Novas configurações de família trazem desafios de lidar com realidades distintas e multiplicidade de amores
As configurações formadas por recasamentos, uniões homoafetivas, paternidade ou maternidade socioafetivas convivem com o modelo tradicional familiar
Zulmira Furbino
Publicação:08/12/2014 10:30Atualização: 08/12/2014 10:31
A família tradicional, como a Itabira de Carlos Drummond de Andrade, está se transformando em um retrato na parede. Ao que tudo indica, aquele arranjo formado por um pai, uma mãe e seus respectivos filhos, com tudo no lugar certo e no qual cada um cumpre o seu papel, está fadado a trincar. Em seu lugar surgem novas configurações familiares que desafiam a flexibilidade e a criatividade de seus integrantes. E também geram muitas dúvidas e angústias. Afinal, qual é a forma mais adequada de enfrentar os novos desafios que se estabelecem com tanta novidade debaixo de um mesmo teto?
Recasamentos, famílias monoparentais, uniões homoafetivas com filhos, paternidade ou maternidade socioafetivas são alguns dos nomes das novas configurações familiares formadas pelos brasileiros sob a égide do desejo de felicidade e completude. Tentativas que só se tornaram possíveis graças a mudanças nas dinâmicas sociais, como a facilidade para o divórcio, a participação da mulher no mercado de trabalho e a crescente aceitação das relações homoafetivas. Sem contar o fato de o Judiciário ter passado a agasalhar novos arranjos de família para os quais não há previsão específica na legislação.
Agora, a família planeja se mudar para Juiz de Fora por questões profissionais. Assim que isso ocorrer, os pais darão entrada com um processo na Justiça para incluir o nome de César Eduardo na certidão de nascimento do filho. Hoje, no espaço reservado à mãe no documento, consta “XXXXXX”. “A Justiça é até mais rápida do que eu imaginava. Nunca pensei que fosse ver o casamento homoafetivo. Mas nas instituições de modo geral a aceitação é mais difícil”, diz Henrique. Ele se pergunta o que acontecerá quando Fernando for servir o Exército e tiver de fornecer o nome da mãe. “Isso ainda não foi adaptado à nova realidade”, observa. Outro exemplo é o de um banco que se negou a aceitar um fundo de investimentos em nome de Fernando que seria feito pelo avô. “Tive que enviar um mandado com averbação do juiz para que desse certo”, lembra Henrique.
Assim como os pais de fernando e outros milhares de casais homossexuais – formados por mulheres ou por homens –, famílias heterosssexuais também constroem ou reconstroem arranjos que fogem ao tradicional. A maior vantagem de toda essa mistura é, sem dúvida, o exercício da tolerância mútua, que deverá desaguar na ampliação da aceitação da diversidade na sociedade. “Os coleguinhas da escola passam a aceitar composições familiares diferentes das suas”, diz a psicanalista e pedagoga Cristina Silveira. Para ela, as dificuldades apresentadas por uma criança que é fruto de um casal heterossexual são parecidas com aquelas que vêm de um lar homoafetivo. “O importante mesmo é o amor. A formação de famílias diferentes das tradicionais e de lares homoafetivos são uma realidade e isso faz muito tempo. As pessoas estão dando um jeito de se adequar”, afirma.
Em qualquer caso, porém, se por um lado a nova realidade aumenta a tolerância com as diferenças e estimula a convivência com a diversidade, formar uma família equilibrada e saudável continua sendo um enorme desafio. “Com as novas configurações familiares, passam a existir uma multiplicidade de amores, de diversidade de comandos, de autoridade e de regras. Tudo isso cria novos problemas”, avisa a psicoterapeuta de família Cláudia Prates.
Mudanças aceleradas
Apesar de não serem previstas em lei, as novas configurações são abrigadas pela Justiça
Os complexos retratos das novas famílias brasileiras demandam uma atenção especial do Poder Judiciário do país, que precisa se adaptar e acompanhar a velocidade das mudanças das dinâmicas sociais. De acordo com o advogado Luiz Fernando Valladão, que atua na área do direito de família e tem várias experiências profissionais com novas configurações familiares, essas mudanças estruturais são tão aceleradas que a legislação simplesmente não consegue acompanhá-las. Na falta de leis específicas para cada caso, as famílias envolvidas em processos judiciais têm no ativismo judiciário a sua única forma de abrigo legal. Isso significa que a Justiça, a partir de princípios constitucionais, vai, aos poucos, agasalhando os novos arranjos familiares.
