entre 2012 e 2013, o avanço havia sido de 7,3%. O montante diz respeito aos segmentos de Pet Food (alimentação), Pet Serv (serviços), Pet Care (equipamentos, acessórios e produtos para higiene) e Pet Vet (medicamentos veterinários).

BATALHÃO
Percebendo o potencial de crescimento desse mercado, a empresária Adriane Medeiros, proprietária da Bicho Vivo BH, resolveu oferecer serviços VIPs para os animais criados com tanto amor por seus clientes. Entre os serviços, constam consultas ao dermato-veterinário, banhos terapêuticos em ofurôs com sais, essências calmantes e tranquilizantes e creche e hotelzinho que garantem espaço para brincar e interagir com coleguinhas. De acordo com ela, é comum que animais como cães e gatos cheguem ao local estressados por ficarem muito sozinhos em casa, por exemplo. “Na maior parte das vezes, os donos trabalham o dia inteiro e não têm tempo de sair para passear diariamente com os bichinhos. A demanda é muito grande, já temos reservas para dezembro e janeiro”, comemora.

A mudança na relação com os pets vem provocando alterações até no currículo das escolas de veterinária do país, que já incluíram em sua grade a disciplina bem-estar animal, antes inexistente no Brasil. “A medicina veterinária está desenvolvendo especialidades, assim como ocorre com a medicina humana. O psicólogo dos cães, por exemplo, é um veterinário que trata os desvios de conduta do cão decorrentes do tratamento excessivamente humanizado. Isso é cada vez mais comum”, explica Josélio Andrade Moura, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Veterinária.

Doenças de gente
A depressão, uma das consequências dos exageros na humanização dos animais de estimação, já é tão presente na vida canina que muitos cães chegam a ser medicados com antidepressivos, como a fluoxetina. Foi o que observou o antropólogo Jean Segata ao fazer a pesquisa de doutorado que culminou na tese “Sobre nós e os outros humanos, os animais de estimação”, defendida por ele na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2012. Segata acompanhou vários veterinários em sua lida diária. Nesse trabalho, um dos casos que chamou a sua atenção foi o de Pink, uma cadela levada à clínica veterinária com suspeita de depressão. Depois da anamnese, os veterinários retiraram sangue da cachorra e o próprio Jean levou o material ao laboratório, acondicionando-o em sua mochila, junto com as roupas da academia.

“Saí rindo com o pensamento no tubo cheio de sangue de cachorro com suspeita de depressão que seria entregue no mesmo laboratório onde fazia os meus exames rotineiros”, diz. Pink foi medicada com fluoxetina e seu veterinário recomendou à sua dona que deixasse de trabalhar excessivamente e mudasse seus hábitos de modo a poder sair para passear e ficar mais presente na vida de sua cachorra. “O engraçado é que na época eu estava me preparando para fazer um doutorado fora do Brasil e também andava estressado. Igualmente, para o alívio dos meus problemas, o meu médico fez recomendações de mudança na rotina, de modo que a humanidade de Pink parecia tão evidente quanto a minha. Mas isso não bastava: para o seu tratamento ela precisaria de fluoxetina, tanto quanto eu precisava de sibutramina.”

Antenada nas necessidades dos bichos – e de seus donos –, a clínica veterinária Dog’s & Cat’s Shop costuma preparar eventos nos fins de semana. Um dos últimos foi uma triagem para medir a pressão e averiguar se o peso dos animais estava dentro das recomendações veterinárias. A dentista Celencina Novaes resolveu ir ao evento a pedido da filha de 7 anos, Anna Beatriz Azevedo Novaes. As duas levaram com elas Scott, um shitsu de 9 meses. “Estou adorando o Scott e acho que não fico mais sem cachorro. É muito legal chegar em casa e ser recebida com aquela festa. Ele está sempre atrás da gente. E não pede nada em troca”, afirma.

Ainda assim, Celencina afirma que trata o filhote de shitsu como o que ele de fato é, um cachorro. “Temos todos os cuidados, mas ele só dorme na área de serviço. Minha filha passa quase o dia inteiro com ele, que já sabe fazer suas necessidades no lugar certo. Não humanizo e nem o encho de minos. Faço por ele o necessário para um cachorro e ele me dá em troca o que espero de um cachorro”, resume.

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