Exemplo disso foi a decisão do Conselho Nacional de Justiça que, em maio de 2013, proibiu os cartórios de todo o Brasil de recusar a celebração de casamentos civis de casais do mesmo sexo ou deixar de converter em casamento a união estável homoafetiva. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia reconhecido que casais homoafetivos também podem constituir união estável. “O STF, com base no princípio da dignidade humana e da isonomia, entendeu que as uniões e relações entre pessoas do mesmo sexo também podem configurar união estável.” Isso significa direito aos bens adquiridos, à pensão alimentícia e que, no caso de morte de um, o outro poderá sucedê-lo. A adoção de filhos pelo casal é mais uma consequência natural da decisão do STF.
Outra situação, de acordo com Valladão, decorre dos novos arranjos familiares que levam a uma situação de paternidade socioafetiva. “Quando um filho é biologicamente concebido por um homem, ele tem direito ao sobrenome do pai, de receber verba alimentar, de desfrutar da sua companhia e de sucedê-lo depois que ele morre. Só que essa situação pode surgir com uma outra dinâmica, na qual o filho passa a conviver com o companheiro da mãe que surge como um outro pai.” Nesses casos, de acordo com o especialista, a Constituição não aceita distinções quanto à origem da paternidade e conclui que ambas são válidas e podem coexistir.
Uma questão que vem sendo debatida pela jurisprudência é a existência de múltiplas relações de união estável, que diz respeito à vida daquele homem que mantém mais de uma família, o que seria uma afronta ao princípio da monogamia, adotado como viga mestra da Constituição para casamentos e que serve como referência para a união estável. “Mas a vida é muito mais dinâmica do que as leis preveem. As pessoas que convivem com esse homem criam uma relação lastreada na boa-fé. Quando ele morre, pela lei, a família que não é a oficial ficaria prejudicada. A maioria dos juízes não aceita a coexistência de duas uniões estáveis, mesmo que a companheira, por exemplo, esteja de boa-fé. Mas defendo que não se pode deixar de responsabilizar aquele cidadão que iludiu a companheira que lhe foi fiel. Nesses casos, entendo que ela deve ser indenizada. Além disso, o patrimônio adquirido na constância da relação e como fruto de sua participação, ainda que indireta, deve ser dividido”, defende.
Lidar com os papéis de pais
A servidora pública federal Karina Medeiros de Abreu, de 35 anos, e a arquiteta Rísia Matia Botrel Vicentini, de 44, são um exemplo clássico dessas mudanças. As duas começaram a namorar há uma década e dois anos depois foram morar juntas. Aos sete anos de relacionamento, pensaram em aumentar a família. Decididas a ter um bebê, fizeram um ano de terapia de casal para falar sobre a maternidade. “Não que a terapia fosse mudar a nossa decisão. Fizemos isso para amadurecê-la e ganhar mais segurança sobre como lidar com isso perante a sociedade”, explica.
O casal optou por uma inseminação artificial e depois de algumas tentativas que acabaram em aborto, Karina conseguiu engravidar de Nina, hoje com sete meses. “Na terapia, o que mais pegou não foi o fato de sermos duas mulheres, mas a perda que haveria em nossa autonomia porque, com um filho, a vida de viajar a hora em que a gente quisesse e de não dar satisfação pra ninguém acabaria.” De acordo com ela, lidar com limites e freios e saber como agir caso a criança sofresse algum tipo de preconceito foram temas recorrentes durante o processo.
Percebendo essa tendência, a designer gráfica Bela Bordeaux, que se define como bissexual, criou a página “Tenho dois papais” no Facebook. “Minha intenção é possibilitar um diálogo entre famílias homoparentais. Boa parte do público são famílias gays, mas a maioria são mães heterossexuais, pessoas mais progressistas que querem que seus filhos cresçam sem preconceitos”, sustenta. De acordo com ela, a página “ajuda muito” porque divulga histórias reais, e ajuda os pais a aceitarem as diferenças mostradas pelas suas crianças e estimula o diálogo com a família.
Espaço para a diversidade
Arranjos familiares que envolvem filhos de outros casamentos e são formados por laços de afeto e afinidade redesenham as responsabilidades de cada um no novo núcleo de convivência
A empresária Juliana de Abreu Horta, de 50 anos, seu marido, Leandro do Valle Araújo, de 52, e seus cinco rebentos formam uma família incomum. Ele está no terceiro casamento e trouxe dois filhos, um de 12 e outro de 5 anos, para a relação. Para ela, esse é o segundo matrimônio, para o qual trouxe três meninos do primeiro (16, 19 e 20 anos). Isso sem contar os dois filhos do ex-marido, que já morreu, que são irmãos por parte de pai dos seus filhos. Um imbróglio novelesco e complicado, mas profundamente real. São assim, com variações sobre o mesmo tema e cheios de diversidade, os arranjos familiares brasileiros do século 21.
Araújo conta que quando conheceu Juliana estava separado há um ano e não queria saber de relacionamentos sérios. Mesmo assim, casaram-se em apenas sete meses. De lá pra cá já são três anos morando na mesma casa com, ao todo, quatro filhos, já que o seu mais novo mora com a mãe. “Quando Juliana comunicou aos três filhos dela que eu iria morar com eles, todos ficaram no computador e disseram ‘ah, tá bom’, retornando às atividades que estavam realizando. Se houvesse uma menina no meio seria diferente”, acredita.
Com a mudança para a nova casa, foi feito um remanejamento nos dormitórios, de modo que cada um permaneceu com um quarto só seu e ninguém cria caso com nada. “Eles têm uma relação de irmãos. Tratam-se como irmãos, se apresentam como irmãos, conversam como irmãos e brigam como irmãos, embora isso raramente aconteça”, afirma Leandro, que define sua relação com os enteados como mais de amigo do que de pai. “Tenho poder e ascendência de pai, mas não imponho nada. A relação da Juliana com meu filho mais novo também é meio de mãe. Ele respeita, pede espaço para ela. Nunca pensei que fosse me casar outra vez e muito menos que iria ter um relacionamento assim”, afirma.
Sem um ideal único de família a ser seguido, esses novos arranjos, formados por laços de afinidade e de afeto, redesenham as responsabilidades para cada indivíduo que pertence à família, tendo como princípio que cada caso é um caso e que práticas tradicionalmente delegadas ao homem e à mulher há algum tempo passaram a mudar de mãos. Assim, os desafios que a vida impôs às famílias de Juliana e Leandro, que acabaram por se juntar e formar uma só, são variações sobre um mesmo tema em relação aos enfrentados por outras pessoas que mergulharam na extrema aventura da maternidade ou da paternidade num momento de quebra de paradigmas de valores e de comportamento em todo o mundo.
É o caso da pedagoga Frances Jane Araújo Gomes, de 37, que cria sozinha dois filhos de pais diferentes, um de 5 e outro de 15 anos. “O pai do mais novo aparece de vez em quando, mas o do mais velho é uma vez na vida e outra na morte”, resume. Diante disso, ela e os filhos precisam se adaptar. “Essa ausência atrapalha estruturalmente as crianças. Quando estamos numa situação em que pais e mães estão presentes, eles perguntam onde estão seus pais e por que só os pais deles não aparecem”, revela Frances, que assume a falta de uma referência masculina na formação da personalidade dos filhos. “Consigo impor limites como mulher, mas não como homem. Sempre que preciso de um apoio masculino peço ajuda ao meu irmão. Seria muito mais fácil se os pais estivessem presentes”, reconhece.
Para a psicoterapeuta de família Cláudia Prates, as inúmeras mudanças nas configurações familiares da vida contemporânea acabaram por expor as crianças a um imbróglio de afetos e de comandos, o que vem obrigando todos a serem mais flexíveis e mais criativos na tentativa de solucionar os problemas.
ENQUANTO ISSO...
Guarda compartilhada
No final de novembro, o Senado Federal aprovou o projeto que determina que pais divorciados, mesmo em separação conflituosa, têm direitos iguais sobre os filhos, o que não ocorre em casos de guarda unilateral. Segundo o projeto, que altera quatro artigos do Código Civil, o tempo de convivência deve ser dividido de forma equilibrada entre os genitores. O Código Civil já prevê a guarda compartilhada, mas o que prevalece é a unilateral, na qual um dos pais fica responsável pela criação dos filhos e o outro tem direito a dias de visita. Hoje, apenas 6% das decisões judiciais determinam a guarda compartilhada. Agora, só falta a sanção da presidente Dilma Rousseff para que projeto se transforme em regra.
O produtor rural Henrique Maues e o professor Cesar Eduardo com seu filho Fernando, de 9 anos: eles estão casados há sete anos
Recasamentos, famílias monoparentais, uniões homoafetivas com filhos, paternidade ou maternidade socioafetivas são alguns dos nomes das novas configurações familiares formadas pelos brasileiros sob a égide do desejo de felicidade e completude. Tentativas que só se tornaram possíveis graças a mudanças nas dinâmicas sociais, como a facilidade para o divórcio, a participação da mulher no mercado de trabalho e a crescente aceitação das relações homoafetivas. Sem contar o fato de o Judiciário ter passado a agasalhar novos arranjos de família para os quais não há previsão específica na legislação.
Saiba mais...
O produtor rural Henrique Maues Cézar de Andrade, de 49 anos, e seu companheiro César Eduardo de Assis Moreira Maues, de 37, professor, são casados há sete anos. O casal tem um filho, Fernando, de 9. O garoto foi adotado por Henrique quando tinha apenas um mês e cinco dias de vida. “Ele era prematuro. Da primeira vez que o vi media 38 centímetros e pesava 1,8 quilo”, lembra. Dois anos depois, Henrique conheceu César e mais tarde passaram a viver juntos. “O César virou outro pai. Quando Fernando foi à terapia, perguntaram a ele quem era o pai de sua preferência. Nosso filho respondeu que quando precisa de socorro, corre para o pai que estiver mais perto”, revela.Agora, a família planeja se mudar para Juiz de Fora por questões profissionais. Assim que isso ocorrer, os pais darão entrada com um processo na Justiça para incluir o nome de César Eduardo na certidão de nascimento do filho. Hoje, no espaço reservado à mãe no documento, consta “XXXXXX”. “A Justiça é até mais rápida do que eu imaginava. Nunca pensei que fosse ver o casamento homoafetivo. Mas nas instituições de modo geral a aceitação é mais difícil”, diz Henrique. Ele se pergunta o que acontecerá quando Fernando for servir o Exército e tiver de fornecer o nome da mãe. “Isso ainda não foi adaptado à nova realidade”, observa. Outro exemplo é o de um banco que se negou a aceitar um fundo de investimentos em nome de Fernando que seria feito pelo avô. “Tive que enviar um mandado com averbação do juiz para que desse certo”, lembra Henrique.
Assim como os pais de fernando e outros milhares de casais homossexuais – formados por mulheres ou por homens –, famílias heterosssexuais também constroem ou reconstroem arranjos que fogem ao tradicional. A maior vantagem de toda essa mistura é, sem dúvida, o exercício da tolerância mútua, que deverá desaguar na ampliação da aceitação da diversidade na sociedade. “Os coleguinhas da escola passam a aceitar composições familiares diferentes das suas”, diz a psicanalista e pedagoga Cristina Silveira. Para ela, as dificuldades apresentadas por uma criança que é fruto de um casal heterossexual são parecidas com aquelas que vêm de um lar homoafetivo. “O importante mesmo é o amor. A formação de famílias diferentes das tradicionais e de lares homoafetivos são uma realidade e isso faz muito tempo. As pessoas estão dando um jeito de se adequar”, afirma.
Em qualquer caso, porém, se por um lado a nova realidade aumenta a tolerância com as diferenças e estimula a convivência com a diversidade, formar uma família equilibrada e saudável continua sendo um enorme desafio. “Com as novas configurações familiares, passam a existir uma multiplicidade de amores, de diversidade de comandos, de autoridade e de regras. Tudo isso cria novos problemas”, avisa a psicoterapeuta de família Cláudia Prates.
Mudanças aceleradas
Apesar de não serem previstas em lei, as novas configurações são abrigadas pela Justiça
"O STF, com base no princípio da dignidade humana e da isonomia, entendeu que as uniões e relações entre pessoas do mesmo sexo também podem configurar união estável", Luiz Fernando Valladão Nogueira, advogado
Exemplo disso foi a decisão do Conselho Nacional de Justiça que, em maio de 2013, proibiu os cartórios de todo o Brasil de recusar a celebração de casamentos civis de casais do mesmo sexo ou deixar de converter em casamento a união estável homoafetiva. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia reconhecido que casais homoafetivos também podem constituir união estável. “O STF, com base no princípio da dignidade humana e da isonomia, entendeu que as uniões e relações entre pessoas do mesmo sexo também podem configurar união estável.” Isso significa direito aos bens adquiridos, à pensão alimentícia e que, no caso de morte de um, o outro poderá sucedê-lo. A adoção de filhos pelo casal é mais uma consequência natural da decisão do STF.
Outra situação, de acordo com Valladão, decorre dos novos arranjos familiares que levam a uma situação de paternidade socioafetiva. “Quando um filho é biologicamente concebido por um homem, ele tem direito ao sobrenome do pai, de receber verba alimentar, de desfrutar da sua companhia e de sucedê-lo depois que ele morre. Só que essa situação pode surgir com uma outra dinâmica, na qual o filho passa a conviver com o companheiro da mãe que surge como um outro pai.” Nesses casos, de acordo com o especialista, a Constituição não aceita distinções quanto à origem da paternidade e conclui que ambas são válidas e podem coexistir.
Uma questão que vem sendo debatida pela jurisprudência é a existência de múltiplas relações de união estável, que diz respeito à vida daquele homem que mantém mais de uma família, o que seria uma afronta ao princípio da monogamia, adotado como viga mestra da Constituição para casamentos e que serve como referência para a união estável. “Mas a vida é muito mais dinâmica do que as leis preveem. As pessoas que convivem com esse homem criam uma relação lastreada na boa-fé. Quando ele morre, pela lei, a família que não é a oficial ficaria prejudicada. A maioria dos juízes não aceita a coexistência de duas uniões estáveis, mesmo que a companheira, por exemplo, esteja de boa-fé. Mas defendo que não se pode deixar de responsabilizar aquele cidadão que iludiu a companheira que lhe foi fiel. Nesses casos, entendo que ela deve ser indenizada. Além disso, o patrimônio adquirido na constância da relação e como fruto de sua participação, ainda que indireta, deve ser dividido”, defende.
Lidar com os papéis de pais
A servidora pública federal Karina Medeiros de Abreu, de 35 anos, e a arquiteta Rísia Matia Botrel Vicentini, de 44, são um exemplo clássico dessas mudanças. As duas começaram a namorar há uma década e dois anos depois foram morar juntas. Aos sete anos de relacionamento, pensaram em aumentar a família. Decididas a ter um bebê, fizeram um ano de terapia de casal para falar sobre a maternidade. “Não que a terapia fosse mudar a nossa decisão. Fizemos isso para amadurecê-la e ganhar mais segurança sobre como lidar com isso perante a sociedade”, explica.
O casal optou por uma inseminação artificial e depois de algumas tentativas que acabaram em aborto, Karina conseguiu engravidar de Nina, hoje com sete meses. “Na terapia, o que mais pegou não foi o fato de sermos duas mulheres, mas a perda que haveria em nossa autonomia porque, com um filho, a vida de viajar a hora em que a gente quisesse e de não dar satisfação pra ninguém acabaria.” De acordo com ela, lidar com limites e freios e saber como agir caso a criança sofresse algum tipo de preconceito foram temas recorrentes durante o processo.
Percebendo essa tendência, a designer gráfica Bela Bordeaux, que se define como bissexual, criou a página “Tenho dois papais” no Facebook. “Minha intenção é possibilitar um diálogo entre famílias homoparentais. Boa parte do público são famílias gays, mas a maioria são mães heterossexuais, pessoas mais progressistas que querem que seus filhos cresçam sem preconceitos”, sustenta. De acordo com ela, a página “ajuda muito” porque divulga histórias reais, e ajuda os pais a aceitarem as diferenças mostradas pelas suas crianças e estimula o diálogo com a família.
Espaço para a diversidade
Arranjos familiares que envolvem filhos de outros casamentos e são formados por laços de afeto e afinidade redesenham as responsabilidades de cada um no novo núcleo de convivência
Matheus, Frederico, Leonardo, Leandro, com a mulher, Juliana, e Giuliano: família formada a partir de outros casamentos
A empresária Juliana de Abreu Horta, de 50 anos, seu marido, Leandro do Valle Araújo, de 52, e seus cinco rebentos formam uma família incomum. Ele está no terceiro casamento e trouxe dois filhos, um de 12 e outro de 5 anos, para a relação. Para ela, esse é o segundo matrimônio, para o qual trouxe três meninos do primeiro (16, 19 e 20 anos). Isso sem contar os dois filhos do ex-marido, que já morreu, que são irmãos por parte de pai dos seus filhos. Um imbróglio novelesco e complicado, mas profundamente real. São assim, com variações sobre o mesmo tema e cheios de diversidade, os arranjos familiares brasileiros do século 21.
Araújo conta que quando conheceu Juliana estava separado há um ano e não queria saber de relacionamentos sérios. Mesmo assim, casaram-se em apenas sete meses. De lá pra cá já são três anos morando na mesma casa com, ao todo, quatro filhos, já que o seu mais novo mora com a mãe. “Quando Juliana comunicou aos três filhos dela que eu iria morar com eles, todos ficaram no computador e disseram ‘ah, tá bom’, retornando às atividades que estavam realizando. Se houvesse uma menina no meio seria diferente”, acredita.
Com a mudança para a nova casa, foi feito um remanejamento nos dormitórios, de modo que cada um permaneceu com um quarto só seu e ninguém cria caso com nada. “Eles têm uma relação de irmãos. Tratam-se como irmãos, se apresentam como irmãos, conversam como irmãos e brigam como irmãos, embora isso raramente aconteça”, afirma Leandro, que define sua relação com os enteados como mais de amigo do que de pai. “Tenho poder e ascendência de pai, mas não imponho nada. A relação da Juliana com meu filho mais novo também é meio de mãe. Ele respeita, pede espaço para ela. Nunca pensei que fosse me casar outra vez e muito menos que iria ter um relacionamento assim”, afirma.
Karina Medeiros e Rísia Matia decidiram ter um bebê depois de sete anos de relacionamento
É o caso da pedagoga Frances Jane Araújo Gomes, de 37, que cria sozinha dois filhos de pais diferentes, um de 5 e outro de 15 anos. “O pai do mais novo aparece de vez em quando, mas o do mais velho é uma vez na vida e outra na morte”, resume. Diante disso, ela e os filhos precisam se adaptar. “Essa ausência atrapalha estruturalmente as crianças. Quando estamos numa situação em que pais e mães estão presentes, eles perguntam onde estão seus pais e por que só os pais deles não aparecem”, revela Frances, que assume a falta de uma referência masculina na formação da personalidade dos filhos. “Consigo impor limites como mulher, mas não como homem. Sempre que preciso de um apoio masculino peço ajuda ao meu irmão. Seria muito mais fácil se os pais estivessem presentes”, reconhece.
Para a psicoterapeuta de família Cláudia Prates, as inúmeras mudanças nas configurações familiares da vida contemporânea acabaram por expor as crianças a um imbróglio de afetos e de comandos, o que vem obrigando todos a serem mais flexíveis e mais criativos na tentativa de solucionar os problemas.
ENQUANTO ISSO...
Guarda compartilhada
No final de novembro, o Senado Federal aprovou o projeto que determina que pais divorciados, mesmo em separação conflituosa, têm direitos iguais sobre os filhos, o que não ocorre em casos de guarda unilateral. Segundo o projeto, que altera quatro artigos do Código Civil, o tempo de convivência deve ser dividido de forma equilibrada entre os genitores. O Código Civil já prevê a guarda compartilhada, mas o que prevalece é a unilateral, na qual um dos pais fica responsável pela criação dos filhos e o outro tem direito a dias de visita. Hoje, apenas 6% das decisões judiciais determinam a guarda compartilhada. Agora, só falta a sanção da presidente Dilma Rousseff para que projeto se transforme em regra.